Há aproximadamente 12 milhões de anos, a Europa apresentava um desenho bem diferente do atual. A oeste havia um arquipélago que a separava da África. Ao sul, as massas de terra dos Bálcãs e da Ásia Menor (a atual Turquia) também estavam desconectadas, abrindo espaço para a formação de lagos que dariam origem ao mar Egeu. Sua formação natural mais espetacular era um gigantesco lago, o Paratethys, um corpo de água salobra que ocupava uma área cerca de 10% maior do que o Mediterrâneo atual e se encontrava encaixado entre o leste dos Alpes, no centro da Europa, e o moderno Cazaquistão, na Ásia. Não se sabe quando exatamente o Paratethys se isolou da porção norte de um antigo oceano global, mas um estudo publicado em junho no periódico Scientific Reports indica mais precisamente quais eram os limites do maior lago conhecido formado sobre a Terra e como foi sua conturbada história geológica do início ao fim, marcada por expansões e encolhimentos. Os mares Cáspio, Negro e de Aral são resquícios modernos do megalago, que deixou de existir ao se reconectar ao oceano por volta de 6,9 milhões de anos atrás.
As dimensões desse grande corpo de água aprisionado, hoje desaparecido, surpreenderam os pesquisadores. “Após analisar mapas e dados, quando finalmente calculamos a superfície e o volume de água do lago, ficamos espantados. Ele era muito maior do que imaginávamos. Refizemos as medições várias vezes para nos certificar de que estávamos certos”, afirma o geólogo romeno Dan Palcu, principal autor do artigo, que faz estágio de pós-doutorado no Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP) com bolsa da FAPESP e iniciou os estudos na região durante seu doutorado na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos. No auge do Paratethys, suas águas salobras chegaram a se espalhar por uma área de 2,8 milhões de quilômetros quadrados. O lago, em sua época de maior esplendor, armazenou 1,77 milhão de quilômetros cúbicos (km3) de água, mais de 10 vezes o conteúdo líquido de todos os lagos modernos.
O interesse de Palcu pelo antigo megalago surgiu durante a infância, nas montanhas da Transilvânia. Mesmo morando a várias centenas de quilômetros do oceano, ele formou uma coleção de fósseis marinhos, todos encontrados no quintal de casa. “Para ir ao mar mais próximo, que era o Negro, precisava cruzar duas montanhas e viajar quase 1.000 km”, recorda o geólogo. A profusão de vestígios desse tipo era um sinal de que, como diziam os livros, houvera ali em um passado remoto um grande lago com água salobra ou uma espécie de mar interno.
Para recontar a história do Paratethys, Palcu e colegas da Romênia, da Rússia, da Holanda e da Alemanha, coautores do estudo, usaram dados estratigráficos, de diferentes camadas de rochas da região, e reconstruções paleogeográficas feitas em modelos 3D. Os trabalhos de sedimentologia e paleomagnetismo ocorreram a partir de amostras de camadas coletadas nas regiões do Cárpatos do leste e do sul da Romênia, da costa oeste e sul do mar Negro (Bulgária e Turquia) e dos vales ao sul das montanhas do Cáucaso (Geórgia e Azerbaijão). Apesar de os pesquisadores terem conseguido estabelecer uma linha do tempo das idas e vindas do megalago, muitas questões ainda permanecem em aberto.
Cheias, secas e baleias-anãs
Durante o período de maior estabilidade do Paratethys, entre 11,6 milhões e 9,75 milhões de anos atrás, uma fauna peculiar se desenvolveu naquele mundo aquático à parte, sem nenhum tipo de conexão com outros oceanos. Foi nesse intervalo de tempo que versões menores de baleias e golfinhos que viviam originalmente nos mares se adaptaram ao interior do megalago. Espécies como Cetotherium riabinini, um tipo extinto de baleia-anã, com apenas 3 metros de comprimento, são originárias das águas fechadas de Paratethys.
Há 9,6 milhões de anos, o megalago passou a sentir mais fortemente algumas mudanças climáticas. Uma fase mais seca fez com que o nível das águas regredisse 150 metros. Com isso, surgiram bacias mais periféricas de água doce e uma área central bem mais salgada, onde está o atual mar Negro. Com a divisão, por causa da mudança bioquímica na água, muitas espécies não sobreviveram. Entre 9,5 milhões e 7,65 milhões de anos atrás, o megalago passou por três períodos de enchimento e três etapas de dessecação (perda de água) parcial.
Nos momentos de cheia, a fauna que sobreviveu aos pequenos cataclismas conseguiu repovoar as águas do Paratethys. Mas a mais recente seca, entre 7,9 milhões de anos e 7,65 milhões de anos, atingiu proporções inéditas. As águas baixaram 250 metros. Com a nova divisão das bacias periféricas e centrais a toxicidade da água atingiu níveis elevados. Mais uma grande extinção ocorreu. Logo depois, a região voltou a passar por um grande período úmido e as chuvas e a água que chegavam pelos rios fizeram o lago voltar aos níveis dos tempos de estabilidade. Por fim, há 6,7 milhões de anos a região se conectou novamente com o oceano, por meio do mar Egeu.
Durante os episódios de dessecação parcial, até um terço da água de Paratethys foi perdida por evaporação e sua superfície reduziu-se em 70%. “Esse deve ter sido um mundo pré-histórico pós-apocalíptico, uma versão aquática das terras devastadas dos filmes Mad Max”, compara o geólogo holandês Wout Krijgsman, da Universidade de Utrecht, coautor do artigo. A fauna do megalago apresenta muitos mistérios que permanecem sem solução. A maioria das espécies morreu. As poucas que sobreviveram desenvolveram descendentes muito resistentes que causam problemas em outros lagos. “Alguns moluscos conseguiram refúgio e evoluíram por milhões de anos na região do mar Cáspio”, conta Palcu. “Na década de 1950, quando os rios Volga e Dom na Rússia passaram a se conectar ao mar por meio de uma rede de canais que passam pelos mares Cáspio e Negro, alguns moluscos pegaram carona em navios e chegaram até os grandes lagos norte-americanos, onde dizimaram espécies nativas.”
As mudanças climáticas atuais podem fazer com que a conturbada história geológica do Paratethys volte a se repetir entre os corpos de água da moderna Eurásia. O mar Cáspio, o maior lago salgado do planeta, está ameaçado de dessecação, e o Negro, na parte que banha a Turquia, sofre em razão de um desastre ecológico recente. Uma gosma verde que se forma a partir das algas apareceu em grande quantidade em suas águas, um fenômeno atribuído à poluição e alterações no clima. Com os dados obtidos agora sobre a evolução do antigo megalago, os pesquisadores esperam contribuir para o desenvolvimento de modelos que possam prever com mais segurança o que pode ocorrer no interior dos continentes em épocas de estresse ambiental. “Quando comparamos a cronologia das crises enfrentadas pelo Paratethys com a história da Eurásia, observamos que os períodos críticos coincidem com mudanças na paisagem em toda essa região, com episódios de aridez na Arábia ou a perda de florestas tropicais, por exemplo, na Espanha”, comenta Palcu. “Não temos uma hipótese pronta sobre isso, mas parece que essas crises não são locais. Elas geram um efeito dominó que pode impactar regiões a milhares de quilômetros de distância.”
A evolução do antigo megalago da Eurásia também pode ser útil para entender melhor um fenômeno submerso encontrado perto da costa da região Sudeste do Brasil, o chamado pré-sal, depósitos ricos em petróleo e gás localizados abaixo de uma camada de sal situada entre 3.500 e 5.500 metros de profundidade do fundo do mar. “Ambientes como o do Paratethys, principalmente durante os períodos de dessecação parcial, devem ter sido similares às bacias que formaram o pré-sal do Atlântico”, compara o geólogo marinho italiano Luigi Jovane, do IO-USP, supervisor do pós-doutorado de Palcu. Segundo ele, o estudo sobre o Paratethys pode se tornar uma referência na compreensão dos lagos do pré-sal que surgiram antes da abertura do oceano Atlântico.
Suas histórias geológicas apresentam os mesmos ingredientes, mas com ordens invertidas. Na Eurásia, um oceano se transformou em um mar interno em razão de episódios de deposição de sal. Do lado de cá, a sequência do processo se deu ao contrário. “Primeiro, existiram lagos e, em seguida, formou-se o Atlântico Sul. Por essa analogia, a fase do megalago na Eurásia corresponde à do surgimento do pré-sal. Lá a história geológica está mais acessível, depositada em montanhas e morros, e é possível construir uma imagem precisa do passado. Aqui, essa história está no fundo do mar”, explica Jovane.
Projeto
Análise paleomagnética nos arquivos sedimentares de oceanos e mares epicontinentais para estudar estratificação dos oceanos e anoxia (nº 18/20733-6); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Luigi Jovane (USP); Bolsista Dan Palcu; Investimento R$ 305.246,34.
Artigo científico
PALCU, D. V. et al. Late Miocene megalake regressions in Eurasia. Scientific Reports. 1° jun. 2021.