Em A paixão da igualdade, Vinicius de Figueiredo investiga a origem e o desenvolvimento da concepção moderna de igualdade. Com base no que o economista alemão Albert Hirschman (1915-2012) denominou de declínio do herói clássico, explora a hipótese de que, em substituição ao ideal aristocrático da distinção, surgiu no decorrer da modernidade uma forma de subjetividade caracterizada pela ideia de que todos são livres e iguais por natureza. Inspirado nas diferenças apontadas pelo pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) entre os processos revolucionários da Inglaterra do século XVII e da França do século XVIII, examina o surgimento desse novo modo de subjetivação em terras francesas. Ao tratar da paixão francesa pela igualdade, foca outra maneira de compreender a liberdade, cuja manifestação depende das condições de igualdade.
Com estilo elegante e cativante, retrata a constituição do indivíduo moral moderno, transitando habilmente por diferentes domínios e formas discursivas, indo do filosófico ao literário e da linguagem teatral para a pictórica. A rigorosa hermenêutica das obras de filósofos, literatos, artistas e dramaturgos é combinada com uma escrita ensaística, instigando o leitor a pensar sobre a construção simbólica da subjetividade moderna.
O primeiro capítulo descreve a moral de relevo, familiar nos círculos cultos na primeira metade do século XVII, caracterizada pela excepcionalidade do indivíduo que se destaca e se notabiliza, tornando sua conduta digna de estima. Ela é identificada na filosofia moral do francês René Descartes (1596-1650), cuja referência ainda é o modelo clássico, no qual o indivíduo virtuoso é aquele capaz de ordenar suas paixões e dirigir sua vontade em conformidade com o entendimento, a fim de afirmar sua existência singular. Ela também é reconhecida nas primeiras peças do dramaturgo francês Pierre Corneille (1606–1684), nas quais o herói é aquele capaz de superar os dilemas impostos pela contingência e pelas adversidades, distinguindo-se dos demais por sua tenacidade e resolução.
Já o segundo capítulo mostra a dissolução da moral de relevo e o advento de uma antropologia na qual as diferenças entre os indivíduos deixam de ser relevantes, tendo em vista que todos partilham da mesma miséria moral proveniente do pecado original. O filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) e os autores ligados a Abadia de Port-Royal são apresentados como os principais responsáveis pelo surgimento da imagem de um indivíduo cindido internamente e nivelado moralmente, representado nos personagens dos romances da francesa Madame de La Fayette (1634-1693) e nos protagonistas das peças do francês Jean Racine (1639-1699). O nivelamento moral pela miséria da condição humana teria sido ainda acompanhado de um nivelamento político, imposto pelo projeto absolutista de um poder monárquico centralizador que rebaixou a nobreza e uniformizou as condutas de seus súditos.
No terceiro capítulo são analisados os quadros do pintor francês Antoine Watteau (1684-1721), que representam um indivíduo anônimo, sem projeto, sem pertencimento, destituído de heroísmo e de singularidade, como se habitasse uma superfície sem fundo e sem história. No mesmo capítulo são examinados os contos filosóficos do francês Voltaire (1694-1778), nos quais os personagens são levados muito mais pelos acontecimentos e circunstâncias do que pela própria vontade e determinação. A miséria moral se seculariza e se estabelece no quadro das relações sociais.
Por fim, no último capítulo, é destacada a contribuição dos escritos filosóficos do francês Denis Diderot (1713-1784) e do suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) para a consolidação da ideia da igualdade moral. Se para Pascal é preciso entender o que o indivíduo deixou de ser, para Rousseau não é possível pensar o que é sem cogitar o que pode vir a ser. A igualdade aparece então como promessa de emancipação e a liberdade como ausência de desigualdade social.
Embora seja um estudo de histórias das ideias, concentrado no surgimento do indivíduo moral na França dos séculos XVII e XVIII, o Brasil parece estar continuamente no horizonte de reflexão. Num país fundado e construído na desigualdade, em que há uma verdadeira paixão das elites por ela, o livro chama a atenção para o fato de que sem igualdade não pode haver verdadeira liberdade.
Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e autor de Liberdade política (Almedina, 2020).
Republicar