O Nobel de Literatura de 2021 foi concedido a um escritor africano, negro, de origem muçulmana e expoente de imaginários da imigração e da diáspora: Abdulrazak Gurnah, de 73 anos, que nasceu na ilha de Zanzibar, na Tanzânia, e vive no Reino Unido desde a década de 1960. Com 10 romances publicados, além de contos e crônicas, seus textos são escritos em inglês, mas dialogam com os repertórios das literaturas árabe e suaíli. O exílio e a viagem constituem temas centrais de sua obra, nunca traduzida no Brasil.
O comitê do Nobel justificou a escolha por sua “rigorosa e compassiva investigação sobre os efeitos do colonialismo, os destinos dos refugiados e as lacunas entre culturas e continentes”. “Os personagens itinerantes de Gurnah, na Inglaterra ou no continente africano, se encontram entre a vida deixada para trás e a vida que vem adiante”, informou o comitê. Na justificativa, destacou-se também que seus livros fogem de “descrições estereotipadas e abrem nosso olhar para uma África Oriental culturalmente diversificada e desconhecida de muitos, em outras partes do mundo”, trazendo personagens com “histórias marcadas por destinos individuais que não se conformam à narrativa colonial da história”.
Gurnah tem o suaíli como língua materna – o idioma é falado em vários países da África Oriental. Em 1963, houve um conflito armado em Zanzibar e cidadãos de origem árabe e muçulmana, caso da família do escritor, passaram a ser perseguidos e foram forçados a deixar o país. Radicado no Reino Unido desde os 18 anos, ele escreveu seus primeiros textos literários em inglês, aos 21 anos. Foi professor de inglês e literatura pós-colonial na Universidade de Kent, até este ano, quando se aposentou. Seus principais interesses acadêmicos envolvem discursos associados ao colonialismo, com atenção especial na África, Caribe e Índia. Nessa linha, Gurnah editou dois volumes de Essays on African writing (Pearson Education Limited, 1995), sobre a literatura contemporânea da África, além de A companion to Salman Rushdie (Cambridge University Press, 2007), sobre a vida e a obra do autor britânico de origem muçulmana indiana. Também elaborou estudos e publicou artigos sobre outros escritores pós-coloniais contemporâneos, entre eles V. S. Naipaul (1932-2017), que venceu o Nobel em 2001, Zoe Wicomb, Wole Soyinka e Ngũgĩ wa Thiong’o.
“Sua obra mobiliza um conjunto de questões históricas e identitárias, além de vivências e narrativas individuais e privadas, tendo como pano de fundo diferentes aspectos da colonização no contexto regional da África Oriental e do oceano Índico”, explica Elena Brugioni, do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre o final do século XVII e meados do século XIX, os britânicos colonizaram diferentes países do continente africano.
Brugioni, que desde 2010 estuda a obra do autor em perspectiva comparada, observa que o oceano Índico desempenha papel central na obra de Gurnah, com a presença de componentes culturais múltiplos e diversificados, incluindo a dimensão da cultura árabe oral e escrita, da literatura produzida em suaíli e os repertórios de língua inglesa. “Nos trabalhos de Gurnah, o Índico representa um espaço de viagens, encontros e desencontros de culturas, religiões, línguas e etnias e uma região onde a presença e a hegemonia europeia foram colocadas em xeque. Por exemplo, quando os europeus chegaram no Índico foram obrigados a barganhar com diversos atores como árabes, chineses e africanos das regiões costeiras”, comenta a pesquisadora, uma das poucas especialistas na obra do autor no Brasil.
O primeiro contato de Brugioni com a produção de Gurnah aconteceu durante a pesquisa de pós-doutorado realizada na Universidade do Minho, em Portugal, na área de estudos sobre o oceano Índico. “Ele é um autor emblemático e muito estudado nessa área de pesquisa, na medida em que sua literatura articula temas, imaginários e histórias que são específicos da costa oriental africana, da Índia e da península Arábica, em suas diversas dimensões regionais e transnacionais”, explica ela, que desde 2016 conta com apoio da FAPESP para trabalhos sobre esses temas. A pesquisadora diz que em Portugal também são escassos os estudos sobre a produção de Gurnah.
Dentre os livros publicados pelo escritor africano está Memory of departure (Jonathan Cape, 1987), sobre o renascimento espiritual de um jovem de 15 anos que vive no leste da África, em um vilarejo portuário e pobre que experimenta ciclos perpétuos de violência e desespero. Paradise (Hamish Hamilton, 1994), seu quarto romance, decisivo para o Nobel segundo pesquisadores consultados para a reportagem, havia sido selecionado em 1994 para o prêmio Booker, concedido no Reino Unido. Narra a história de um menino africano e uma trágica relação amorosa, além de abordar a corrupção das tradições regionais pelo colonialismo europeu. By the sea (Bloomsbury Publishing, 2001), sobre o encontro de dois personagens em uma cidade britânica à beira-mar e os efeitos do colonialismo, foi o único traduzido em Portugal, sob o título Junto ao mar (Difel, 2003). O livro não foi distribuído no Brasil e a edição portuguesa está esgotada. Seu mais recente lançamento, Afterlives (Bloomsbury Publishing, 2020), conta a história de Ilyas, criança roubada de seus pais por tropas coloniais alemãs, que retorna à sua aldeia depois de anos lutando em uma guerra contra seu próprio povo. “Nas minhas aulas de graduação na Unicamp, procuro apresentar o trabalho de Gurnah aos alunos, mas é difícil o aprofundamento em um autor que não teve seus livros traduzidos para o português no Brasil”, diz Brugioni.
Divanize Carbonieri, do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), recorda que o Reino Unido promoveu “colonização indireta” em países da Ásia e África, treinando moradores da região para assumir cargos de menor importância nos governos coloniais. A eles também era ensinada a língua inglesa. “Durante o período colonial, as escolas passaram a lecionar em inglês, de forma que muitos escritores nativos da África escreviam utilizando esse idioma”, diz. Segundo ela, foi desse modo que muitos dos romances produzidos por autores africanos durante a colonização chegaram à Europa. “No começo, os críticos não sabiam como classificar esses trabalhos, apontando sua distinção da obra de autores britânicos e indicando que isso representava um demérito”, comenta, ao tratar dos primórdios da recepção literária de autores africanos que escrevem em inglês.
Carbonieri relata que um marco na transformação desse entendimento foi a publicação do livro The empire writes back: Theory and practice in post-colonial literatures (Routledge, 1989), escrito pelos pesquisadores australianos Bill Ashcroft, da Universidade de Nova Gales do Sul, Gareth Griffiths, da Universidade da Austrália Ocidental e Helen Tiffin, da Universidade de Wollongong. A obra defende que as diferenças identificadas no uso do idioma e na estrutura da narrativa dessas literaturas pós-coloniais representam, justamente, sua força e originalidade. “Além disso, chamando a atenção para o valor da literatura em inglês de autores africanos, os pesquisadores australianos contestaram a ideia de tratar-se de idioma único e inseriram o debate pós-colonial, antes limitado ao campo da história, nos estudos literários”, detalha.
Cielo Griselda Festino, professora de literaturas de língua inglesa na Universidade Paulista (Unip) e do mestrado da Universidade Federal de Tocantins, explica que a literatura pós-colonial, campo de estudos em que o trabalho de Gurnah costuma ser abordado, representa o produto do encontro entre britânicos e suas diferentes colônias na Ásia, África e Américas. “Os britânicos usaram o inglês como estratégia de conquista. Por outro lado, indivíduos de países colonizados foram se apropriando do idioma e passaram a utilizá-lo como ferramenta literária e linguística para se reconectar com sua cultura de origem”, afirma. “A escritora afro-americana Toni Morrison [1931-2019] estabeleceu uma analogia entre a construção do cânone literário inglês e a construção do império. Dizia que essas literaturas permitiram abrir um leque narrativo envolvendo temas como as lutas pelo fim do colonialismo e a situação dos refugiados”, enfatiza Festino.
Gurnah vai receber o prêmio de 10 milhões de coroas suecas (cerca de US$ 1,15 milhão ou R$ 6,25 milhões). Desde 1901, 118 escritores ganharam o Nobel da Academia Real de Ciências da Suécia. Entre eles, 16 mulheres e três negros: a norte-americana Toni Morrison (1993), o nigeriano Wole Soyinka (1986) e Derek Walcott (1992), da ilha caribenha de Santa Lucia.
Projetos
1. Comparativismos combinados e desiguais: Repensar o campo dos estudos literários africanos e pós-coloniais à luz do debate sobre literatura mundial (nº 20/07836-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Elena Brugioni (Unicamp); Investimento R$ 77.343,87.
2. A estética do Índico: Geografias transnacionais do imaginário em narrativas visuais e literárias na(s) África(s) contemporânea(s) (nº 16/26098-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Elena Brugioni (Unicamp); Investimento R$ 82.158,48.