O avanço da biotecnologia e a fragilidade dos marcos legais de proteção da biodiversidade expõem perigosamente o conhecimento tradicional a ações de biopirataria. O Brasil, cujo território abriga 23% da biodiversidade do planeta, é um dos seus principais alvos. Aayahusca, por exemplo, planta medicinal amazônica utilizada por diferentes comunidades indígenas em rituais e usada pela seita Santo Daime, foi patenteada por um laboratório multinacional que ainda conseguiu autorização para utilizá-la comercialmente. O curare, extrato vegetal conhecido de várias tribos brasileiras, teve a patente depositada por uma multinacional virou base para relaxantes musculares hoje produzidos por três laboratórios, e é vendido livremente nos Estados Unidos. Os exemplos se multiplicam na Ásia, na África, no Caribe e na América Latina.
No caso do Brasil, cuja biodiversidade tem valor potencial estimado de US$ 2 trilhões, de acordo com os cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o prejuízo é grande. Isso sem falar que a biopirataria ainda dilapida o patrimônio cultural da nação. É bom que se ressalve que proteger o conhecimento tradicional não significa reivindicar para o pajé a condição de co-inventor na descoberta de uma molécula. Trata-se, na verdade, de buscar meios e modos de viabilizar a repartição de benefícios que resultam da exploração desses recursos por laboratórios e multinacionais com as comunidades que, ao longo de várias gerações, acumularam conhecimento sobre espécies de plantas e animais com propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas.
O Brasil, assim como grande parte dos países em desenvolvimento, ainda não dispõe de um sistema de proteção legal dos direitos de propriedade intelectual de comunidades tradicionais. “O sistema de patentes, hoje, protege o que inova, que desenvolve novas tecnologias. Não protege aquele que detém a biodiversidade ou o conhecimento tradicional”, diz José Graça Aranha, presidente do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). “Temos que encontrar mecanismos que venham a cobrir, por meio da legislação existente ou de um sistema sui generis de proteção, esses detentores da biodiversidade.”
Vedas Upanishads
O desafio de buscar a forma mais adequada de proteger os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais levou a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi) a criar, em 2000, um comitê especial intergovernamental formado por representantes dos 175 países membros e de entidades como a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e organizações não-governamentais (ONGs) de todo o mundo, na tentativa de encontrar uma solução para esse problema. Ainda que não haja consenso sobre a eficácia da legislação existente, a Ompi tem recomendado às nações que registrem, num banco de dados, por exemplo, as informações sobre o conhecimento tradicional de domínio público, incluindo, se possível, as indicações de uso.
“Grande parte do conhecimento tradicional é oral, não documentado e não há como apresentar provas para contestar o depósito de uma patente considerada irregular”, justifica Nuno Carvalho, diretor da Ompi. A lei norte-americana, por exemplo, não autoriza a impugnação de patentes depositadas naquele país com base na tradição oral de países estrangeiros. Ele lembra o caso de dois cientistas da Universidade de Wisconsin que patentearam o princípio ativo da turmérica, uma raiz milenarmente conhecida na Índia por suas propriedades cicatrizantes. O registro foi contestado, mas mantido, até que a Índia apresentou uma prova documental: uma passagem dos Vedas Upanishads, escritura hindu provavelmente na virada do século 16, onde está descrito o uso medicinal da turmérica. “A patente foi derrubada”, conta Carvalho.
O direito de dizer não
A despeito da indefinição legal, alguns países já adotaram medidas para proteger seu patrimônio cultural. O escritório de patentes da China coleta informações sobre usos, tradições e costumes nas áreas de medicina e agricultura e sugere às comunidades que solicitem patentes para os conhecimentos mais inovadores. A Índia, que quase perdeu a turmérica, desenvolve uma base de dados em que está sendo compilado todo o conhecimento tradicional disponível. Todos esses dados recebem classificação segundo seu uso e são disponibilizados para os examinadores de patentes. “Isso é prevenção”, ressalva Carvalho.
A Venezuela adotou medida distinta. Ali, há três anos, o Serviço Autônomo da Propriedade Intelectual, ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Indústria, criou um portal com mais de 15 mil referências catalogadas nas áreas de química, farmacêutica, artesanato, entre outras, com indicação para aplicações e até recomendações do pajé para o risco de interação com outros produtos. Os interessados têm acesso a essas informações mediante pagamento de uma taxa ao Estado, posteriormente repartida entre as comunidades locais.Esses diferentes sistemas de proteção ao conhecimento serão divulgados este mês, na terceira reunião do comitê interministerial da Ompi, em Genebra, com a intenção de fornecer subsídio para os demais países. “Vamos divulgar dois ou três exemplos, com autorização dos governos”, adianta Carvalho. Ele reconhece, no entanto, tratar-se de medidas “defensivas”, que não garantem às comunidades o exercício pleno do direito de dizer não.
Advogados indígenas
Nesse interregno legal, a Ompi tem procurado colocar à disposição dos países membros informações sobre jurisprudência e modelos de contratos padrão de utilização da biodiversidade e conhecimentos firmados entre comunidades tradicionais e empresas, como o que consolidou a parceria entre os aguarunas, do Peru, e a Monsanto-Searle. E as comunidades começam a se preparar para defender seu patrimônio. O INPI realizou, no início de maio, o primeiro curso sobre propriedade intelectual de advogados de comunidades indígenas brasileiras, com o apoio da Ompi. O curso teve 20 participantes, sendo 13 índios, que receberam treinamento sobre marcas, patentes e direitos autorais.
“Não é mais a luta de arco e flecha, mas de apropriação de novos conhecimentos que podem ser usados em benefício das comunidades, seja pela proteção de nossos conhecimentos tradicionais, seja pelo patenteamento de fitoterápicos, de forma a reverter para a comunidade uma parte dos lucros auferidos”, afirma Lucia Fernanda, assessora jurídica da comunidade caingangue-guarani, do Rio Grande do Sul, que participou do curso. O grupo decidiu criar, ao final do curso, uma comissão permanente de estudos sobre a propriedade intelectual, preparando-se assim para acompanhar os entendimentos e a confecção de contratos de exploração da biodiversidade local que venham a ser negociados entre as comunidades e laboratórios.
CDB X Trips
A Ompi, no entanto, considera que medidas como essas que estão sendo adotadas pelo Brasil são estratégias defensivas, e busca ações mais eficazes: criou um comitê técnico de peritos para ver se há possibilidades de classificar o conhecimento tradicional utilizando os mesmos critérios da classificação internacional de patentes. O objetivo é tentar criar um mecanismo que permita que essas informações estejam disponíveis aos examinadores de patente. Eles não podem recusar o registro por não saberem tratar-se de um saber comunitário, já que esse conhecimento não está classificado e porque não há mecanismos de buscas. Mas a idéia, para muitos, é arriscada, já que pressupõe a exposição pública de um conhecimento que se confunde com a identidade das comunidades tradicionais. “Algumas coisas podem ser publicadas, mas existem características de nosso patrimônio cultural que estão até hoje protegidas e que devemos preservar por serem intrínsecas à nossa cultura”, argumenta a caingangue Fernanda.
Noutra frente, a Ompi buscar harmonizar o acordo sobre a propriedade intelectual da Organização Mundial do Comércio (OMC), conhecido como Trips (Trade Related Intelectual Property Rights), e a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), assinada no Rio de Janeiro durante a Eco-92, que definiu como objetivos básicos a conservação, a utilização sustentável e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios advindos do uso dos recursos genéticos. O Trips, concluído em 1994, não é específico e, em relação à biodiversidade, permite o direito de propriedade intelectual sobre microrganismos, processos não-biológicos e microbiológicos.
A compatibilização entre os dois acordos exige que seja incluído no Trips um dispositivo que contemple a proteção dos conhecimentos tradicionais e dos recursos genéticos. “O Brasil defende uma emenda ao Trips no sentido de incorporar os requisitos de identificação do material genético utilizado na invenção, de repartição dos benefícios com os detentores de recursos genéticos, de consentimento prévio fornecido pelos detentores e dos conhecimentos tradicionais associados à invenção”, explica Graça Aranha, presidente do INPI. Na conferência ministerial da OMC em Doha, no Catar, realizada em novembro último, já foram apresentadas algumas propostas para compatibilizar os dois acordos. “Mas esse é um debate para vários anos”, prevê Carvalho.
Lei sui generis
O avanço da biotecnologia e da engenharia genética só fez esquentar o debate sobre a proteção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais, que, na verdade, teve início na Eco-92, quando foi assinada a CDB, lembra Graça Aranha. A convenção recomendou que a FAO e os países participantes elaborassem um Plano Global de Ação para Recursos Genéticos em Alimentação e Agricultura (PGA), que foi aprovado na Conferência Internacional de Recursos Genéticos realizada em Leipizig, em 1996. O PGA foi adotado por todos os países que compõem a Comissão de Recursos genéticos, inclusive o Brasil. “No âmbito da FAO, será relevante definir como fazer para que toda essa riqueza, uma vez protegida, se transforme em melhoria efetiva das condições de vida da nossa população, diminuindo carências, principalmente nos países tão ricos em biodiversidade quanto em desigualdades sociais”, diz Graça Aranha. O outro foco de discussão, da qual o Brasil tem participado ativamente, é a compatibilização do acordo Trips.
O Brasil também se alinha aos que defendem a idéia de um novo marco jurídico que proteja e preserve a biodiversidade. “Hoje isso é tão fundamental como os direitos de propriedade intelectual o foram no final do século 19, com a Convenção de Paris”, compara Graça Aranha, referindo-se ao tratado internacional que até hoje regula o registro de patentes e é base para a defesa de marcas e segredos industriais. Essa também é a disposição de 25 nações indígenas, cujos representantes se reuniram em dezembro do ano passado, em São Luís, no Maranhão, num encontro promovido pelo INPI.
No documento, batizado de Carta de São Luiz, propõem a adoção de “um instrumento universal de proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais, um sistema alternativo, sui generis, distinto dos regimes de proteção dos direitos de propriedade intelectual”, e que o governo brasileiro “adote uma política de proteção da biodiversidade e sociodiversidade destinada ao desenvolvimento econômico sustentável dos povos indígenas”. Reivindicam que o governo reconheça os conhecimentos tradicionais como saber e ciência, “conferindo-lhes tratamento eqüitativo em relação ao conhecimento científico ocidental” , estabelecendo uma política de ciência e tecnologia que reconheça a sua importância, que crie um banco de dados e registro desses conhecimentos e um fundo – financiado pelos governos e gerido por uma organização indígena – que tenha como objetivo subsidiar pesquisas realizadas por membros das comunidades. Na avaliação de Marcos Terena, coordenador de direitos indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai), “é a fragilidade de proteção aos conhecimentos tradicionais que gera a biopirataria”.
Marco legal
No plano nacional, alguns países têm regras muito claras de proteção do conhecimento tradicional. A Costa Rica, por exemplo, dedicou um capítulo de sua Lei da Biodiversidade, aprovada em 1998, à “proteção do direito de propriedade intelectual e industrial” e reconhece a existência e validade das formas de conhecimento e inovação e a responsabilidade do Estado de outorgar essa proteção. O Registro de Propriedade Intelectual e Industrial, por exemplo, deve, obrigatoriamente, consultar a Oficina Técnica da Comissão Nacional para a Gestão da Biodiversidade antes de conceder registro de propriedade intelectual ou industrial a inovações que envolvam recursos da biodiversidade.
O Equador aprovou, em 1996, uma pequena lei de proteção da biodiversidade que se limita a declarar que o “Estado equatoriano é o titular dos direitos de propriedade sobre as espécies que integram a biodiversidade no país”. A exploração comercial estaria sujeita a uma regulamentação especial, mas desde que ficassem garantidos os direitos ancestrais das comunidades indígenas sobre os conhecimentos e os componentes intangíveis da biodiversidade. Está em debate uma proposta de regulamentação dos direitos coletivos em relação à biodiversidade, elaborada pela Confederação Nacional Indígena do Equador e a ONG Acción Ecológica.
No Peru, um grupo formado por representantes de comunidades indígenas, ONGs e representantes de vários ministérios do governo está elaborando um projeto de lei para regular o acesso a recursos genéticos e proteger os conhecimentos tradicionais. O projeto deverá estabelecer regras para a realização de contratos entre comunidades e empresas interessadas na exploração comercial desse conhecimento, e fixar um porcentual sobre os lucros gerados por processos ou produtos desenvolvidos com base em conhecimentos tradicionais. Esses recursos formarão o Fundo de Desenvolvimento dos Povos Indígenas do Peru.
No Brasil, a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais são protegidos pela Medida Provisória 2.186 de 2001, que condiciona o acesso a recursos naturais à autorização da União, prevê a repartição de benefícios, se houver uso e comercialização, e reconhece o direito das comunidades indígenas e locais de decidirem sobre o uso de seus conhecimentos associados a recursos genéticos. Outros tantos projetos de lei sobre o assunto tramitam no Congresso Nacional, entre eles o da senadora Marina Silva (PT-AC), já aprovado pelo Senado, que estabelece as condições para autorização de acesso a recursos genéticos nacionais e determina a criação de uma Comissão de Recursos Genéticos composta por representantes do governo, cientistas, comunidades indígenas e locais.
O Brasil também estuda a sugestão da Ompi, já adotada por vários países, de criar um banco de dados dos conhecimentos tradicionais. Graça Aranha avalia que a catalogação das informações é “uma forma clara de cobrar.” Ressalva, no entanto, que o Brasil já tem algumas iniciativas de proteção desse conhecimento – “a medida provisória é exemplo disso”, sublinha – e a criação de um banco de dados dessa Natureza é uma medida difícil de ser implementada, já que muitos conhecimentos “não são apenas de uma mesma tribo”. Pergunta: “Quem vai receber esse benefício?”. E ele mesmo responde: “A única forma de superar essas dificuldades é ampliando o debate”.
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