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Genética

A tripla hélice

Equipe de São Paulo identifica estrutura rara no material genético de moscas

Eduardo Gorab/USP Manchas rosa: triplas hélices produzidas em cromossomos de RhynchosciaraEduardo Gorab/USP

O material genético de todos os seres vivos, diz a literatura sobre o assunto, é composto por duas fitas espiraladas uma em volta da outra. É a famosa dupla-hélice do DNA, o ácido desoxirribonucleico, cuja configuração foi apresentada ao público em 1953 pelo físico Francis Crick e o biólogo James Watson. A descoberta lhes rendeu o Prêmio Nobel em 1962 e ficou cristalizada como retrato oficial do DNA. O que raramente se diz é que, antes do modelo de Watson e Crick, o químico Linus Pauling também tentara descrever como as moléculas, ou bases nitrogenadas, que formam o material genético – adenina, timina, citosina e guanina, mais conhecidas como A, C, T e G – se encaixam. A tripla hélice que ele propôs não se sustentava, mas em situações muito específicas as cadeias de DNA de fato parecem se associar aos trios. Entre os pesquisadores que investigam essa conformação pouco ortodoxa estão os geneticistas Eduardo Gorab e José Mariano Amabis, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).

Gorab e Amabis mostraram que três fitas de bases nitrogenadas se espiralam juntas em algumas zonas do material genético das moscas Rhynchosciara americana e Drosophila melanogaster. Essa conformação pouco usual parece concentrar-se na heterocromatina, região dos cromossomos onde a estrutura tripla pode contribuir para a compactação do material genético e onde quase não há atividade gênica, corroborando a ideia de que a conformação tripla funciona como um interruptor que desliga os genes. O estudo brasileiro começou há cerca de 20 anos, mas só foi publicado em 2009, na Chromosome Research.

Embora ainda não seja possível enxergar os componentes do DNA, hoje técnicas moleculares cada vez mais avançadas permitem aos poucos destrinchar o seu funcionamento. Para Linus Pauling, nos anos 1950, os modelos teóricos das bases adenina, timina, citosina e guanina eram como peças de um quebra-cabeça espalhadas sobre a mesa. Tratava-se de descobrir a melhor maneira de agregá-las. Já na época a versão de Pauling foi explicitamente refutada por Watson e Crick, e hoje ficou claro que ela viola certos princípios da química, mas a ideia de uma hélice tripla não foi de todo enterrada.

Olhar renovado
Um dos que continuaram a investigar a possibilidade foi o bioquímico Bernard Stollar, da Universidade Tufts em Boston, nos Estados Unidos. “Ele inaugurou uma nova fase no estudo de ácidos nucleicos [o DNA e o RNA]”, afirma Gorab. Stollar desenvolveu anticorpos que se acoplam a algumas composições de tripla hélice, um sistema que funciona como uma fechadura onde se encaixa perfeitamente uma chave, conforme expôs em 1974 na Nature. Mas ele moldou a fechadura com uma chave específica em mente: uma cadeia de DNA na qual se entrelaçavam duas cadeias de RNA, todas em fita única.

Mariano Amabis investigou mais a fundo essa ferramenta molecular durante o ano sabático que passou no laboratório de Stollar no final dos anos 1980. Lá ele descobriu que o anticorpo desenhado pelo norte-americano também reconhecia hélices triplas feitas só de DNA, o que abriu as portas para novas investigações. O trabalho passou duas décadas escondido nos caprichados cadernos de Amabis, agora aposentado pela USP, mas ressurgiu em conversas informais em torno de cafés ou aperitivos de fim de tarde. Gorab enfim conseguiu resgatar os cadernos de anotações e repetir os experimentos em seu laboratório paulistano, confirmando e ampliando os resultados. “A novidade não foi encontrar a tripla hélice, mas acrescentar uma nova ferramenta para estudar essa estrutura – os anticorpos de Stollar”, conta.

No genoma das drosófilas, a técnica produziu resultados diferentes dos obtidos pelo grupo canadense liderado por Jeremy Lee na Universidade de Saskatchewan, por meio de um anticorpo diferente. É preciso investigar mais a fundo para determinar onde está a realidade. Gorab também acrescentou ao arsenal a mosca Rhynchosciara – personagem central dos primórdios da genética brasileira, pois nela o geneticista Crodowaldo Pavan encontrou certos trechos em que o DNA se multiplicava de maneira inesperada (ver Pesquisa FAPESP nº 168). O genoma dessa mosca tem também regiões enriquecidas com longas sucessões de AAAAA e de TTTTT. Foi dessa particularidade  que Gorab tirou vantagem, pois em laboratório sequências repetitivas de RNA (UUUUU) tendem a se acoplar a duplas hélices repetitivas, como mostra a fita vermelha na ilustração. Por isso, Gorab considera possível que o DNA dessas regiões repetitivas em Rhynchosciara se dobre sobre si mesmo e a estrutura dupla naturalmente se altere, formando uma tripla hélice que deixa de fora uma das cadeias do DNA (como na ilustração que abre esta reportagem).

Realidade
“Precisamos agora verificar em que situações essa estrutura tripla se forma, se ela existe na mosca viva ou se é uma consequência das manipulações em laboratório”, ressalva Gorab. É algo a se verificar, mas outros grupos já indicaram que as triplas hélices não só existem em animais vivos como têm função regulatória importante. Um desses grupos é o do norte-americano Thomas Cech, da Universidade do Colorado, ganhador do Prêmio Nobel de Química em 1989, que em 2008 publicou um artigo na Nature Structural & Molecular Biology sugerindo uma função da tripla hélice de RNA na ação da telomerase, enzima responsável pela regeneração do DNA dos telômeros, que formam as extremidades dos cromossomos.

De agora em diante o geneticista da USP não pretende deixar as triplas hélices esquecidas no fundo de algum tubo de ensaio. Os próximos passos incluem usar o genoma já bem conhecido das drosófilas para saber quais são as sequências que propiciam a sua formação. As triplas hélices também prometem contribuir para terapias gênicas, em que se poderia sintetizar fitas únicas complementares a genes que se deseja inativar e inseri-las, formando regiões triplas.

O projeto
Aspectos moleculares da heterocromatina em espécies da família Sciaridae (Diptera: Nematocera) (nº 2008/50653-2); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Co­or­de­na­dor Eduardo Gorab – IB/USP; Investimento R$ 165.485,11

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