A imunologista brasileira Ruth Nussenzweig não terá a chance de conhecer o desempenho na vida real de uma vacina contra a malária produzida a partir dos estudos que ela e seu marido, o também imunologista Victor Nussenzweig, desenvolveram nas últimas décadas. Produzida por uma empresa farmacêutica multinacional a partir da fusão de uma proteína da superfície do parasita causador da malária (Plasmodium falciparum) e outra da superfície do vírus da hepatite B, a vacina será aplicada a partir deste ano em 360 mil bebês de áreas com alta incidência de malária de Gana, Malauí e Quênia. Pioneira no estudo de diferentes imunizantes contra a malária, Ruth morreu na noite de domingo, 1º de abril, em consequência de uma embolia pulmonar em Nova York, onde o casal vivia desde meados dos anos 1960, após deixar o Brasil no regime militar. Ela tinha 89 anos e estava com a saúde debilitada havia alguns anos, desde que sofreu uma fratura grave após uma queda.
Filha do casal de médicos de origem judaica, Eugenia e Baruch Sonntag, Ruth nasceu na Áustria em 20 de junho de 1928 e emigrou com os pais para o Brasil pouco após seu país natal ter sido anexado pela Alemanha nazista, em 1938. Graduou-se em medicina na Universidade de São Paulo (USP), onde conheceu Victor, seu marido e companheiro por toda a vida. Ainda no curso médico, ambos iniciaram a carreira de pesquisador no mesmo laboratório, estudando a doença de Chagas. Depois de um estágio na França, Ruth e Victor retornaram a São Paulo para, em 1963, embarcar para outra temporada de estudos no exterior, desta vez em Nova York. Ruth trabalhou com o imunologista húngaro Zoltán Óváry e Victor com o imunologista venezuelano Baruj Benacerraf, ambos na Universidade de Nova York (NYU). O casal tentou voltar para o Brasil após o golpe militar de 1964, mas, diante do ambiente pouco favorável na Faculdade de Medicina da USP, retornou para a NYU. Lá, Benacerraf conseguiu para cada um o posto de professor assistente.
Foi na NYU, de onde quase nunca mais saiu, que o casal produziu suas contribuições científicas mais importantes para o desenvolvimento de compostos candidatos a vacina contra a malária. Em um artigo publicado na revista Nature em 1967, Ruth demonstrou, de modo pioneiro, que seria possível obter imunidade contra o protozoário causador da malária. Ela tratou com raios X exemplares do protozoário Plasmodium berghei, que infecta roedores, e depois os injetou em camundongos, que se tornaram imunes aos parasitas enfraquecidos. Testes posteriores, feitos com um número pequeno de pessoas saudáveis, indicaram que seria possível tentar usar essa estratégia para produzir uma vacina contra a forma mais letal de malária, causada pelo Plasmodium falciparum, comum na África. Esses trabalhos levariam, décadas mais tarde, o pesquisador Stephen Hoffman a criar a empresa de biotecnologia Sanaria, que produz parasitas atenuados para serem usados como imunizantes. Estudos publicados nos últimos anos, no entanto, sugerem que a proteção gerada por essa estratégia ainda é baixa.
Nas décadas seguintes, Ruth e Victor conseguiriam identificar qual proteína do protozoário – a circunsporozoíta – ativava o sistema de defesa dos mamíferos. Eles clonaram seu gene e a produziram em laboratório usando bactérias como biofábricas. Publicado em 1984 na Science, esse trabalho levaria ao desenvolvimento de outra linha de compostos candidatos a vacina, entre os quais o RTS,S, que será testado em bebês na África, produzido a partir de uma proteína do plasmódio e outra do vírus da hepatite B. “Sem a estrutura gênica da proteína circunsporozoíta não se chegaria à vacina RTS,S”, afirma a imunologista Silvia Boscardin, professora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP que trabalhou com o imunologista Michel Nussenzweig, filho de Ruth e Victor. “Ruth era uma pessoa extremamente persistente, acreditou muito na vacina.”
Na NYU, Ruth e Victor formaram uma legião de imunologistas que hoje trabalham no mundo todo. Saudosa do Brasil, Ruth sempre demonstrou desejo de retornar. “Meus amigos estão aqui”, afirmou em uma entrevista que ela e o marido concederam a Pesquisa FAPESP em 2004 (ver Pesquisa FAPESP nº 106). Até houve tentativas de se fixar novamente no país, mas nenhuma foi duradoura.
Breve retorno
A partir de 2010, Ruth e Victor passaram a frequentar o Brasil algumas vezes por ano para desenvolver um trabalho com um antigo colaborador, o imunologista Maurício Martins Rodrigues, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que havia feito pós-doutorado sob a supervisão de Ruth nos anos 1990. “Ruth e Victor estavam convencidos de que era preciso tentar desenvolver uma vacina também contra o Plasmodium vivax, causador da maior parte dos casos de malária nas Américas”, conta a imunologista Irene Soares, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP e viúva de Rodrigues, morto em 2015, aos 53 anos, em consequência de complicações decorrentes de um transplante de rim. Da cooperação surgiu um composto precursor de uma vacina que Irene e colaboradores testam atualmente – os resultados mais recentes foram publicados em janeiro na Scientific Reports, em um artigo assinado também por Ruth.
Em 2012, Victor e Ruth obtiveram um financiamento da FAPESP na modalidade São Paulo Excellence Chairs (Spec) para coordenar na Unifesp a caracterização de enzimas essenciais para o desenvolvimento do plasmódio e buscar inibidores com potencial de combater a malária. “Tínhamos a expectativa de que Ruth pudesse ganhar o Nobel por seus estudos que mostraram ser possível produzir imunizantes contra a malária”, diz Irene.
“Ruth sempre foi uma líder, apostava nas pessoas e formou um departamento de parasitologia de prestígio na NYU, que dirigiu até alguns anos atrás”, conta o parasitologista Sergio Schenkman, professor da Unifesp que estagiou sob a orientação de Victor Nussenzweig nos anos 1980. “Ela era uma pessoa arrebatadora, que conseguia convencer pesquisadores, diretores de empresa e políticos de que era preciso tentar desenvolver uma vacina para combater a malária.”
Na carreira, Ruth e Victor acumularam prêmios e homenagens. Em 2013, ela foi a primeira pesquisadora brasileira eleita membro da Academia de Ciências dos Estados Unidos. Em 2015, ela, Victor e a farmacologista chinesa Tu Youyou receberam o prêmio da Fundação Warren Alpert, entregue a pesquisadores que contribuem para prevenção, tratamento ou cura de doenças humanas. Ruth deixa o marido e os filhos Michel, André e Sonia, todos pesquisadores.
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