NEGREIROSO compositor húngaro Franz Liszt (1811-1886), que reivindicou para si a autoria do recital-solo de piano no século 19, imitando Luís XIV, dizia: “Le concert c’est moi” (“O concerto sou eu”). A análise das transformações ocorridas com o intérprete-pianista desde a sua criação no século 19 até a pós-modernidade é o tema da tese de doutorado O Intérprete-Pianista no Fim do Milênio, defendida na Universidade de São Paulo (USP) por Sílvio Baroni – hoje professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) -, que contou com o apoio da FAPESP.
“Numa primeira parte, abordei a gênese desse intérprete, em um retrospecto histórico do Barroco ao Romantismo, enfatizando a influência de Liszt. Depois, há uma análise que evidencia o intérprete face às inovações tecnológicas ocorridas desde a invenção do fonógrafo até o computador”, diz. Baroni discute também a inserção do intérprete na indústria cultural e os paradigmas das diversas possibilidades da performance pianística contemporânea. A motivação para mergulhar em seu próprio mundo profissional veio da observação do meio.
“Não há muitas oportunidades nas salas de concertos e eu investiguei o que ocorria, bem como a razão dos fenômenos da música erudita, como Pavarotti. Estrelas como ele mostram que, em música, ou se ganham salários enormes ou não há espaço e retorno financeiro”, observa. Para tanto, entrevistou vários profissionais, entre os quais a célebre pianista Martha Argerich. Baroni inicia seu trabalho com um retrospecto do período da efervescência do teclado, no Barroco, até o compositor desvinculado do intérprete, no Romantismo. Esse foi o período da explosão pianística. “Os compositores estavam todos na França – como Chopin e Liszt – e eles não se relacionavam só com músicos, mas com todos os tipos de artistas. A obra de Liszt, por exemplo, liga-se à literatura.”
Segundo Baroni, também começa com esse compositor o conceito moderno de grande estrela da música. “Liszt tocava na Europa como rei. Ao contrário de Chopin, que preferia platéias pequenas, gostava de tocar para multidões. Entre outras coisas, criou um molde artístico que foi elaborado e chegou até os dias de hoje”, afirma. Em seguida, Baroni analisa como o instrumentista, ao entrar no novo século, deparou com o advento do registro – a gravação e o fonógrafo alteraram substancialmente a vida dos músicos, compositorese do público, já que os aparelhos entram nas casas, substituindo o som que se poderia ter ao vivo. “De repente podia se ter aquela bolachona pesada que trazia um grande pianista para a sua casa tocando lindamente a Sonata Apassionata de Beethoven.”
Daí, foi preciso passar à análise da indústria cultural. O ponto central é a questão da cultura de massas versus cultura elitista, que existe também na música erudita. Por exemplo, o Bolero, de Ravel, cuja gravação é adquirida por milhares de pessoas, ou Carmina Burana, de Carl Orff. “São músicas que muitos compram, mas nem sabem direito o que tem ali. As gravadoras vão jogando no mercado e tudo acaba massificado. As obras se tornaram clichês.” Um público mais informado vai escolher a música que quer ouvir e o intérprete que está tocando essa música: “‘Quero Chopin com Rubinstein ou com Guiomar Novaes’, por exemplo. É uma outra postura diante da cultura”, explica.
Outro exemplo é a marca estabelecida pelo maestro Herbert von Karajan na Deustche Grammophon. “O Karajan gravava com quem e quando queria. Se não, o músico não gravava com a Filarmônica de Berlim. Então, há uma marca pessoal aliada à gravadora”, afirma. Não se pode esquecer, também, a questão do valor cultural da tecnologia. “Se antes o aparelho de CD e o próprio CD eram caros, hoje tudo está mais barato, o que significa a possibilidade de popularizar a música”, diz. Questões como a do intérprete que não consegue gravar nem tem acesso a grandes salas de exibição são outros temas do seu estudo.
“Há grandes pianistas que nunca gravaram sequer um CD”, lembra. Uma opção de vida? Para alguns, sim, porque não desejam estar inseridos na indústria cultural. Para outros, é falta de oportunidade. Dentro desse processo, existem os grandes concursos internacionais, que projetam intérpretes da noite para o dia. “São projeções rápidas que nem sempre duram e, às vezes, um pianista que nunca participou de um concurso tem uma carreira mais sólida.” O crítico de música é outro elemento a ser analisado. “Ele se faz presente na história cultural, é um agente que promove artistas e, às vezes, vem atrelado aos objetivos do mercado.”
Todas essas questões foram levadas aos artistas entrevistados. “Martha Argerich se disse impressionada porque sempre são teóricos escrevendo e não um pianista. Ela tem uma célebre frase: certa vez disse que amava tocar piano, mas não gostava de ser pianista, o que resume bem a vida desses artistas, porque eles têm concertos, gravação, viajam para uma cidade num dia e no outro alguém pergunta o que vão tocar em 2003.”
Na quarta e última parte, Baroni trata da sedução do intérprete, decorrente de tudo o que ele herdou – o recital, as gravações, o mercado e, finalmente, a concorrência. “O recital moderno consagrou isso. Quando você vai ao recital e ouve Horowitz ou Martha Argerich tocando, este pianismo, a técnica impecável, o estilo, está em contato com elementos que elevaram muito o padrão do profissional e, ao mesmo tempo, a concorrência.” Mas concorrência nunca foi problema para o intérprete-pianista brasileiro, cuja tradição remonta ao passado. Toda moça educada tinha de saber falar francês e tocar piano. Para reforçar isso, vieram para cá grandes mestres europeus, que ensinaram os jovens. “Guiomar Novaes, por exemplo, estudou com o maestro Luigi Chiafarelli, que não se limitava a fazer os alunos tocar piano, eles precisavam saber sobre artes plásticas, escultura, pintura”, conta. Não sem razão, quando Guiomar tocava, Mário de Andrade via elfos saindo em nuvens de seu teclado.
Com quantas teclas se faz um piano?
Apesar de se dedicar há 42 anos à arte de fazer pianos, Luiz Barão nunca ouviu falar de Chopin, Schubert, Liszt, Brahms, Mendelssohn ou Schumann. O paulista de 65 anos sabe, porém, que para se tocar uma boa música um pianista precisa que os 8 mil componentes do instrumento funcionem com a precisão de uma orquestra. “Um piano não pode falhar. Damos duro para que tudo dê certo”, afirma o marceneiro, que integra a equipe da única fabricante de piano no país: a Fritz Dobbert. O pouco entrosamento do operário com a história da música não é impedimento para que ele conduza com a habilidade de um maestro as etapas de fabricação do instrumento: corte da madeira, marcenaria do móvel, confecção das ferragens, teclado, mecanismo, martelaria, pintura, composição da parte mecânica, revisão, afinação e expedição. Na Fritz Dobbert, a montagem demora 90 dias.
O primeiro passo para a fabricação é dado com a aquisição da madeira, o componente mais importante do piano. A araucária chega à fábrica em toras, que ficam expostas ao sol e são secas em estufas. “A qualidade da madeira é o segredo para um bom instrumento, pois é o material responsável por 80% da peça”, revela o diretor da Fritz Dobbert, José Ribeiro de Souza Filho. Para ele, o procedimento para tratar a madeira é fundamental para que o piano funcione adequadamente e tenha maior durabilidade. “Um piano é confeccionado para durar a vida toda. Não é como um carro que pode ser trocado a cada novo modelo”, diz Souza Filho. “Nosso instrumento é tradicional. Temos como prática mudar o acabamento, mas a estrutura é sempre a mesma.”
Após o tratamento da madeira, a parte estrutural é unida a uma chapa metálica e a uma tábua harmônica. A partir da junção das três, são instaladas cordas com fio de aço revestidas com cobre em espessuras diferentes. Ao todo, um piano tem entre 216 e 227 cordas, variando de acordo com cada modelo. Para o mecanismo de cada tecla funcionar e produzir som são necessários 55 componentes. Como cada piano tem 88 teclas, apenas a mecânica tem, sem o suporte, 4.840 componentes.As últimas fases de fabricação são de acabamento e ajustes. Um simulador acusa os reparos necessários no instrumento e, em cabines acústicas, os pianos recebem a entonação e a afinação necessárias. O ajuste final de tons segue o padrão internacional com base na nota lá na freqüência de 440 ciclos. Após essa etapa está pronta a composição do piano, um instrumento de cordas percutíveis por martelos de madeira revestidos de feltro, com teclado, pedais e uma caixa de ressonância com cordas.
O processo de fabricação do piano diverge pouco entre os sete modelos verticais produzidos pela Fritz Dobbert. Para os dois de cauda, porém, a empresa importa o mecanismo, o abafador e o teclado, materiais que representam 45% do custo do produto. O preço do modelo de cauda varia de R$ 25 mil a R$ 35 mil. O vertical custa entre R$ 5 mil e R$ 8 mil. Hoje em dia, a produção mensal da empresa é de 100 pianos por mês. Em 51 anos de existência, a Fritz Dobbert já vendeu 85 mil unidades.
O projeto
O intérprete pianista na última década do Século XX (nº 95/02247-3); Modalidade Tese de doutorado; Orientador Amílcar Zani Netto – USP; Pesquisador Sílvio Baroni – USP