Na década de 2000, vídeos produzidos por moradores de áreas periféricas da cidade de São Paulo chamaram a atenção de pesquisadores para uma nova expressão do videoativismo. Tratava-se do trabalho de grupos que questionavam as representações da periferia e de seus moradores. A redução nos preços e a fácil portabilidade dos equipamentos audiovisuais, aliadas à ampliação do acesso a cursos de formação e a linhas de financiamento para produção, motivaram jovens a se unir e criar coletivos dedicados a mostrar uma nova visão da metrópole paulistana. Diferentemente dos chamados vídeos populares dos anos 1970 e 1980, que tinham um direcionamento político afinado com as lutas operárias e os movimentos contra a ditadura, o videoativismo do século XXI aborda reivindicações sociais, expressões culturais e demandas identitárias das populações da periferia.
O antropólogo Guilhermo Aderaldo, pós-doutorando no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e que, atualmente, realiza estágio de pesquisa na Universidade de Buenos Aires, lançou recentemente o livro Reinventando a cidade – Uma etnografia das lutas simbólicas entre coletivos culturais videoativistas nas “periferias” de São Paulo; resultado de sua tese de doutorado defendida na USP. O pesquisador relaciona o surgimento dos coletivos ao trabalho de organizações – principalmente as não governamentais (ONGs) – que passaram a oferecer cursos e oficinas de educação audiovisual para populações jovens nas regiões periféricas paulistanas. “Esses cursos se proliferaram e influenciaram o surgimento de festivais e mostras. O poder público criou linhas de financiamento para fomentar um modelo de produção que passou a receber nomes como cinema ‘de favela’, ‘de periferia’, ‘comunitário’, ‘divergente’, ‘popular’ ou ‘de quebrada’”, conta. O Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), desenvolvido pela prefeitura de São Paulo desde 2003, fez parte desse processo, ao financiar atividades artístico-culturais de jovens de baixa renda. O VAI subsidiou 956 projetos em ações de grupos juvenis da periferia de São Paulo, o que corresponde a R$ 18 milhões, de acordo com dados oficiais do munícipio. Para a parte de audiovisual foram apoiadas 143 iniciativas. As demais se referiam a outras linguagens culturais, como teatro e música.
Aderaldo analisou a condição ambivalente de alguns desses programas de formação criados por ONGs, uma vez que, por um lado, essas instituições oferecem capacitação técnica para a realização de vídeos e, por outro, costumam empregar uma linguagem institucional baseada na lógica da responsabilidade social. Segundo ele, essa linguagem, em vez de pensar os jovens como atores políticos reivindicando direitos, pode acabar por enxergá-los apenas na condição moral de “vítimas vulneráveis” à espera de oportunidades no mercado. Outro problema é que algumas organizações provedoras dos cursos, mais tarde, contratavam esses jovens formados sem registro profissional e mediante salários inferiores aos valores de mercado. Para o pesquisador, o descontentamento com esse tipo de situação foi um dos fatores que levou vários jovens, principalmente os mais escolarizados ou com histórico de participação em movimentos sociais, a se organizarem em torno dos coletivos voltados à produção audiovisual independente, como forma de utilizar os conhecimentos apreendidos para além do escopo das organizações do terceiro setor.
A pesquisa dialoga com trabalhos de etnógrafos urbanos como o norte-americano William Foote-White (1914-2000) e o francês Michel Agier (1953), além de teóricos dos estudos culturais que propõem análises interdisciplinares de aspectos da cultura, entre eles o jamaicano Stuart Hall (1932-2014) e o indiano Homi Bhabha (1949). Aderaldo chegou às constatações a partir de uma pesquisa centrada na observação das experiências cotidianas dos jovens que participavam de coletivos. Um dos grupos estudados foi o Cinescadão, formado por moradores da região norte de São Paulo e que promoviam intervenções culturais na favela Peri, onde reside a maior parte dos seus integrantes. Entre essas intervenções estavam a criação e a projeção de vídeos, apresentações de grupos de rap e a pintura de grafite em diferentes áreas da cidade. Um dos filmes produzidos pelo coletivo foi Imagens Peri Féricas, que mostra uma série de ações praticadas pelo coletivo, sobretudo as intervenções culturais realizadas na mencionada favela. Esse vídeo foi depois assistido por parte da comunidade da favela Peri.
Aderaldo acompanhou, ainda, a atuação da rede Coletivo de Vídeo Popular (CVP), que reu-nia diferentes grupos interessados na produção audiovisual e da qual também faziam parte núcleos de mídia vinculados a movimentos sociais. “A rede integrou o trabalho audiovisual e a realidade social de populações que, mesmo distantes geograficamente, possuíam proximidade simbólica”, relata o pesquisador. Esse era o caso, por exemplo, de uma ocupação mobilizada pela luta por moradia na área central da cidade e uma favela no extremo norte da capital paulista.
Gabriel de Barcelos Sotomaior, jornalista com doutorado em multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e estudioso da cinematografia produzida por movimentos sociais, conta que o videoativismo está presente também entre organizações rurais. Um exemplo é o trabalho do núcleo Brigada de Audiovisual da Via Campesina, que também participava do CVP. Criado na primeira metade dos anos 2000, o grupo reunia organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Pastoral da Terra. A proposta era mostrar uma nova perspectiva de representação da luta pelo solo. “O coletivo se originou a partir de um curso em que os participantes se mostraram insatisfeitos com a abordagem dos temas no audiovisual dominante, criando uma série de documentários com registros, discussões e manifestações do cotidiano das reivindicações no campo”, conta Sotomaior, que mantém o site Cinemovimento com trabalhos sobre audiovisual e lutas sociais.
A partir da construção dessas “pontes comunicativas” entre coletivos e movimentos sociais de diferentes regiões da cidade, Aderaldo defende que emergiu um novo tipo de interpretação da paisagem e das desigualdades da metrópole. “O conceito de periferia, que nas mídias corporativas costuma ser representado como sinônimo de áreas fixas marcadas por uma situação de carência, cedeu lugar a novas representações”, conta. Nessas novas interpretações, a periferia passou a designar processos móveis em que pessoas e lugares se conectam por causa do acesso desigual a direitos. Para o pesquisador, as experiências audiovisuais permitiram a esses jovens redefinir o sentido da paisagem urbana, na medida em que eles romperam com a linguagem institucional que os concebe somente como sujeitos tutelados. Aderaldo lembra que o sentido das palavras “periferia” e “favela” muda conforme o contexto em que são utilizadas. “Enquanto alguns agentes institucionais podem falar da ‘periferia’ como equivalente a lugares carentes e violentos, um rapper utiliza o termo para designar noções como luta, honra ou resistência”, analisa.
O sociólogo Noel dos Santos Carvalho, coordenador do curso de Comunicação Social – Midialogia do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (IA-Unicamp), contextualiza em um movimento mais amplo o argumento dos jovens que se posicionam como protagonistas nas representações audiovisuais sobre a periferia e a cidade. Para o pesquisador, com a emergência dos novos movimentos sociais a partir da década de 1960, grupos minoritários lentamente ganharam voz e o poder de se autorrepresentar, entre eles gays, negros, mulheres e índios, deslocando os limites entre o centro e a periferia. “Onde está o centro e a periferia se falamos dos grupos indígenas em relação aos negros?”, indaga.
História entrelaçada
Apesar de a eclosão dos coletivos estudados por Aderaldo se situar especialmente na primeira metade dos anos 2000, o videoativismo é uma prática anterior às plataformas digitais e às redes sociais. “O videoativismo se confunde com a história do documentário e da videoarte. Se entendida como forma de gerar visibilidade para um fato, um povo ou uma determinada situação, essa prática existe desde o próprio surgimento do documentário”, observa Tarcísio Torres, professor no Programa de Pós-graduação em Linguagens, Mídia e Arte da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e autor do livro Ativismo digital e imagem – Estratégias de engajamento e mobilização em rede. O surgimento do documentário é associado aos filmes do norte-americano Robert Flaherty (1884-1951), em especial Nanook of the North e Moana, produzidos nos anos 1920 (ver Pesquisa FAPESP nº 255).
Torres lembra que o lançamento da câmera Portapak nos anos 1960, mais leve e barata do que suas antecessoras, proporcionou uma série de experiências por parte dos primeiros videoartistas, entre eles o norte-americano Andy Warhol (1928-1987) e o sul-coreano Nam June Paik (1932-2006). Já as práticas de videoativismo como são conhecidas hoje têm a chamada Batalha de Seattle, de 1999, como marco histórico. Naquele ano, ativistas de várias frentes se reuniram na cidade norte-americana para protestar contra as ideias neoliberais que permeariam o encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC). A manifestação derivou na criação do Independent Media Center (Indymedia), uma plataforma para o carregamento de vídeos independentes que ofereciam conteúdo do ponto de vista dos manifestantes, com o objetivo de ser uma alternativa às narrativas dos grandes meios de comunicação.
“Hoje, a Indymedia é uma rede de plataformas espalhadas pelo mundo. No Brasil, chama-se Central de Mídia Independente”, explica Torres. Quando a plataforma de vídeos YouTube foi lançada, em 2005, já havia uma ampla rede de conteúdo ativista organizada. “O novo canal representou uma possibilidade de divulgação do que já estava sendo feito e a melhoria da potência do sinal de internet criou a possibilidade de um compartilhamento dinâmico e imediato”, pontua o professor da PUC-Campinas.
No Brasil, o documentarista Denis Porto Renó, professor no Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Bauru, aloca os primórdios do videoativismo entre os anos 1970 e 1980, quando a prática era chamada de vídeo popular. Na linha de frente desse movimento estava a Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), que teve como um de seus fundadores Luiz Fernando Santoro, professor na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. Nos anos 1980, Santoro desenvolveu uma tese pioneira sobre a presença do videoativismo no país. “No final da década de 1970, sindicatos e movimentos sociais passaram a financiar a produção de trabalhos para combater o regime militar. Os vídeos populares não tinham preocupação com a linguagem cinematográfica e seu propósito era fazer as ideias circularem na sociedade”, conta Santoro, diferenciando essas produções dos filmes elaborados pelos coletivos atuais.
Santoro afirma que se os grupos recentes manifestam uma preocupação com a linguagem audiovisual inexistente no passado, eles também apresentam pouca circulação nos espaços de formação da opinião pública. Por outro lado, a ABVP criava políticas para disseminar o vídeo popular em todo o país nas décadas de 1970 e 1980. Entre essas políticas estavam projeções nas sedes de sindicatos e entidades sociais e por meio da TV dos Trabalhadores. A associação também mantinha parcerias com escolas para que os professores pudessem alugar os vídeos produzidos e projetar em sala de aula.
Além disso, Santoro lembra que nas décadas de 1970 e 1980 o videoativismo mostrava, por exemplo, as lutas pelo aumento do salário dos metalúrgicos, enquanto hoje os coletivos seguem pelo caminho da expressão cultural e da representação de identidades. “Em um ambiente de maior participação democrática, o arco de reivindicações é mais amplo e abarca questões mais especializadas de direitos sociais e cidadania”, compara Noel Carvalho, professor da Unicamp.
Cenário de desmonte
O fenômeno dos coletivos da década de 2000 passou por transformações. Hoje, diante de um cenário de recessão econômica e cortes nos gastos públicos, a situação se tornou pouco favorável. A rede CVP, por exemplo, foi desmobilizada. “Além de questões pessoais entre os participantes dos grupos, mudanças políticas e econômicas do país também impactaram a produção de vídeos na medida em que há menos verbas, editais e espaço para interlocução com o poder público”, avalia Aderaldo. De acordo com ele, o Cinescadão foi reconfigurado de forma diferente da época em que ele o estudou, porém segue atuando. O pesquisador identifica, no entanto, o surgimento de novos coletivos, alguns formados apenas por mulheres e que adotam como questão central a desigualdade de gênero e a temática racial. “O videoativismo é um campo dinâmico, que muda conforme a temperatura política dos tempos”, conclui o pesquisador.
Livros
ADERALDO, G. Reinventando a cidade – Uma etnografia das lutas simbólicas entre coletivos culturais videoativistas nas “periferias” de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2017.
SANTORO, L. F. A imagem nas mãos – O vídeo popular no Brasil. São Paulo: Summus, 1989.
SILVA, T. T. Ativismo digital e imagem – Estratégias de engajamento e mobilização em rede. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.
Filmes
Cinescadão. Imagens Peri Féricas.
Brigada Audiovisual da Via Campesina. Ensaio sobre a crise.