A reabilitação de pessoas com fissuras e malformações no lábio e no céu da boca já pode ser realizada com próteses especiais. A solução é inédita no país e foi desenvolvida por uma equipe multidisciplinar do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC) da Universidade de São Paulo (USP), mais conhecido como o Centrinho de Bauru. A nova técnica substitui a cirurgia no tratamento de alguns casos desse que é um dos problemas congênitos mais comuns do mundo. No Brasil, chamada popularmente pelo nome de lábio leporino, essa anomalia atinge uma em cada 750 crianças que nascem, acrescentando 16 novos bebês por dia à população de 240 mil pessoas que têm fissuras labiopalatais.
O lábio leporino seria suficientemente ruim se fosse apenas um problema estético. Mas não é. As fissuras labiopalatais são a principal causa da disfunção velofaríngea, uma situação capaz de prejudicar de tal maneira a fala que a pessoa atingida não consegue comunicar-se normalmente. “Ela pode levar o indivíduo a um desajuste psicológico e até mesmo ao afastamento social”, afirma a fonoaudióloga Maria Inês Pegoraro-Krook, coordenadora do projeto de pesquisa Tratamento de Pacientes Fissurados de Palato (Congênita ou Adquirida) por Meio de Prótese de Fala , que recebeu financiamento da FAPESP no valor de R$ 12,4 mil.
Normalmente, esse problema é tratado com uma intervenção cirúrgica. No entanto, os especialistas perceberam, há muito tempo, que um grande número de pacientes fissurados, inclusive em função de acidentes, não podia ser tratado com cirurgias e, portanto, apresentava indicação para uma prótese de palato. Para identificar essas situações, a equipe do Centrinho realizou o estudo que envolveu 71 pacientes.
Alto nível
A adoção de prótese ajuda as pessoas a superar um sério problema de exclusão social. “A angústia de ser incompreendido e de não conseguir se expressar reprime a criatividade e a capacidade de aprender”, lembra Maria Inês. Para o sucesso do estudo contou o fato de o Centrinho unir o atendimento de pessoas de todo o país a pesquisas acadêmicas de alto nível, com o objetivo de aprimorar as técnicas de tratamento não só das fissuras labiopalatais, mas de problemas como dismorfias craniofaciais, como são chamadas as malformações da cabeça que também apresentam deficiências auditivas, visuais e de linguagem de modo geral.
Uma das próteses desenvolvidas no Centrinho corrige a disfunção velofaríngea, que atinge uma válvula muscular situada entre o nariz e a boca. Sua função é a de controlar a passagem do ar. Nas pessoas com fissuras labiopalatais, a válvula não efetua automaticamente o movimento de abrir ou fechar, por falta de tecido ou por incapacidade de fazer os movimentos adequados. Se a válvula não funciona perfeitamente, a pessoa, mesmo tendo boa articulação, não consegue emitir os sons da fala de forma natural. Há uma perda de ar pelo nariz durante a fala caracterizando a hipernasalidade, ou voz fanhosa.
Análise acústica
Os pesquisadores de Bauru começaram o projeto identificando algumas situações nas quais, pelas indicações existentes, o uso da prótese seria preferível à intervenção cirúrgica tradicional. As situações escolhidas foram: quando as fissuras são tão grandes que não existe tecido suficiente para o reparo cirúrgico, quando não há tecido suficiente para fechar o palato duro, a parte óssea do céu da boca, com tecidos do próprio local ou quando há deficiências neuromusculares no palato ou na faringe.
Foram escolhidos 71 pacientes com fissura do palato, congênita ou adquirida depois do nascimento. O principal instrumento usado na pesquisa foi um equipamento de avaliação acústica chamado nasômetro. O aparelho capta separadamente, por meio de dois microfones direcionais, separados por uma barra horizontal colocada acima dos lábios, os sons emitidos pelo nariz e pela boca. Os sinais, filtrados e digitalizados por módulos eletrônicos e processados num computador, indicam o grau de nasalância, ou intensidade da hipernasalidade do paciente.
No final, a pesquisa usou os dados de 59 pacientes. Os outros foram eliminados por estarem resfriados ou porque as gravações apresentaram problemas técnicos. Todos os pacientes leram um texto padronizado, constituído por 73 palavras em oito frases, chamado A História do Urso Preto . Em seguida, o paciente era solicitado a discorrer sobre um fato qualquer, para o registro do que é chamado de sua “fala espontânea”.
O projeto não ficou aí. Alguns dos pacientes com prótese passaram por programas intensivos de fonoterapia no próprio hospital ou em suas cidades de origem. No final, passavam por novas gravações e os resultados eram confrontados. Isso levou a conclusões importantes não só com relação à prótese, mas também quanto ao tratamento de fonoterapia e ao conhecimento das alterações ocorridas no bulbo faríngeo. Ainda como parte do projeto, alguns pacientes foram filmados com e sem a prótese.
Melhora significativa
Os pesquisadores chegaram à conclusão que existem realmente situações indicadoras da prótese como o tratamento mais indicado para a fissura. Dos 59 pacientes, 41, ou 69,49%, apresentaram melhoras significativas quanto à compreensão da fala com o uso da prótese. Dos restantes, três, ou 5,08%, não apresentaram diferença e 15, ou 25,42%, mostraram uma leve piora.Quanto à avaliação nasométrica, realizada com 62 pacientes, houve melhora em 43 pacientes, ou 69,36%, piora em 18, ou 29,03%, e igualdade de condições em um, ou 1,61%. A avaliação da ressonância da fala, feita em 55 pacientes, mostrou redução da hipernasalidade com o uso da prótese em 38, ou 69,09%, nenhuma diferença em seis, ou 10,9%, e um aumento ligeiro na hipernasalidade em 11, ou 20%.
Acordo com a Flórida
Os resultados do projeto ampliaram os conhecimentos adquiridos pelo Hospital de Reabilitação, que, em 32 anos de existência, já atendeu quase 50 mil pessoas e é considerado centro de excelência nacional pelo Ministério da Saúde e centro de referência mundial pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Maria Inês, além de professora do Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (USP), é responsável pelo Laboratório de Fonética Acústica e pelo Serviço de Prótese de Palato do Centrinho. Ela dirige também um convênio entre a USP e a Universidade da Flórida, nos Estados Unidos.
Esse projeto de pesquisa foi assinado em 1992 e tem o objetivo de comparar os resultados obtidos na fala e na função da velofaringe em pacientes com fissura unilateral de lábio e palato submetidos à palatoplastia, ou fechamento cirúrgico da fissura palatina por meio de duas técnicas cirúrgicas, a de Von Langenbeck e a de Furlow. O projeto, que começou em fevereiro de 1996, prevê a participação de 352 pacientes.
Para fazer a pesquisa, a Universidade da Flórida recebeu uma verba de US$ 1 milhão do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos. O projeto foi aprovado em 1995, incluindo o repasse de parte do auxílio para o Centrinho, por meio da USP. Não é pouca coisa. “Somos a primeira universidade brasileira a ter um projeto aprovado por esse respeitado e concorrido órgão do governo americano”, comenta Maria Inês.
PERFIL
Maria Inês Pegoraro-Krook tem 38 anos e formou-se em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, em 1982. Fez mestrado e doutorado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e está concluindo o programa de pós-doutorado no Centro Craniofacial da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. Tem cursos de especialização na Universidade de Copenhague, na Dinamarca, e no Hospital Geral de Malmö, da Universidade Lund, na Suécia.
Projeto
Tratamento de Pacientes Fissurados de Palato (Congênita ou Adquirida) por Meio de Prótese de Fala
Investimento : R$ 12.430,70