Países da bacia amazônica resolveram juntar forças para harmonizar suas legislações sobre propriedade intelectual, proteger recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais a eles associados, e ainda combater a biopirataria. Representantes do Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela reuniram-se pela primeira vez, no dia 26 de junho, no Rio de Janeiro, para avaliar estratégias de atuação, num encontro articulado pela Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). “Se não adotarmos um enfoque regional convergente, não teremos resultados,” diz o embaixador Roberto Jaguaribe, presidente do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e secretário de Tecnologia Industrial do Ministério do Desenvolvimento e Comércio Exterior, que participou da reunião.
A OTCA foi criada em 2003 para implementar o Tratado de Cooperação Amazônica, assinado pelos oito países em 1978, com o objetivo de implementar medidas para preservar o ambiente e os recursos naturais da região, que abriga umas das maiores biodiversidades do planeta. “Todos temos problemas com biopirataria,” diz a equatoriana Rosalia Arteaga, secretária-geral da organização.
No encontro do Rio de Janeiro foi definida uma lista de oito ações conjuntas, entre elas a de cooperação para a identificação de mecanismos que impeçam o registro indevido de nomes e expressões utilizadas por comunidades locais. No ano passado, por exemplo, organizações não-governamentais brasileiras, capitaneadas pelo Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), tiveram que se mobilizar para resgatar o nome cupuaçu – Theobroma grandiflorum, uma árvore da mesma família do cacau e cuja semente é fonte de alimento na região -, registrado como marca pelas empresas transnacionais Asahi Foods e Cupuaçu International em 1998. Mais recentemente, a mesma Asahi Foods perdeu o registro da patente do Cupulate, uma espécie de chocolate feito a partir de sementes do cupuaçu com tecnologia patenteada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Apropriação indébita
Os países que integram a OTCA têm, isoladamente, tomado uma série de medidas para proteger a sua biodiversidade de ações de apropriação de marca. No Brasil, o Ministério do Meio Ambiente concluiu um amplo mapeamento das denominações e usos conhecidos de cerca de 9 mil espécies animal e vegetal. Essa lista foi encaminhada ao Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (Gipi), será analisada pelo INPI e vai compor um banco de dados que servirá de fonte de consultas e orientação para escritórios de patentes em todo o mundo.
Apesar de não existir nenhum tratado internacional estabelecendo critérios para registro de marcas, faz parte das regras internacionais rejeitar denominações conhecidas – como é o caso do cupuaçu -, já que não teriam um requisito essencial: a capacidade distintiva. Não se registram, por exemplo, marcas com os nomes laranja, mamão ou banana. Não é o caso do cupuaçu. A denominação desses produtos da biodiversidade brasileira e seu uso, no entanto, têm que estar disponíveis num banco de dados acessível aos escritórios de marcas e patentes de todo o mundo. A lista com as várias denominações da biodiversidade brasileira e suas utilizações nas comunidades locais vai integrar um banco de dados ainda maior com a listagem de produtos de outros países que está sendo organizada pela OTCA.
Quebra-pedra
A iniciativa brasileira não é um caso isolado. O Peru, além de montar um banco de dados semelhante, criou uma comissão para investigar registros de patentes de produtos da biodiversidade regional na Europa, Japão e Estados Unidos. Foram identificados cerca de 500 registros de produtos relacionados a espécies autóctones em escritórios de patentes dos Estados Unidos, da União Européia e do Japão, segundo informou Santiago Roca, presidente do Instituto Nacional de Defesa da Competição e da Proteção da Propriedade Intelectual do Peru, aos participantes da reunião da OTCA no Rio de Janeiro.
A denominação chancapiedra ou Phyllanthus niruri, por exemplo – que no Brasil é matéria-prima do chá de quebra-pedra, utilizado no tratamento de problemas renais -, aparece mencionada 26 vezes na pesquisa realizada no escritório de patentes norte-americano, 11 vezes na Europa e 15 no Japão, onde, aliás, está relacionado, desde 1991, ao registro de um agente anti-retroviral e, desde 1996, à patente de um tônico capilar. Os outros produtos pesquisados foram o hercampuri (Gentianella alborosea fabris); o camu-camu (Myrciaria dubia); o yacon (Smallanthus sonchifolius); caigua (Cylanthera pedata L); e o sacha inchi (Phyllantus niruri).
Medida restritiva
O Peru tem uma das legislações para a defesa da biodiversidade mais avançadas entre os oito países que integram a OTCA. Em 2002 foi promulgada uma lei estabelecendo regime de proteção para o conhecimento tradicional e dos povos indígenas associado ao patrimônio genético. No Brasil, o patrimônio genético é protegido pela Medida Provisória nº 2.186, de 2001, que reconhece o direito das comunidades indígenas e locais de decidirem sobre o uso de seu conhecimento associado aos recursos genéticos e prevê a repartição de benefícios, se houver uso e comercialização. A medida provisória, no entanto, é considerada “muito restritiva,” segundo Jaguaribe, e até o final do ano o governo federal pretende encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei que, ao mesmo tempo que combata a biopirataria, incentive o desenvolvimento da capacitação tecnológica e industrial para o aproveitamento da biodiversidade. “Medidas restritas apenas à defesa do patrimônio genético são contraproducentes e a fiscalização é complicada. O melhor mecanismo de proteção da propriedade intelectual é a capacitação científica e acadêmica. Isso sim tem capacidade exponencial de produção.”
Enquanto a nova lei não vem, o governo busca amenizar o caráter draconiano da medida provisória por meio de resoluções, como a de número 18, publicada em 2003, que permitiu o acesso de pesquisadores aos componentes do patrimônio genético até então vetado pela legislação. Essa flexibilização, no entanto, não impediu a edição, no dia 7 de junho último, do Decreto nº 5.459 disciplinando sanções às atividades lesivas ao patrimônio genético previstas na medida provisória. De acordo com o decreto, são consideradas infrações: o acesso a patrimônio genético para fins de pesquisa sem autorização do órgão competente; remessa ilegal de amostras para o exterior; omissão de informações sobre as atividades de pesquisa, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico relacionados à biodiversidade; e a não repartição dos benefícios decorrentes da exploração econômica de produtos desenvolvidos a partir dos recursos da biodiversidade ou dos conhecimentos tradicionais associados.
Intercâmbio de práticas
Os países integrantes da OTCA não têm a pretensão de fazer uma legislação comum. “A homogeneização é impossível, mas a harmonização é concebível,” afirma a secretária-geral da OTCA. “Os países com legislação mais avançada podem ajudar. Também será importante que estas afinidades estejam presentes nos tratados de livre comércio, como o que está sendo preparado pela Colômbia, Peru e Equador. Se a iniciativa partir de um conjunto de países, será mais eficaz.”
O intercâmbio de normas, práticas e políticas nacionais sobre direitos da propriedade intelectual e sistemas nacionais de inovação encabeçam a lista de ações conjuntas que os oito países desejam implementar e que será apresentada numa reunião de chanceleres convocada pela OTCA, em Iquitos, no Peru.
A coordenação de posições e harmonização normativa será uma medida estratégica. “Está havendo uma evolução da globalização. Há uma tendência de centralização e homogeneização de normas da propriedade intelectual ditada pelos países mais ativos e desenvolvidos,” analisa Jaguaribe. As medidas de proteção da propriedade intelectual nos países em desenvolvimento, continua, dependem de uma estreita cooperação e a convergência da legislação será “um passo inevitável.” “Deveríamos nos mirar no exemplo europeu, que tem escritório de patentes conjunto.”
Entre as medidas comuns a serem adotadas pelos oito países está prevista a criação e a valorização de indicações geográficas amazônicas que agreguem valor à produção regional. Já existem no mercado global produtos, como ervas e fitoterápicos, apresentados como tendo origem na Amazônia. “Queremos evitar que isso ocorra,” explica Jaguaribe. A idéia é criar uma indicação de procedência, uma espécie de selo como o que já é utilizado para identificar vinhos do Vale do Vinhedo, o café do Cerrado ou a cachaça de Minas Gerais. “Depois disso estabeleceremos um conjunto de normas padrão,” diz o presidente do INPI.
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