Cientistas deveriam evitar usar palavras como “miraculoso”. Mas, se houver porventura uma razão para abrir uma exceção, ela é o resveratrol. Essa pequena molécula não-tóxica encontrada em ervas medicinais da Ásia e no vinho tinto está sendo testada clinicamente em humanos para tratar câncer de cólon e herpes oral; em roedores, protege contra desordens inflamatórias, derrame, infarto do miocárdio, traumas na medula espinhal e doenças cardíacas e é um dos mais eficazes agentes químicos preventivos contra o câncer que se conhece. Ninguém sabe realmente como o resveratrol produz esses feitos, mas há pouca dúvida de que esse conhecimento poderia abrir novas avenidas para o desenvolvimento de drogas realmente revolucionárias.
O texto acima, nada comedido, foi literalmente extraído do parágrafo de abertura de um artigo publicado em abril por David Sinclair, patologista de 36 anos da Escola Médica de Harvard, na Nature Genetics, uma das revistas científicas de maior impacto. Sinclair é o chefe de uma equipe de pesquisadores que, há dois anos, aumentou em 70% o tempo de vida da levedura Saccharomyces cerevisiae administrando ao fermento apenas o resveratrol. Essa substância pertence à categoria dos flavonóides – compostos que aportam cor, sabores e sensações como amargor e adstringência aos vinhos –, aos quais se atribuem propriedades vasodilatadoras e antioxidantes. A exemplo do levedo, outros organismos, como o verme Caenorhabditis elegans, atestam os efeitos positivos do resveratrol como candidato à molécula da longevidade em experimentos feitos em diversos laboratórios do mundo. Inclusive no Brasil.
O geneticista Gilson Cunha, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), verificou que doses ínfimas da substância aumentam em 30% a longevidade da Drosophila melanogaster, a popular mosca-da-fruta. “Estudos com invertebrados, mamíferos e em cultura de tecidos sugerem que o resveratrol poderia, até certo ponto, imitar alguns efeitos benéficos de uma dieta com restrição de calorias, um procedimento que induz ao prolongamento da vida”, diz Cunha, que no início de junho participaria do Simpósio Internacional Vinho e Saúde, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, evento promovido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Uva e Vinho e o Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin). Os mesmos circuitos biológicos ativados pelo hábito diário de ingerir alimentos em quantidade moderada, uma família de genes denominada sirtuínas, seriam ligados pelo consumo parcimonioso de derivados da uva. “Em última análise, o que esse grupo de genes faz é controlar a atividade de funções vitais para a manutenção da sobrevivência das células”, explica Cunha.
Dois copos
Por ora, e provavelmente para todo o sempre, a forma mais agradável de tomar uma dose diária de resveratrol é desarrolhar um bom tinto, a primeira bebida alcoólica inventada pelo homem, há 9 mil anos. E de preferência vinho à base de Pinot Noir ou Merlot, duas variedades de uva que costumam produzir o composto em maior quantidade, e beber moderadamente. Algo como dois ou três copos, não mais do que uns 300 mililitros para os homens e um pouco menos para as mulheres. Vários estudos epidemiológicos sugerem que o risco de morte por problemas cardíacos e até câncer é menor entre as pessoas que ingerem baixas quantidades de álcool, sobretudo vinho tinto, do que entre os abstêmios. “Em relação às doenças cardiovasculares, as evidências parecem mais convincentes. Quanto ao câncer, é preciso cuidado na interpretação dos estudos”, afirma o oncologista Gilberto Schwartsmann, da Faculdade de Medicina de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mais no Merlot nacional
O álcool tem sabidamente efeito cancerígeno em animais e seu consumo abusivo favorece o aparecimento de vários tipos de câncer no homem. “Contudo, alguns trabalhos sugerem que o vinho tinto, em doses baixas, pode atenuar, em parte, esse risco, provavelmente por conter quantidades significativas de substâncias com efeito potencialmente protetor”, pondera Schwartsmann. Embora não haja consenso, alguns estudos indicam que o suco de uva teria efeitos quase iguais aos do vinho, sendo uma alternativa para quem não quer ou não pode tomar álcool.
Se os efeitos do resveratrol forem parecidos com as hipóteses levantadas pelos cientistas, há motivos de sobra para se fazer um brinde. E nem é preciso recorrer ao produto importado. Um trabalho feito pelo químico André Souto, da Faculdade de Química da PUC-RS, indica que a concentração de resveratrol nos vinhos tintos brasileiros pode ser uma das mais altas do mundo. O pesquisador analisou as concentrações de transresveratrol, uma forma da molécula, em 36 amostras de vinhos tintos nacionais, e chegou a uma taxa média de 2,57 miligramas do composto por litro da bebida. “Só tenho conhecimento de concentrações médias mais elevadas em vinhos franceses”, diz Souto, que publicou o estudo em 2001 no Journal of Food Composition and Analysis. Os níveis mais elevados do composto foram encontrados em produtos feitos com a uva Merlot.
Uma explicação para a grande presença do resveratrol no vinho tinto brasileiro seria o clima da Serra Gaúcha, onde se produz cerca de 90% da bebida nacional. A região é úmida e as videiras estão mais sujeitas a ataques de fungos e microorganismos. Sob perigo, a planta aumenta a produção do resveratrol, que a protege da ação dos patógenos. O processo de produção dos vinhos tintos faz com que eles tenham mais flavonóides que os brancos. Para reduzir a diferença, experimentos da Embrapa tentam aumentar os níveis de resveratrol e outros compostos no vinho branco.
Provavelmente, a maior parte dos estudos atuais sobre os possíveis efeitos benéficos do vinho tinto ou de derivados da uva está na área de cardiologia. No Brasil não é diferente. O farmacologista Roberto Soares de Moura, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em artigo publicado em 2002 no Journal of Pharmacy and Pharmacology, sugeriu, como haviam feito outros autores, que o consumo moderado de vinho tinto pode estimular a dilatação dos vasos sangüíneos e reduzir os níveis de pressão arterial. Durante 30 dias, o pesquisador deu para ratos com hipertensão induzida um extrato não-alcoólico obtido da casca da uva Isabel, variedade usada para produzir vinhos comuns. “A redução na pressão foi significativa”, afirma Moura. Antes desse trabalho, ele obtivera resultados semelhantes num experimento com extrato não-alcoólico da casca da uva Cabernet Sauvignon, variedade nobre.
Em ambos os casos, o etanol foi retirado do preparado administrado nos animais para que não houvesse dúvida de que os efeitos positivos derivavam de sua parte não-alcoólica. “Já temos a patente sobre o método de obtenção do extrato e a idéia é produzirmos um fármaco com efeitos semelhantes aos do vinho tinto”, diz Moura. Sem etanol, o extrato poderia ser indicado para pessoas que precisam reduzir a pressão arterial e não podem tomar bebidas alcoólicas. Mulheres grávidas que sofrem de eclampsia (um tipo de hipertensão que coloca em risco a vida da gestante e do bebê) poderiam ser usuárias do produto, segundo o farmacologista da Uerj.
Antes dos anos 1990 as pesquisas na área de saúde com o vinho e seus compostos, dos quais o resveratrol é hoje a maior vedete, eram vistas com certo desdém pela comunidade científica. Essa visão era compreensível e justificável. Entre o fim do século 19 e o início do 20 a ciência médica começou a associar claramente uma série de problemas de saúde à ingestão excessiva de álcool. Hoje mais de 60 doenças exibem o álcool como fator de risco e a Organização Mundial da Saúde estima que 4% das mortes decorrem de problemas de saúde relacionados ao consumo sem controle do álcool.
Ainda assim, historicamente não se pode negar que entre a Antigüidade e o século 18 o vinho teve um papel central na medicina. Quase cinco séculos antes de Cristo, o grego Hipócrates, o chamado “pai da medicina”, dava vários usos para o vinho, como desinfetante, remédio para várias condições clínicas, veículo para outras drogas e parte de uma dieta saudável. Até o final do século 19, diluída, a bebida chegou a ser usada para desinfetar a água a ser tomada. Sem negar os óbvios malefícios do álcool em excesso, os trabalhos contemporâneos sobre os possíveis benefícios à saúde do consumo parcimonioso do vinho tinto resgatam, sem o caráter místico e os exageros de outrora, a adoção controlada da bebida como um componente de uma dieta saudável. A descoberta do chamado paradoxo francês foi fundamental para a mudança de atitude.
Estilo de vida
Era o ano de 1992 e um estudo mostrou que os franceses, apesar de consumirem alimentos ricos em gordura saturada, tinham um baixo índice de problemas cardiovasculares quando comparados aos habitantes de outros países com dietas semelhantes. Serge Renaud, o principal autor do trabalho, atribuiu a pouco incidência de infartos ao consumo de vinho, hábito arraigado na terra de Napoleão. “Era um trabalho epidemiológico, que não estabelecia relação de causa e efeito entre bebidas alcoólicas e doenças cardiovasculares”, comenta o cardiologista Protásio Lemos da Luz, do Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que estuda a ação benéfica de componentes do vinho e do suco de uva na dilatação das artérias e veias e na redução da formação de placas de gordura nos vasos sangüíneos (veja reportagem na edição nº 109 de Pesquisa FAPESP).
“Outros componentes da dieta, o hábito de fumar, fatores genéticos, o estresse e a prática de exercícios poderiam desempenhar um papel no paradoxo.” É verdade. Não há dúvida de que a biologia e o estilo de vida das pessoas, que transcende em muito o hábito de tomar ou não vinho, são determinantes na gênese dos males do coração, câncer e outras doenças. Agora, a julgar pelas evidências científicas que se avolumam, a bebida primordial da humanidade, abençoada pela Igreja Católica com metáforas divinas, se consumida com moderação, pode ser benéfica.
Se prosperarem as pesquisas do enólogo Mauro Celso Zanus, da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, os brasileiros terão em breve vinho branco nacional rico em flavonóides, entre os quais o tão badalado resveratrol. Devido ao seu processo tradicional de produção, esse tipo de bebida apresenta geralmente apenas 10% dos compostos aparentemente benéficos à saúde contidos no vinho tinto. “Queremos fazer um vinho branco com cerca de 40% dos flavonóides da Cabernet Sauvignon e estamos quase chegando lá”, afirma Zanus, que desenvolve seus trabalhos com a BRS Lorena, cultivar de uva branca e aromática lançada pela Embrapa há quatro anos. Para atingir o objetivo, o pesquisador introduz a maceração, um procedimento adotado normalmente na fabricação de vinhos tintos, no processo de produção da bebida feita com Lorena.
A maceração consiste em deixar por alguns dias o suco de uva recém-fermentado em contato com as cascas. Seu objetivo é extrair uma série de compostos fenólicos presentes nessa parte do fruto, como matéria corante e flavonóides. Não se pode, no entanto, errar a mão na maceração, sob pena de descaracterizar completamente o produto final ou agredir o paladar de consumidores mais exigentes. A bebida pode ficar muito amargo. “Algumas experiências no exterior com a Chardonnay (uva branca) resultaram em vinhos não atraentes”, pondera o enólogo. Como a Embrapa vai requerer a patente sobre a receita para a produção de vinhos brancos com mais flavonóides, alguns detalhes do experimento não podem ser divulgados. Mas o tempo ideal de maceração para a Lorena não deve exceder 15 dias. Em 2006 os testes deverão estar terminados e, no ano seguinte, se as pesquisas não azedarem, um produto comercial será lançado pela Embrapa.
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