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Criogenia

Alto custo e incertezas no fornecimento do gás hélio dificultam pesquisas

Liquefeito, o gás nobre é usado para resfriar aparelhos de ressonância magnética, aceleradores de partículas e computadores quânticos

Hélio usado no acelerador de partículas LHC

Maximilien Brice /CERN

Pela quarta vez desde 2006, o hélio passou por uma crise de escassez no mercado global e seu preço chegou a dobrar em relação aos valores do início da década. O custo internacional de 1 metro cúbico (m3), equivalente a mil litros, passou de US$ 7 em 2021 para US$ 14 no ano seguinte. No Brasil, hoje o preço do produto é de R$ 190, três vezes mais do que nos Estados Unidos ou na Europa. Embora haja sinais de que o pior da crise tenha passado, com um aumento da oferta e redução dos preços nos últimos meses, as limitações no fornecimento global de hélio e seu uso crescente em equipamentos da área médica, processos industriais e atividades de pesquisa indicam uma demanda em alta por esse gás nobre nos próximos anos.

Por ser mais leve do que o ar e totalmente inerte, o hélio preenche o interior dos balões decorativos que flutuam e fazem a alegria das crianças. Também pode ser utilizado para impulsionar balões meteorológicos e científicos, dirigíveis, entre outros fins. Mas seu principal emprego se deve a uma propriedade singular de sua fase líquida: é o único elemento químico que, em condições normais de pressão, não se torna sólido a temperaturas extremamente próximas do zero absoluto (0 Kelvin), equivalente a -273,15 graus Celsius (°C). A característica torna o hélio líquido indispensável para atividades e aplicações que dependem de baixíssimas temperaturas para funcionar, como aparelhos de ressonância magnética, aceleradores de partículas, computadores quânticos e estudos das propriedades fundamentais de materiais.

Esse é o caso do trabalho feito no Laboratório de Estado Sólido e Baixas Temperaturas do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). “Quando falta hélio, o impacto é total. Em 2009, a gente ficou um ano sem hélio no departamento e ninguém conseguiu trabalhar. No ano seguinte, não publiquei nenhum artigo”, conta o físico Rafael Sá de Freitas, que comanda o laboratório. Sua linha de pesquisa consiste em submeter diversos materiais a um forte campo magnético a fim de estudar seu comportamento em temperaturas muito baixas. Para isso, precisa recorrer à criogenia. “Trabalho com temperaturas 0,1 °C acima do zero absoluto. Sem o hélio, não chego nem a 70 Kelvin”, explica Freitas, que neste ano sofreu com os preços elevados, mas conseguiu garantir sua cota do produto

“Estamos acompanhando com grande preocupação a oferta do gás e buscando alternativas, não somente para o aumento de custo, mas também para uma interrupção de fornecimento que poderia eventualmente ocorrer”, afirma o físico Eduardo Granado, do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (IFGW-Unicamp), que estuda materiais quânticos e faz uso de sistemas de criogenia. “Tentamos gerenciar os impactos do preço do hélio nas nossas pesquisas envolvendo baixa temperatura com uma priorização e compartilhamento, entre diversos grupos, dos equipamentos mantidos resfriados simultaneamente.”

O hélio é o segundo elemento mais abundante do Universo, depois do hidrogênio, e se concentra nas estrelas. Na Terra, aparece de forma tímida na atmosfera. A cada milhão de moléculas presentes no ar, cinco são de hélio. É tão leve que escapa muito mais rápido do que os outros gases do campo gravitacional do planeta e se dissipa pelo espaço. Está presente ainda sob a crosta terrestre, onde se origina do decaimento de materiais radioativos, como urânio e tório. Geralmente é encontrado junto a reservas de gás natural, sendo um subproduto da extração desse combustível. Sua produção anual, de cerca de 170 milhões de m3, restringe-se basicamente a cinco países – Qatar, Estados Unidos, Argélia, Rússia e Canadá – e a distribuição é altamente concentrada em poucas e grandes empresas multinacionais. Cerca de metade do gás extraído se perde em etapas de seu processo de engarrafamento e transporte, algo que o torna ainda mais caro.

PexelsAparelho de ressonância magnética que também necessita do elemento para funcionarPexels

O mais recente ciclo de escassez do hélio teve início em razão de um grande vazamento na reserva federal dos Estados Unidos, localizada em Amarillo, no Texas, em janeiro de 2022. Isso cortou 10% do fornecimento mundial de hélio da noite para o dia. Em fevereiro daquele ano, a Rússia entrou em guerra com a Ucrânia. O conflito afetou a produção de gás natural e, por tabela, a extração de hélio. Além disso, quatro unidades de produção do Qatar entraram em manutenção planejada e a Argélia passou a vender o gás natural diretamente para a Europa no lugar de refiná-lo e extrair o hélio. Tudo isso afetou o mercado do produto, que só agora começa a se normalizar.

No Brasil, contabilizada toda sua logística, o hélio se torna um insumo de pesquisa muito dispendioso. Cotações de mercado obtidas por professores do IF-USP indicam que o preço do metro cúbico do gás já vinha em uma crescente desde 2018. De R$ 31,4 em 2017, dobrou em 2018, atingindo R$ 68. Chegou a R$ 150 em 2019, R$ 190 no início de 2022 e R$ 495 em novembro daquele ano. Em seguida, o preço recuou para R$ 270 em outubro de 2023 e R$ 190 agora em 2024.

Uma alternativa que reduz, em parte, a dependência desse insumo é a adoção dos chamados sistemas livres de criogenia. Apesar do nome, esses dispositivos empregam uma quantidade reduzida de hélio líquido, mantido em um sistema fechado. Sempre que se esquenta e se evapora, o hélio volta a ser resfriado e a se liquefazer por meio de um processo mecânico. Investir nesse tipo de equipamento foi o caminho escolhido pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, que, desde o ano passado, contabiliza seis equipamentos parados por falta de hélio.

Os sistemas livres de criogenia são mais caros e sua manutenção não é barata, mas representam um investimento mais pontual, que prescinde de financiamento constante para a aquisição de hélio. Como produzem vibração, seu emprego, no entanto, não é indicado para alguns usos, como na área de computação quântica. Também não se prestam a ser usados em sistemas submetidos a campos magnéticos muito intensos. “Gostaríamos de manter alguns equipamentos básicos com o emprego de hélio líquido, mas isso não está sendo possível”, afirma Magda Fontes, do CBPF. Apesar da aparente estabilização do mercado internacional, o preço do hélio dificilmente vai despencar nos próximos anos devido à alta demanda, segundo analistas internacionais.

A reportagem acima foi publicada com o título “O peso das flutuações do hélio” na edição impressa nº 344, de outubro de 2024.

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