Eu estava finalizando a leitura das últimas peças do reinado de James Stuart I [1566-1625] na biblioteca do Shakespeare Institute e não imaginava que o vírus tivesse, na Inglaterra, impacto tão forte como teve na Itália. Tinha uma conferência agendada para o início de abril, em Como, cidade próxima a Milão, e até o final de fevereiro estava certo de que iria. Mas tudo começou a desabar muito rapidamente. No dia 15 de março, soubemos que a biblioteca funcionaria apenas por mais duas semanas. Dois dias depois, veio a informação de que o horário seria reduzido em três horas. A biblioteca funcionou apenas um dia com o horário reduzido. Depois não abriu mais. No mesmo dia em que tinha um encontro marcado com meu coorientador, Martin Wiggins, recebemos o aviso de que o instituto, que pertence à Universidade de Birmingham, também fecharia por tempo indeterminado. Eu estava lá dentro. Quase simultaneamente li o comunicado da FAPESP informando que poderia voltar ao Brasil, se quisesse. Não havia pensado na hipótese de regressar. Nos dias seguintes a situação começou a ficar fora de controle. Muita gente abandonou a cidade, começaram a faltar não apenas alimentos frescos, mas também enlatados nos supermercados. A Royal Shakespeare Company já havia fechado suas portas. Em questão de dias, tomei a decisão de antecipar minha volta ao Brasil.
Cheguei a Stratford-upon-Avon em setembro, com uma bolsa estágio de pesquisa no exterior (Bepe). Estava no sétimo mês da investigação e pretendia ficar lá até agosto. Fui ator até os 30 anos de idade, quando ingressei no curso de história da Universidade de São Paulo com o desejo de me tornar professor de história do teatro, me especializando em William Shakespeare [1564-1616]. Busco compreender como o contexto histórico forma a estética das peças, e o que elas dizem sobre sua época. Desde a iniciação científica venho aprofundando o mesmo objeto de pesquisa. Tento entender a representação da diplomacia europeia na obra de Shakespeare e seus colegas, na virada do século XVI para o XVII. Tudo começou quando a professora Iris Kantor, hoje minha orientadora, em um trabalho de fim de semestre da disciplina de história ibérica, disse que poderíamos escolher a fonte de pesquisa, desde que relacionada à temática do curso. Naquele momento, optei pela representação dramática da Espanha – então grande antagonista da Inglaterra. Queria compreender como a Invencível Armada [esquadra reunida em 1588, pelo rei Filipe II da Espanha, para invadir a Inglaterra] impactou a obra de Shakespeare, por intermédio do estudo dos personagens espanhóis. No doutorado, iniciado em 2017, trabalho com a memória dessa guerra, depois da paz estabelecida. Ou seja, como as obras evocam os acontecimentos do conflito, no reinado de James Stuart I. Meu recorte temporal vai de 1603 a 1625 e inclui os eventos da diplomacia anglo-espanhola.
Desembarquei em São Paulo dia 25 de março, observei as duas semanas de quarentena e agora sigo em isolamento social. Em Stratford, cumpri o cronograma previsto para os sete meses. Estudei as mais de uma centena de peças do repertório da companhia de Shakespeare. Também consegui fazer um estudo comparativo entre aquelas que têm mais de uma edição, de acordo com os eventos políticos. Em dois dias, fiz o download de todo o acervo digital disponível que precisava. Mas, por causa da interrupção da atividade de pesquisa dentro do instituto, perdi o acesso a toda a fortuna crítica. Não há nada parecido, no Brasil, com o acervo de uma biblioteca tão especializada quanto a do Shakespeare Institute – que, aliás, não empresta livros. O que fortalece essa instituição é a ideia de uma comunidade de pesquisadores altamente especializados. E o diálogo com essa comunidade é algo que faz falta. Especialistas de todo o mundo estão lá todos os dias. Todos sabem o que todos pesquisam e, de modo geral, um ajuda o outro. Esse convívio diário possibilita conexões e troca intelectual.
Nesse momento, estou analisando o material digitalizado e finalizando a escrita de dois artigos. Tudo agora é muito nebuloso, mas pretendo voltar ao instituto, para trabalhar dois grupos de fontes de apoio: os panfletos políticos que circulavam na época e os documentos diplomáticos que estão no The National Archives. Mas, quanto ao principal grupo de fontes, minha tese já para de pé. Fui para o Reino Unido não apenas para estudar e aprender, mas também para contribuir com minha pesquisa para os estudos shakespearianos no exterior. Esse trabalho, inédito no exame da representação de eventos diplomáticos entre duas guerras anglo-espanholas [1585-1604 e 1625-1630], utilizando repertório dramático como série documental, contribui para outros desenvolvidos nesse campo. Neste ano, havia sido aceito para cinco importantes congressos internacionais e passei a integrar o grupo de estudos de Wiggins, em que pretendo permanecer. Aliás, minha última conversa com ele, antes de saber que viria embora, foi justamente sobre a representação da peste em Shakespeare. Todo mundo fala que Shakespeare escreveu Macbeth e Rei Lear, duas grandes tragédias, sobre o colapso político-social do reino, em período de peste. Mas existem outras peças, que ele produziu também sob impacto desse flagelo e que não são tragédias. Reverberam a vontade de superar um trauma coletivo. A comédia dos erros, Péricles e Conto de inverno expressam o desejo de resgatar os mortos perdidos para a peste. Uns personagens pensam que outros estão mortos, mas, ao final, descobrem que estão vivos.
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