Em um artigo de cinco páginas publicado em 1969 na revista Science, o físico Herch Moysés Nussenzveig denunciou à comunidade científica internacional a perseguição política sofrida por pesquisadores no Brasil, além das condições precárias nas quais se fazia ciência na América Latina. O país vivia, então, um dos períodos mais tenebrosos da ditatura militar, e suas instituições científicas, muitas ainda incipientes, sofriam com a descontinuidade de verbas e o descaso dos governantes, o que motivou a migração de parte de seus melhores quadros para o exterior. À época professor na Universidade de Rochester, nos Estados Unidos, Nussenzveig acolheu muitos dos que tiveram de deixar o Brasil e articulou protestos que chegaram ao então presidente Artur da Costa e Silva (1899-1969). Essa foi apenas uma das vezes em que o físico veio a público em defesa da ciência. Mais tarde, de volta ao Brasil, se manifestaria novamente contra ações que julgava prejudicar a comunidade científica.
Estudioso do arco-íris e da auréola, dois fenômenos ópticos que considerava ser dos mais belos da natureza, Nussenzveig foi ainda um pesquisador apaixonado pelo ensino da física: organizou cursos, criou departamentos e laboratórios de física nas universidades brasileiras e escreveu de próprio punho uma respeitada coleção de livros didáticos, até hoje adotada em cursos de graduação. Foi ainda um integrante dedicado dos grupos que ajudaram a organizar a estrutura atual de financiamento da pesquisa nacional. Nussenzveig morreu no sábado 5 de novembro no Rio de Janeiro, cidade para a qual havia se transferido definitivamente no início dos anos 1980. O professor Moysés, como os discípulos o chamavam, estava com 90 anos e a saúde debilitada desde 2020, após uma cirurgia nos rins. Deixou a mulher, a química Micheline, com quem se casou durante a final da Copa do Mundo de 1962, além de três filhos – a matemática Helena, o bioquímico Roberto e o físico Paulo – e seis netos.
“Perdemos uma luz intensa, um farol”, escreveu o físico Luiz Davidovich, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), em uma nota publicada em 6 de novembro no site da ABC. Após ser considerado subversivo e expulso do curso de física da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) em 1969, Davidovich foi recebido em Rochester por Nussenzveig, que o orientou durante o doutorado e por quem nutriu uma amizade que durou toda a vida. “Cientista renomado, autor de artigos e livros prestigiados internacionalmente, comprometido com o ensino de ciência, defensor destemido de cientistas perseguidos e do apoio à ciência, Moysés fará muita falta nesses tempos desafiadores”, completou Davidovich no texto.
Nussenzveig nasceu em São Paulo em 23 de agosto de 1932, embora o registro oficial indique a data de 16 de janeiro do ano seguinte. Era o terceiro filho de Michel e Regina, que chegaram ao Brasil em 1925 fugindo da pobreza e do antissemitismo na Polônia. Cresceu no bairro do Bom Retiro, na região central da capital paulista, onde iniciou os estudos no Grupo Escolar Prudente de Morais, próximo à Pinacoteca do Estado – estudou em escolas públicas até o final da graduação. Com o irmão do meio, Victor, que se tornaria um imunologista de renome internacional, frequentava o Jardim da Luz e a biblioteca municipal infantil para ler as obras de Monteiro Lobato, Dostoiévski e Júlio Verne. Amante de filmes, Nussenzveig frequentou o Centro de Estudos Cinematográficos do Museu de Arte de São Paulo e cogitou seguir carreira em cinema. Depois de muita dúvida, optou por outra paixão, a matemática. Ao final do segundo grau (atual ensino médio), venceu um concurso literário na Aliança Francesa e ganhou uma bolsa de estudos de um ano do governo da França. Foi para Paris, onde cursou o primeiro ano de matemática na Universidade Sorbonne.
Por influência de um colega de ginásio, o físico Ernst Hamburger (1933-2016), no retorno ao Brasil, em 1951, Nussenzveig foi estudar física na Universidade de São Paulo (USP), que reconheceu o tempo de estudos na Sorbonne e permitiu seu ingresso no segundo ano, sem vestibular. “Passei boa parte do bacharelado como aprendiz de físico experimental”, contou Nussenzveig em uma entrevista anos atrás (ver Pesquisa FAPESP nº 173). Perto do final do curso, começou a se interessar pela física teórica e, como disse mais de uma vez, teve a sorte de encontrar um bom professor: o físico teórico norte-americano David Bohm (1917-1992), que chegou à USP como professor visitante com cartas de recomendação de Albert Einstein (1879-1955) e de J. Robert Oppenheimer (1904-1967), o pai da bomba atômica norte-americana. Bohm havia sido aluno de Oppenheimer na graduação e se tornou professor na Universidade de Princeton. Com fama de comunista, foi demitido por se recusar a testemunhar em um interrogatório da comissão coordenada pelo senador Joseph McCarthy (1908-1957). Quando deixou o Brasil, Bohm foi substituído na USP por outro estrangeiro, Guido Beck (1903-1988), nascido em Reichenberg (hoje Liberec, na República Tcheca), que havia trabalhado com os criadores da mecânica quântica.
Nussenzveig fez seu doutorado na USP, sob a orientação de Beck, de quem ficou muito próximo, e depois realizou estágios de pós-doutorado nos Países Baixos, na Inglaterra e na Suíça. Em 1960, de volta ao Brasil, instalou-se no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro. Com o Brasil em crise econômica, seguiu o conselho de Beck e foi para os Estados Unidos, com Micheline e Helena ainda bebê. Passou uma temporada na Universidade de Nova York e outra em Princeton, antes de ser contratado por Rochester. “O que deveria ser um estágio de um ano tornou-se uma diáspora de quase 13 anos”, lembrou o filho Paulo, professor do Instituto de Física (IF) da USP e pró-reitor de pesquisa e inovação da universidade, em um texto publicado em 5 de novembro no Jornal da USP. Nos Estados Unidos, Nussenzveig denunciou a perseguição do regime militar aos pesquisadores brasileiros e auxiliou professores que haviam sido cassados.
A convite do físico José Goldemberg, retornou para a USP em 1975, onde criou no IF o Departamento de Física-matemática. “Comecei a dar aula no curso de pós-graduação, mas logo percebi que o curso mais importante a ser dado era o de graduação, particularmente física básica. Como não tinha um texto disponível que eu achasse adequado, resolvi fazer o meu”, contou Nussenzveig em 2010 a Pesquisa FAPESP. Nascia assim a coleção Curso de física básica, manuscrito em suas primeiras edições e agraciado com o prêmio Jabuti em 1999. “Meu pai sempre teve paixão pelo ofício de professor. Produziu cuidadosas notas de aula, muitas das quais se tornaram livros”, afirmou Paulo no Jornal da USP.
Contra a sua vontade, dirigiu o IF por quatro anos, antes de se transferir para a PUC-RJ e depois para a UFRJ, onde se aposentou. Nesta última, criou e coordenou o Laboratório de Pinças Ópticas, tema que combinou seu antigo amor pela óptica com uma paixão mais recente, mas não menos intensa, pelas ciências da vida. “A dimensão atemporal está presente em seus trabalhos científicos, que não tratavam de temas momentaneamente na moda e continuam a ser referência obrigatória muitos anos depois de publicados”, afirmou Davidovich sobre Nussenzveig, destacando três obras: Theory of the rainbow, no qual descreve a física do arco-íris; Theory of the glory, sobre o efeito auréola; e Difraction as tunneling, no qual reinterpreta o fenômeno da difração da luz. Pelo desenvolvimento das duas primeiras teorias, ganhou em 1986 o prêmio Max Born, concedido pela Optical Society of America.
Desde seu retorno ao Brasil, Nussenzveig participou de importantes comissões, como a que estruturou o Programa de Apoio do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT), do então Ministério da Ciência e Tecnologia, e idealizou o Programa de Laboratórios Associados, que serviu de inspiração para o Programa de Núcleos de Excelência (Pronex) do ministério, que apoiava por períodos mais longos o trabalho de grupos já consolidados. Foi fundador da Coordenação de Programas de Estudos Avançados (Copea) da UFRJ, um programa interdisciplinar com ciclos de palestras para o público geral, dadas por especialistas do Brasil e do exterior.
Há pouco mais de uma década, após a aposentadoria compulsória da universidade, trabalhou com pesquisadores de outras áreas para reeditar os kits de ciência que existiram nos anos 1970 e estimularam crianças e adolescentes a se tornarem pesquisadores – por mudanças no cenário político e econômico, o projeto, infelizmente, não foi adiante. Além de pesquisador e professor, também se dedicou à divulgação científica. “Como divulgador da ciência, escreveu diversos livros para o grande público e organizou, durante muitos anos, os ciclos de palestras da Copea”, conta o físico Paulo Americo Maia Neto, da UFRJ. Em 2019, Nussenzveig lançou seu último livro de divulgação científica: De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? Como a ciência explica a origem e o funcionamento da vida.
Artigos científicos
NUSSENZVEIG, H. M. Migration of scientists from Latin America. Science. v. 165, n. 3900, p. 1328-32. 26 set. 1969.
ALVES DE ABREU, A. et al. Entrevista Herch Moysés Nussenzveig. Ciência e Cultura. v. 60, especial 1. jul. 2008.