
Como entender que um jogo inocente, iniciado em 1892 por um nobre, o barão de Drummond, idealizado como forma de manter em funcionamento um símbolo da civilização que chegava aos trópicos, o Jardim Zoológico de Vila Isabel, tenha se transformado numa polêmica contravenção em tão pouco tempo? “A repressão ao jogo do bicho nunca foi uma questão moral ou legal. Antes, ela representou, desde o início, o desejo do Estado em regular o comportamento das classes populares brasileiras. Estudar a história do jogo do bicho é entender a crescente criminalização da vida cotidiana no começo do século XX, resultado das mudanças que acompanharam a transição da sociedade brasileira de uma sociedade escravista para outra capitalista, de consumo, cuja versão urbana foi fundada sobre o cerceamento da vida das pessoas comuns, no âmbito privado e público”, explica a historiadora Amy Chazkel, da City of New York University, que lança, neste mês, nos EUA, o estudo Laws of chance: Brazil’s clandestine lottery and the making of urban public life (Duke University Press). “A instituição ‘jogo do bicho’ não foi criação de um barão empreendedor, mas nasceu da interação entre o Estado e a população. Ela desafiou as loterias legais, que davam dinheiro para o governo, representou as tendências liberais que as associações comerciais e o Legislativo tentaram erradicar e parecia confirmar os medos das elites sobre as tendências entrópicas da classe trabalhadora, seu desejo de ganhar dinheiro sem trabalhar por ele e o descaso que tinham pelas leis.” Ou, nas palavras de DaMatta: “O jogo do bicho faz jus à imensa criatividade do brasileiro pelo que destila de utopia e generosidade, o que explica por que tem, como o gato, sete vidas, apesar das perseguições policiais dos governantes burros e de uma elite águia, que sempre foi mais patife do que nobre”.
Zoológico
Amigo e sócio do barão de Mauá, João Batista Vianna Drummond (1825-1897) comprou, em 1872, uma vasta chácara na encosta da serra do Engenho Novo, onde, no ano seguinte, implantou a Companhia Arquitetônica, cujo objetivo era a criação de um bairro amplo com bulevares, nos moldes franceses em oposição ao urbanismo lusitano, de ruelas, do Rio. Abolicionista, Drummond batizou a região de Vila Isabel em homenagem à princesa. Um projeto moderno, o bairro oferecia opções de lazer e uma ligação de bonde com o centro da cidade. No espírito científico e civilizatório da época, o barão reservou 300 mil metros quadrados para a instalação de um zoológico, que seria referência para estudiosos brasileiros. Usando seus contatos com o Estado, Drummond solicitou, e conseguiu, uma subvenção para o funcionamento do parque, aberto em 1888 e que lhe rendeu o título de barão das mãos do imperador. Dois anos mais tarde, argumentando a insuficiência do auxílio municipal, voltou a pedir ajuda, dessa vez sugerindo que poderia obter recursos sem onerar os cofres públicos se fosse permitido que explorasse jogos lícitos (o Código Penal de 1890 proibia jogos de azar) no interior do zoológico. Entre esses, o jogo do bicho: o visitante recebia um tíquete com a figura de um animal impressa; no final do dia, abria-se a caixa que ficava pendurada perto do portal de entrada do parque, onde estava um quadro retratando o animal do dia, escolhido previamente pelo barão de uma lista de 25 bichos. O primeiro sorteio, em que deu “avestruz”, aconteceu em julho de 1892 e o vencedor teve direito ao prêmio de 20 mil-réis, 20 vezes o preço pago pela entrada. Duas semanas, deu “cachorro” e o sortudo embolsou 2 contos de réis, prova do crescimento rápido de público em razão do sorteio. Jornais comentavam a falta de espaço nos bondes para Vila Isabel e foram criadas novas linhas para dar conta da demanda. Esperto, o barão, em pouco tempo, oferecia a venda de bilhetes para o zoológico em estabelecimentos no centro da cidade, o que permitia participar a distância. O passo definitivo para o sucesso do bicho foi quando o parque passou a permitir que se pudesse escolher, na compra das entradas, um animal em particular. O sorteio virou jogo de azar.

A República igualmente investiu pesadamente na consolidação do conceito de contravenção, os pequenos delitos. “Havia uma crítica forte contra o extinto regime na forma de reprimir atividades que atentariam contra a moral e a ordem pública, como vadiagem, preguiça, bebedeira, jogos de azar e capoeira. Para o novo governo republicano, a lassidão imperial diante dessas afrontas à ‘moral e aos bons costumes’ revelava a decadência da monarquia”, observa Amy Chazkel. O “pequeno crime” passa a ser uma obsessão para a polícia, já que atingia um número maior de pessoas e estava diretamente ligado à burocracia policial e menos ao Judiciário. Juízes e policiais passam a disputar espaço na forma de lidar com a contravenção, criando um conflito de interesses: o Judiciário tinha a última palavra na legalidade da ação da polícia nas ruas, mas essa autoridade muitas vezes excedia a do magistrado em absolver um preso. Isso explica por que quase nenhum vendedor de bicho preso pelos policiais foi condenado até 1917, por “falta de provas”. “As classes menos protegidas sofreram os efeitos colaterais dessa disputa, exacerbada pela transformação do jogo do bicho em contravenção, já que os policiais lutavam pela preeminência nas ruas ao exercer seu poder de prender e reprimir. Nesse movimento, a polícia carioca não era leal nem ao Estado, nem aos populares, de onde seus membros provinham. Havia a tendência, na contravenção, a lidar com suspeitos em base apenas em seus valores e identidades: alguém ‘conhecido por ser bicheiro’ podia ser preso mesmo que não estivesse vendendo bilhetes”, diz Amy. “Mais importante, a experiência deste modus operandi contra o jogo foi transferida, mais tarde, para o campo da política. A polícia usou as armas desenvolvidas para combater jogos e outras pequenas contravenções e as usou para reprimir a dissidência política nascida com as movimentações trabalhistas. Juridicamente, o bicheiro e o criminoso político eram a mesma coisa. Alguém era preso por ‘ser um conhecido líder comunista’.”

Em 1917, a repressão se intensificou com a chamada “campanha mata-bicho”, mas a loteria clandestina, mais do que sobreviver, emergiu mais forte, concentrada, profissionalizada, com um código de ética que, para a população, era “mais confiável” do que o apresentado pelo Estado. “Não se pode esquecer que, nessa lógica capitalista, o bicheiro era capaz de igualar práticas legais ao transformar um pedaço de papel numa nota promissória. A lendária confiança nos operadores do jogo nasceu do contraste implícito com os operadores não confiáveis do Estado. Para a maioria dos brasileiros que não eram da elite, o Estado era sinônimo de sistema judiciário criminal e ponto”, diz a historiadora. “Os banqueiros acessíveis e populares mantêm com o apostador um elo transitório, mas definido pela lealdade e confiança, porque os dois compartilham o mesmo sistema de crenças. Todos são tratados com respeito. E o cidadão busca tanto seus direitos políticos quanto o respeito. Não se trata, então, de uma sociedade defeituosa porque valoriza o ganho fácil, como querem alguns críticos, mas de um sistema que discerne o valor do dinheiro como um instrumento privilegiado para a construção da ‘pessoa’”, nota DaMatta. Assim, continua, o jogo adota a promessa capitalista do sucesso monetário, proporcionando a mudança de posição social, mas, diferentemente do capitalismo ortodoxo, não compactua com a indiferença social instituída com a redução individualista e mercadológica.
Um fator notável do jogo do bicho, já em seus primórdios, foi a sua ligação com a cultura popular, pois muitos de seus primeiros banqueiros foram os empreendedores pioneiros do entretenimento nacional, como Paschoal Segreto, um dos introdutores do cinema no país. Antes das projeções dos filmes, Segreto exibia 26 anúncios, sempre retirando, de propósito, um deles, transformando o cinematógrafo num jogo de azar como o bicho. “O jogo do bicho foi para muitos cariocas o primeiro contato com o divertimento público comercializado. Novas invenções viravam um subterfúgio para empreendedores em busca dos lucros do bicho. Ao mesmo tempo, os ganhos do submundo permitiam que esses mesmos empreendedores pudessem investir no show business ou, no caso de Segreto, no cinema”, nota Amy.

Samba
A relação se “profissionaliza” com a Liesa, que, controlada pelos banqueiros do bicho, passa a intermediar as relações entre o Estado, o mercado e a comunidade. As escolas passam a se autofinanciar com os ganhos das transmissões pela TV, discos etc., mas os “donos das escolas” continuam a aferir os dividendos sociais e políticos da “patronagem” dos desfiles e do trabalho assistencial, sem, no entanto, arcar com seu dinheiro para tanto. Em tempos eleitorais, acesso ao bicho e às escolas é fundamental e os banqueiros conseguiram encampar ambos os benefícios. “Por sua rede social, sua capacidade de dominação e sua expressão política, os banqueiros do jogo se transformaram, durante muito tempo, numa organização algo semelhante à máfia americana do jogo, ainda que em proporções bem menores”, afirma o cientista social Michel Misse, professor do Departamento de Sociologia da UFRJ e autor do estudo Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. “Até a chegada do tráfico de drogas nas favelas, o jogo do bicho foi o mercado ilícito mais importante, tradicional e poderoso. Sua capacidade de atração de força de trabalho do submundo criminal sempre foi grande, em especial oferecendo emprego e proteção a ex-presidiários.”
Há quem afirme ainda a ligação entre o bicho e o tráfico carioca, embora a dimensão dessa união seja fonte de controvérsia entre os especialistas. “Ao final da década de 1970 a imprensa já revelava a articulação entre o bicho e o tráfico. É plausível a vinculação entre o bicho e o narcotráfico, mas se pode notar que ao longo dos anos 1990 o jogo conheceu sinais claros de decadência e o tráfico deu sinais claros de crescimento. Isso não quer dizer que pessoas do jogo não tenham migrado para o tráfico, mas esse já não tem mais no bicho a base de suas operações, como no início. Parece ter ocorrido uma absorção por parte dos traficantes quanto ao ‘caminho das pedras’ ensinado pela contravenção em termos de corrupção de policiais e autoridades, formas de investimentos para obter apoio (como apoio à comunidade, clubes etc.), maneiras de investir o dinheiro etc.”, avalia o geógrafo Helio de Araujo Evangelista, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de Rio de Janeiro: violência, jogo do bicho e narcotráfico. Os banqueiros do bicho estão mudando de negócio. “Herdeiros de banqueiros substituíram o bicho pelo controle da distribuição de caça-níqueis em bares e bingos clandestinos das cidades, com o apoio de policiais”, acredita Misse.
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