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Paleontologia

A tênia e o tubarão

Fezes fossilizadas de peixe de 270 milhões de anos encontradas no Rio Grande do Sul carregam ovos do verme

Paula C. Dentzien-Dias Fezes fossilizadas de tubarão (alto) e detalhes dos ovos de tênia que estavam no interior do coprólito. Na última imagem, uma larva do verme parece estar dentro do ovoPaula C. Dentzien-Dias

Vestígios fósseis de um tubarão de água doce que viveu há 270 milhões de anos na área do atual município gaúcho de São Gabriel, 320 quilômetros a oeste de Porto Alegre, podem ser o registro mais antigo de infestação de um vertebrado por uma forma de tênia ou solitária. Um conjunto de 93 micro- estruturas de formato ovalado foi encontrado no interior de um coprólito (fezes petrificadas) do peixe e interpretado como ovos do parasita intestinal. A maioria dos ovos estava tomada por pirita, um dissulfeto de ferro apelidado de ouro de tolo, e parecia ter sido preservada antes de o verme ter tido a chance de rompê-los. Um deles se destacou dos demais. “Esse ovo contém provavelmente uma larva do parasita em desenvolvimento”, afirma a paleontóloga Paula C. Dentzien-Dias, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), principal responsável pela descoberta. A análise do conteúdo do raro coprólito, resgatado em rochas do período Permiano da formação geológica Rio do Rasto, foi publicada em 30 de janeiro na revista científica PLoS One.

Os vermes estavam escondidos dentro de um excremento de formato espiralado, uma marca registrada dos dejetos de tubarões, que media 5 centímetros de comprimento por 2 de diâmetro. O coprólito foi “fatiado” longitudinalmente para a obtenção de uma lâmina delgada, própria para a observação em microscópio óptico. O objetivo era buscar, no interior das fezes, fragmentos orgânicos que indicassem a dieta dos animais. Várias lâminas desse coprólito, e também de mais 13 obtidos na região, revelaram a presença de escamas e dentes de outros peixes. Uma delas, no entanto, apresentou uma grande surpresa: a presença de quase uma centena de diminutas estruturas ovais em seu interior.

Inicialmente os pesquisadores levantaram a hipótese de que poderia ser alguma estrutura de origem inorgânica, gerada durante o processo de fossilização. Mas uma observação mais detalhada da lâmina levou-os a outra conclusão. Tratava-se de uma série de ovos de tênia, quase sempre com as mesmas dimensões: 145–155 micrômetros de comprimento e 88–100 micrômetros de largura. A presença de pirita no coprólito é um indicativo de que o material foi exposto a condições com pouco ou nenhum oxigênio, favoráveis à preservação de fósseis. É sabido que esse mineral se forma apenas na ausência desse gás.

Por ter sido identificada em fezes fossilizadas de um peixe de água doce, essa antiga forma de solitária sugere que os primeiros hábitats desse verme eram dominados por lagos e rios. Seus primeiros hospedeiros teriam sido animais aquáticos, como os paleotubarões de São Gabriel. “Os novos ovos fósseis de tênia mostram que esses parasitas existiam há pelo menos 270 milhões de anos, mas eles devem ter surgido muito antes disso. O problema é achar vestígios preservados desses vermes”, diz Paula.

Em São Gabriel foram encontradas mais de 500 fezes fossilizadas de animais

Daniel das neves Em São Gabriel foram encontradas mais de 500 fezes fossilizadas de animaisDaniel das neves 

Hoje diferentes espécies de tênia podem ser encontradas em muitos animais, como suínos, bovinos e peixes. Se infestados pelo verme, alimentos mal lavados e carnes malpassadas podem transmitir ao homem duas doenças, a teníase e a cisticercose – em casos mais graves, a segunda pode ser fatal. Embora não tenha sido possível precisar a espécie de tênia que parece ter infestado o antigo tubarão, os vestígios do parasita guardam alguma semelhança com os ovos produzidos por vermes da ordem Tetraphyllidea. Cerca de 540 espécies de parasitas dessa ordem podem ser encontrados atualmente no intestino de tubarões.

Dotada de rochas sedimentares do Permiano Médio e Superior (270-250 milhões de anos atrás), a região de São Gabriel é rica em fósseis de vertebrados, invertebrados e plantas. Nesse solo composto de arenitos, siltitos e argilitos, condições especiais ao longo de milhões de anos permitiram a preservação das fezes fossilizadas, um tipo de vestígio orgânico do passado que tende a ser apagado pela ação do ambiente. Uma dose de sorte e olhos treinados para diferenciar uma simples rocha de um excremento petrificado foram essenciais para localizar o achado.

Coprolândia
Numa expedição de campo em 2010, Paula e outros paleontólogos gaúchos descobriram uma área de 100 metros de comprimento por 30 metros de largura – um pouco menor do que um campo oficial de futebol – com uma concentração de mais de 500 coprólitos, a maioria de tubarões. Alguns estavam enterrados no solo, outros tinham aflorado à superfície. O tamanho dos dejetos variava de 0,6 a 11 centímetros de comprimento. “Eram tantos coprólitos que até tropeçavam neles”, afirma, em tom de brincadeira, o paleontólogo Cesar Schultz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que não participou da expedição, mas é o coordenador do projeto de pesquisa, financiado pelo CNPq, e um dos autores do artigo científico. A pequena área repleta de fezes fossilizadas foi apelidada de Coprolândia.

A estranha concentração de coprólitos produzidos por peixes de água doce indica que havia ali uma lagoa aproximadamente 270 milhões de anos atrás. Mas como essa enorme quantidade de dejetos orgânicos foi parar, e se preservar, num canto desse extinto corpo d’agua, criando até a ilusão de que poderia ter existido um lugar predileto para os animais fazerem suas necessidades? Os pesquisadores acreditam que ocorreu um súbito período de intensa seca na região durante o Permiano e boa parte da antiga lagoa se evaporou rapidamente. Para não morrer, os animais tiveram de se aglomerar nos locais em que ainda havia água. Tal movimentação provocaria naturalmente uma concentração de fezes no reduto em que os peixes teriam sido confinados. “Achamos que a seca foi temporária e não chegou a causar a morte dos peixes”, comenta Schultz. “Não encontramos ossos fossilizados de animais ao lado dos coprólitos.”

Do meio milhar de excrementos petrificados resgatados em São Gabriel, 14 já foram analisados. O coprólito com ovos de tênia é, por ora, o que produziu dados mais excitantes, mas pode haver outras descobertas a serem feitas nos dejetos, impressões orgânicas do passado remoto.

Artigo científico
DENTZIEN-DIAS, P.C. et al. Tapeworm eggs In a 270 million-year-old shark coprolite. PLoS One. 30 Jan. 2013.

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