E isso é arte? Certamente um questionamento assim passou pela cabeça de parte de quem visitou, em 1965, a exposição que o artista plástico carioca Hélio Oiticica (1937-1980) chamou de Manifestações ambientais, que incluía capas, tendas e estandartes. Nos dois anos seguintes intensificou o conceito do que chamou de “programa ambiental: montou uma sala de sinuca (1966) e a mostra Tropicália (1967), formada por um jardim com pássaros e plantas vivos, além de poemas-objetos – e que deu nome ao movimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em 1968 foi a vez de Apocalipopótese, que somou manifestações de outros artistas. Essas experiências, que seriam consideradas revolucionárias, foram reunidas numa importante exposição na Whitechapel Gallery, de Londres, em 1969.
Certa vez, resumiu tudo o que faziam como “uma experiência ambiental (sensorial) limite” ou “antiarte por excelência” – como descrevia o parangolé. Não foi possível perceber na época, ao que parece, que todas essas ideias estavam rigorosamente apresentadas nos escritos de Oiticica, que as fundamentou enquanto citava suas influências – filósofos, músicos e outros artistas. É o que faz agora a historiadora da arte Paula Priscila Braga em seu doutorado “A trama da terra que treme: multiplicidade em Hélio Oiticica”, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, em outubro passado, com orientação de Celso Fernando Favaretto.
Há em Oiticica o que Paula chama de multiplicidade de artistas. As estratégias construtivistas em sua obra, explica ela, estão compreendidas na noção definida por ele como “mundo erigindo mundo”. Esse sentido é identificável tanto nos aspectos éticos e estéticos das proposições quanto na maneira como seu próprio pensamento é construído. Sem deixar de lado a importância do mito e da Mangueira no inventor da Tropicália, a pesquisadora enfatiza que a “síntese” feita por ele não se deixa fixar em um estereótipo cultural, já que escapa dos espaços delimitados e do tempo cronológico, estabelecendo-se em um “mundo-abrigo” virtual, onde Oiticica acha fragmentos das produções de inventores de vários lugares e épocas para compor seu programa além da arte.
Invenção
Assim, ela aponta a importância das obras de Friedrich Nietzsche, Henri Bergson, John Cage, Ezra Pound, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Yoko Ono, entre outros, na estrutura de pensamento do artista. “A invenção, palavra recorrente nos textos de Oiticica, é exatamente essa mistura de outras invenções. Ou seja, lidamos aqui com uma constatação trivial: há inúmeras referências a outros teóricos e artistas conduzindo a produção e autocrítica de arte feita por Oiticica”. No entanto, prossegue ela, nos seus textos essas referências são mais do que afinidades. “Constituem parte fundamental do programa in progress, que culmina no conceito de ‘inventor’, aquele cuja obra gera consequências, isto é, propicia a continuidade da invenção.”
Graduada em pintura e com mestrado em história da arte, ambos pela Universidade de Illinois, Urbana-Champaign, Estados Unidos, Paula diz que pouco conhecia da arte brasileira até se formar, porque não havia cursos específicos sobre o tema naquela universidade – nem mesmo relacionados à América Latina. Até que em 1999, durante o mestrado, teve contato com Hélio Oiticica por meio de textos de Guy Brett e Celso Favaretto. Em seguida, conheceu textos do próprio Oiticica e, finalmente, dois anos depois, viu sua obra pessoalmente, quando voltou para o Brasil. Num seminário sobre arte contemporânea, cujo tema era arte e política, coordenado pelos professores Jonathan Fineberg e Buzz Spector, aproveitou a oportunidade para estudar o que foi feito durante a ditadura brasileira. “Os aspectos éticos da obra de Oiticica, que incluem as proposições centradas no comportamento para explicitar a possibilidade de se construir, cada um, uma existência criadora, impressionaram-me como forma de atuação política afirmativa.”
O interesse aumentou quando, ao estudar um livro sobre o expressionismo alemão, German expressionist painting, de Peter Selz, encontrou uma menção ao super-homem de Nietzsche. “As fotografias de parangolés que eu vira nos artigos de Brett e no livro do professor Favaretto aderiram ao que eu lia sobre Nietzsche, mas eu não considerava academicamente válido correr atrás de uma primeira intuição. Tampouco usar a obra de um artista para justificar uma livre associação (capa parangolé/ capa do super-homem)”. Ela, então, guardou essa primeira intuição e passou alguns meses lendo obras de Nietzsche e aquilo que tinha disponível nos Estados Unidos sobre Oiticica. Por fim, achou uma menção a Nietzsche no livro de Waly Salomão Hélio Oiticica: Qual é o parangolé. “Lá estava Oiticica dizendo a Salomão que se considerava ‘filho de Nietzsche e enteado de Artaud.”
Identidade
Nessa época, Paula lia também textos sobre arte latino-americana escritos por autores norte-americanos e ingleses e a incomodava a tese de que a arte latino-americana orientava-se por uma search for identity (busca de identidade), como se o que fosse feito no continente estivesse fadado a uma adolescência perpétua, de busca por sua verdadeira identidade no folclore, nas manifestações populares e na herança cultural do colonizador. “Nietzsche e Artaud, aliados a escolas de samba em uma obra de rigor construtivista como a de Oiticica, solapavam essa tese, colocavam a arte brasileira em uma vertente de pensamento universal. Escrevi, então, uma proposta de pesquisa para a tese de mestrado: rastrear as aparições de Nietzsche na obra e textos de Oiticica.”
No Brasil, a pesquisadora encontrou mais material a respeito de Oiticica, principalmente manuscritos não publicados nos catálogos que até então conhecia. “Percebi que, assim como Nietzsche e Artaud, vários outros pensadores eram recorrentemente citados por Oiticica. Seus manuscritos, aliás, têm um formato de hipertexto, muito antes do advento da internet.” Ele escrevia em letras maiúsculas os nomes próprios de artistas e pensadores que lhe eram relevantes. “Nos textos da década de 1970 isso se torna um padrão. Está tudo lá, o próprio Oiticica vai indicando as portas, os caminhos a serem seguidos no labirinto. Você lê o manuscrito e sabe que MALIÉVITCH não é apenas o nome do artista mas uma sugestão de percurso.”
É importante observar, segundo Paula, que, quando o artista cita um livro ou um texto de um desses “inventores”, ele fornece a referência completa, com edição, numeração de páginas. Assim, o pesquisador pode então ler a mesma obra, na mesma edição que Oiticica leu, e descobrir outras passagens que, se não aparecem citadas por extenso num texto do artista, estão no tom de um outro parágrafo do manuscrito, ou na escolha de uma determinada palavra, na diagramação peculiar de uma página ou em um neologismo que Oiticica inventa. “Ler os manuscritos, com os rabiscos, os grifos e as letras em caixa-alta, foi fundamental para a pesquisa do doutorado.”
A digitalização dos manuscritos conduzida pelo Projeto HO facilitou muito seu trabalho. Paula conta que antes desse processo o pesquisador tinha os documentos em mãos apenas por alguns dias e tomava notas enquanto vasculhava as caixas do arquivo Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro. Ela iniciou o doutorado já tendo parte desses manuscritos digitalizados e disponíveis na web, um trabalho feito em parceria com o Projeto HO e o Itaú Cultural. No final da pesquisa, contou com quatro CDs que reuniam 8 mil páginas digitalizadas e indexadas por palavras-chave.
Com isso, acredita que a pesquisa sobre o artista entra numa nova fase. Os pesquisadores poderão partir “de novo” da obra, porque houve uma primeira geração de pesquisadores que conheceu a arte de Oiticica enquanto ela estava sendo construída, conheceu o próprio artista ou amigos dele e acompanhou as publicações e as poucas exposições quando elas estavam acontecendo. Depois seu legado ficou um bom tempo sem a atenção de pesquisadores que lidassem com fontes primárias. “Agora temos os manuscritos facilmente acessíveis, voltamos à possibilidade de uma pesquisa bem fundamentada.”
Paula lembra que alguns textos de Hélio Oiticica foram publicados na imprensa nos anos 1960 e 1970 em jornais e revistas como O Pasquim, Presença e GAM e na coluna de Torquato Neto, “Geléia Geral”, do jornal Última Hora. Há ainda uma série de entrevistas que concedeu a publicações sobre arte e muitas cartas enviadas a amigos. Alguns textos teóricos escritos por ele saíram postumamente em catálogos de exposições e na compilação Aspiro ao grande labirinto. Mas a maior parte dos escritos teóricos é inédita e está digitalizada em fac-símiles. “Vale a pena usar os fac-símiles dos manuscritos mesmo no caso dos textos já publicados, não só porque há pequenas alterações que mudam muito o sentido de um parágrafo, e que tentei sinalizar em notas de rodapé na minha tese (por exemplo, mítico/ místico) mas também porque os grifos e rabiscos são significativos.”
Antiarte
Oiticica se preocupava mais, observa a pesquisadora, em desenvolver estruturas de pensamento do que “obras de arte”. Assim, preferia falar em antiarte, pois “arte” estava já muito relacionada à obra-evento, à produção de obras para consumo do mercado de arte. No texto “Experimentar o experimental”, de 1972, exemplifica ela, Oiticica cita Décio Pignatari para deixar isso bem claro: “A visão de estrutura conduz à antiarte e à vida; a visão de eventos conduz à arte e ao distanciamento da vida”. O evento é passageiro, dilui-se. A estrutura impacta a vida. “Ao invés de percorrer obras para contar uma história linear da trajetória do artista, busquei essas estruturas de pensamento, testando minhas conclusões ao confrontá-las com as proposições-obras”, explica.
A ideia de arquitetura, explica a pesquisadora, ajuda a entender esse ponto. “Não tentei descrever o estilo de uma casa ou uma lista cronológica das obras do arquiteto e sim o tipo de vida que aquela casa propõe, as razões para as escolhas dos materiais de construção, a estrutura que sustenta a casa, as técnicas da construção, a inteligência ecológica do projeto. Isso é importantíssimo para compreender Oiticica.”
Outro ponto de sua pesquisa que tentou se aproximar das estratégias mais caras a Oiticica foi estabelecer uma trama de interlocutores. “Mantive contato com vários pesquisadores de sua obra e cada um tem sua linha de pesquisa peculiar, mas há um fluxo de idéias e entusiasmo que flui entre esses nós da trama e que foi imprescindível para a minha pesquisa.” Dentre eles, Celso Favaretto, Beatriz Scigliano Carneiro, Michael Asbury, Suzana Vaz e Gonzalo Aguilar, que Paula reuniu no livro Fios soltos: a arte de Hélio Oiticica, a ser lançado no primeiro semestre deste ano pela Editora Perspectiva.
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