Poucos conhecem o clima e o potencial de tantos vinhedos como o engenheiro agrônomo Jorge Tonietto, da Embrapa Uva e Vinho, em Bento Gonçalves, a capital da viticultura nacional, no nordeste do Rio Grande do Sul. Há quatro anos, ao terminar o doutorado na França, esse descendente de italianos migrados para a Serra Gaúcha formulou um complexo sistema de classificação das condições meteorológicas essenciais para as videiras produzirem uvas de qualidade à fabricação de um bom vinho. E se lançou numa tarefa hercúlea: depois de coletar uma montanha de dados em parceria com a Organização Meteorológica Mundial (OMM), comparou o clima de cem regiões produtoras de vinho espalhadas por 30 países de cinco continentes. Fez isso, é claro, usando sua metodologia, que adota uma combinação de três índices para tirar conclusões enquanto a maioria dos outros sistemas emprega um único parâmetro.
Basta olhar um gráfico com o resumo dos resultados desse megaconfronto de equações para ficar claro que não existem duas áreas com condições de temperatura e umidade exatamente iguais. Mas há, sim, vinhedos com clima muito semelhante, que podem ser colocados lado a lado num mesmo grupo. O trabalho permitiu separar as cem zonas vitícolas – pouco mais da metade delas situadas na Europa – em 38 grupos climáticos. “Nunca se fez um estudo do clima das regiões produtoras de vinho em escala mundial e com mais de um critério de análise”, diz Tonietto, que contou com a ajuda de seu orientador, o francês Alain Carbonneau, da Ecole Nationale Supérieure Agronomique de Montpellier (Ensam), segundo autor do sistema.
Alguns resultados do trabalho são surpreendentes. Sabe em que parte do globo estão os vinhedos dotados de clima mais parecido com os de Bordeaux, a região do sudoeste francês que é a meca dos amantes do vinho? Bem na própria França, em outras três regiões: Cognac, Agen e Toulouse. Segundo a classificação de Tonietto, as quatro regiões têm clima subúmido, com dias temperados e noites frescas. Gosta dos tintos envelhecidos em barris de carvalho e de sabor abaunilhado da Rioja, a mais famosa zona produtora da Espanha? Nesse caso, o resultado chamou menos a atenção. Caracterizado por seca moderada, com temperaturas diurnas oscilando entre o quente e o temperado, e noites frescas, o clima de Rioja é quase igual ao de Montélimar (Vale do Rhône, na França) e Anadia (Barraida, Portugal).
E os vinhedos brasileiros? Bento Gonçalves ficou no mesmo grupo de P’ohang e Suwon, duas zonas da Coréia do Sul, país de ainda menos tradição que o Brasil no mundo de Baco. As três áreas são definidas como úmidas, com dias entre o quente e o temperado, e noites temperadas. A outra região nacional estudada revelou-se um caso à parte. Com sua viticultura tropical, numa área de seca moderada e calor perene, Petrolina, na divisa da Bahia com Pernambuco, no Vale do São Francisco, formou sozinha um grupo climático de apenasum membro.
Para que servem essas comparações? O clima das diferentes regiões vitícolas, situadas em sua maioria em zonas temperadas ou mediterrâneas, é responsável em grande medida pela diversidade de castas cultivadas e influencia algumas características do vinho, como a qualidade, o estilo (se será, por exemplo, branco, tinto, espumante, fortificado, mais ou menos encorpado) e a tipicidade (conjunto de predicados associados à região em que foi produzido). “Por isso, precisamos sempre aperfeiçoar as formas de compreensão dos fatores meteorológicos se quisermos fazer um bom zoneamento das áreas produtoras”, diz Tonietto.
É lógico que, além das variáveis atmosféricas, outros fatores ditam as características de um vinhedo e de um vinho, como a composição do solo em que crescem as videiras, a variedade de uva plantada, a competência e a tradição do viticultor. Mas o clima é o principal fator limitante para a expansão do cultivo da Vitis vinifera, a espécie de uva ideal para se elaborar vinho.
Pelo menos 7 mil anos plantando vinhas e fazendo vinhos ensinou ao homem algumas lições sobre o clima. Em linhas gerais, áreas quentes são mais propícias para a produção de vinhos encorpados, densos, com altos teores de álcool. Tintos potentes e fortificados no estilo do vinho do Porto costumam nascer em vinhedos onde não falta sol no período de maturação da uva. A vocação das regiões frias gira em torno de tintos leves e brancos aromáticos, ou dos espumantes. Entre esses dois extremos, há uma infinidade de climas intermediários, muitas vezes difíceis de serem percebidos ou mesmo diferenciados, que podem favorecer a produção dos mais variados estilos de bebida.
Desde a primeira metade do século passado, os modelos de classificação climática são um instrumento útil para encontrar mais rapidamente a vocação, ou as vocações, das zonas produtoras sem depender apenas do empirismo dos viticultores, o velho método de tentativa e erro. Para chegar à nova metodologia, batizada de Sistema de Classificação Climática Multicritério (CCM) Geovitícola, Tonietto não precisou reinventar a roda. Seu mérito foi aparar algumas arestas de duas equações conhecidas no mundo da viticultura, formuladas por pesquisadores franceses e normalmente usadas de forma isolada, o índice de seca de Charles Riou e a equação heliotérmica de Pierre Huglin. A essas duas fórmulas juntou ainda um terceiro índice, o de frio noturno, criado por ele próprio.Voilà: estava pronto o CCM Geovitícola.
O primeiro índice, de seca, faz um balanço da quantidade de água disponível para a videira durante as fases de crescimento e maturação da planta, período que compreende os seis meses que antecedem a colheita anual. Nos vinhedos do Hemisfério Sul, essa fase vai em geral de outubro a março. Nas parreiras acima da linha do Equador, começa em abril e se estende até setembro. O segundo índice, a equação heliotérmica, quantifica os efeitos do calor e do sol sobre a vinha nos mesmos seis meses usados para o cálculo da fórmula anterior. Por fim, a terceira equação dá uma idéia do grau de frescor das noites no decorrer do último mês de maturação das videiras (em geral, março no Hemisfério Sul e setembro no Norte).
Em números, o frio noturno nada mais é do que a média das temperaturas mínimas registradas no mês da colheita. Como a mínima ocorre depois de o sol ter se posto, o índice recebeu o nome de frio noturno. “A introdução desse último parâmetro no sistema melhorou a avaliação do potencialqualitativo das regiões vitícolas”, explica Tonietto. De fato, a ocorrênciade noites amenas no final do processode amadurecimento da videira, em pleno verão, aporta mais cor e riqueza de aromas ao vinho.
O sistema do pesquisador da Embrapa passou pela primeira prova de fogo ainda em solo francês, onde a viticultura é assunto de Estado. Antes de ser empregado no megaestudo internacional das cem regiões, o CCM Geovitícola foi usado para analisar o clima de 18 áreas produtoras de vinhos do sul da França que cultivavam a casta Syrah, uma uva bem adaptada a zonas mais quentes. Os resultados animaram todos. A metodologia conseguira delinear com precisão o clima dessas regiões e – detalhe importante – obteve sucesso em estabelecer relações entre as condições meteorológicas dos vinhedos e as características básicas dos vinhos que brotavam dessas parcelas de terra.
“O CCM é atualmente a melhor metodologia para caracterizar o clima de uma grande região, como a Serra Gaúcha, ou de pequenas áreas, como uma encosta nos arredores de Bento Gonçalves”, opina, sem falsa modéstia, Alain Carbonneau, da Ensam. “Ao integrar três índices, ele se tornou a base de um zoneamento vitícola. “Esse sistema de classificação climática já é de grande valia para o desenvolvimento da viticultura, sobretudo em zonas tropicais. Nessas áreas de baixa latitude, impulsionada pelo calor ao longo de todo o ano, a videira acelera o seu ciclo de desenvolvimento e chega a dar mais de uma safra a cada 12 meses. Petrolina, por exemplo, tem cinco colheitas a cada dois anos.
Para os mais ortodoxos, esse ciclo maluco da vinha em terras quentes é um empecilho para a formação de vinhedos de qualidade e sinônimo de vinho ruim. Agora vem a novidade constatada pelo CCM Geovitícola: do ponto de vista do vinhedo, Petrolina não apresenta uma classe de clima ao longo do ano, como a maioria das regiões produtoras de vinho, mas, sim, três. E o mais interessante é que os viticultores podem tirar proveito disso e, assim, obter um produto de melhor qualidade.Explica-se. Nesse ponto do Vale do São Francisco, o primeiro tipo de clima ocorre de janeiro a março, quando faz calor de dia e de noite, mas chove um pouco. Nessa época, não é recomendável colher a uva, pois chuva na época da colheita leva a vinhos diluídos, aguados. O segundo clima, quente de dia e de noite e sem chuvas, é bom para a colheita e compreende os meses de abril, maio, outubro, novembro e dezembro.
Por fim, o terceiro clima de Petrolina é visto como o melhor para a viticultura. De julho a setembro, faz calor de dia, chove pouco e – algo raro no Nordeste – há um certo friozinho noturno, o que é bom para a fixação da cor e o desenvolvimento de aromas no vinho. “Para colhermos sempre numa época adequada, vamos controlar o ciclo de crescimento de nossos vinhedos em Petrolina e evitar a ocorrência da pior safra, que cai no verão”, afirma Adriano Miolo, enólogo de uma das melhores casas nacionais produtoras de vinhos, a Vinícola Miolo, do Rio Grande do Sul. Sua idéia é, num ano, realizar duas colheitas (uma em julho e outra em dezembro) e, no ano seguinte, ter apenas uma única safra, em setembro. “O trabalho do Jorge Tonietto jogou por terra o tabu de que a viticultura só é viável nos climas mais temperados, entre os paralelos 30 e 50 no Hemisfério Norte e 20 e 40 no Hemisfério Sul”, afirma Miolo. Em tempo: Petrolina está no paralelo 9.
Um selo para o Vale dos Vinhedos
Na terra da cachaça e do cafezinho, coube ao vinho do coração da Serra Gaúcha a honraria de ser o primeiro produto brasileiro a receber do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) o direito de ostentar um símbolo que atesta sua origem geográfica. Esse reconhecimento é o primeiro passo legal para a construção de uma identidade que caracterize os produtos de uma região. Em 22 de novembro passado, depois de um processo que se prolongou por oito anos e contou com assessoria técnica da Embrapa Uva e Vinho e da Universidade de Caxias do Sul, a Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos (Aprovale), que congrega 24 vinícolas, obteve, em caráter definitivo, o sinal verde para envolver o gargalo de suas garrafas com um selo. Nele, está escrito Indicação de Procedência Vale dos Vinhedos.
Isso quer dizer que o vinho abrigado em garrafas com essa distinção é um fermentado de variedades de uvas da espécie Vitis vinifera plantadas numa área delimitada e controlada: o Vale dos Vinhedos, com 81,23 quilômetros quadrados, que se espraia por Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul. Para obter tal reconhecimento, os produtores da Aprovale firmaram uma parceria com instituições de pesquisa do Rio Grande do Sul em busca de um objetivo central: caracterizar nos mínimos detalhes a geografia do vale, a região da Serra Gaúcha de mais tradição na produção de vinhos finos no Brasil, cuja topografia, solo e clima foram estudados de forma minuciosa.
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