ZÉ VICENTEQuerido Jorge, você estava certo em tantas coisas que só agora me atrevo a admitir. “Todo neurocientista se torna para-raios de malucos, magneto de psicopatas”, você dizia. E eu pensava que esse era seu modo enviesado de pôr em dúvida meu juízo. “Não há vício que leve à ruína mais rápido do que o de viver acima das próprias posses”, você repetiu inúmeras vezes, quando conquistei prêmios de prestígio e comecei a esbanjar um pouco. Jorge, você era um chato, mas me deu uma chance quando descobriram minhas fraudes acadêmicas e me afastaram da universidade.
Outros colegas da equipe, meus ilustres “comparsas de pesquisa”, como você os chama, não receberam esse tipo de apoio. O Jardel se deixou abater pela demissão, a perda de prestígio e a enxurrada de retratações. Dezesseis artigos desqualificados e uma esposa consumista em crise de abstinência levaram-no do divã ao divórcio. Agora ele dá aulas de biologia num colégio estadual, porque nenhuma escola de alto nível quer manchar a própria imagem empregando um ex-pesquisador corrupto. A indústria também quer distância da gente a não ser para consultorias secretas e mal pagas. Seus abutres de terno ainda acham que deveríamos agradecer de joelhos pela honra de servi-los. O Hélio tentou suicídio, ou diz que tentou, pra chamar atenção da família. Ninguém ligou a mínima. As famílias modernas deixaram de lado aquele amor invasivo e sufocante. Mantêm contato por mensagens de texto. A irmã do Hélio, quando soube que ele havia sobrevivido, digitou “q bom q vc tah bem. se cuida”.
Parece que o último parente à moda antiga no universo é você, Jorge. Ainda assim, eu não soube ser grato. Entenda que é difícil, para quem já foi um conferencista internacional, agradecer por um empreguinho como dublê de supervisor de obras, na construtora do irmão. Eu não sabia o que fazer naqueles prédios. O supervisor de verdade supervisionava meus passos e você não me deixava receber salário sem fingir trabalhar, porque pretendia corrigir meu caráter. Jorge, meu irmão, eu acho que te odeio.
Todos nós vivíamos não somente acima de nossas posses, mas também acima de nossas possibilidades intelectuais. Esse tipo de vício está além de sua compreensão, Jorge. Sua inteligência mediana, tão útil para as miudezas do dia a dia, mal pode conceber o que um jovem cientista genial sente quando um de seus primeiros artigos recebe uma centena de citações. Nós nos viciamos em ser brilhantes a qualquer custo e conseguimos por quase uma década.
A estrutura da universidade – sua trama de burocracia, secretárias e seguranças – funcionava como uma gaiola de Faraday ao redor de mim e da minha equipe. Mantinha longe os malucos que tentavam atingir-nos como raios. Precisei cair em desgraça para perceber quantos eram e avaliar seu grau de persistência obsessiva. Eles me cercavam na rua. Queriam saber o verdadeiro motivo do meu afastamento. “O senhor descobriu algum segredo do governo, não foi, professor?”, eles perguntavam. “Conta pra gente. É verdade que a indústria farmacêutica está incluindo o vírus do autismo nas vacinas contra a gripe?” Em suas teorias conspiratórias, eu era um herói, o cientista íntegro que precisava de uma forcinha para desmascarar governos e empresas malévolos.
No mês passado, um deles, não sei como, invadiu meu apartamento. Era um sujeito baixinho, magrelo, hiperativo e cheio de tiques. Veio com uma conversa estapafúrdia. Ele seria um alienígena a fim de me contratar para um projeto de pesquisa em outro planeta. Tentei convencê-lo a sair. Ele continuou lá, falando e falando sobre transferir minha mente para outro mundo, através do espaço, num tipo de upload intergaláctico. “O senhor percebe, professor, que nós já dispomos de tecnologia para baixar nossas mentes para corpos humanos como este que estou usando”, disse o invasor de apartamentos, agora se promovendo à categoria de invasor de cérebros. “Ocorre, porém, uma falha no que diz respeito às expressões faciais. Ou ficamos inexpressivos ou excessivamente dramáticos. Queremos nos misturar sem parecer ridículos ou frios. O senhor, como neurocientista, reúne as qualificações necessárias para ser nosso humano de confiança nesse projeto de compatibilização expressiva. Podemos contar com o senhor?”
Perdi a cabeça. Explodi. Eu estava exausto de fingir trabalhar, exausto de fingir inocência, exausto de tolerar a loucura alheia. “Vocês do seu planeta precisam se informar melhor sobre os funcionários que contratam”, rosnei. “Eu não sou de confiança quando se trata de dinheiro”, admiti num surto depressivo. “Nós sabemos disso, professor, mas o senhor é brilhante em sua área. Peça quanto quiser. Nós pagamos”, respondeu o homenzinho. “Pois bem, senhor alienígena, saia daqui e só volte com cinco milhões de dólares. Entendeu?” Ele ficou em silêncio por alguns segundos, com os olhos erguidos como os de um ser humano normal quando faz contas mentalmente. Depois partiu sem dizer palavra. Venci. Admiti meus erros, mas venci. A quantia exorbitante que me veio à mente para fazê-lo desistir foi a mesma que obtive fabricando dados para pleitear verbas de pesquisa.
Há duas semanas, por incrível que pareça, Jorge, ele voltou com o dinheiro. Você já viu cinco milhões de dólares juntos na sua frente? É irresistível. Aceitei o emprego, pedi uma semana de prazo e fugi quando ele virou as costas. É claro que eu não acreditava naquela história de pesquisa em outro planeta. Ao contrário do que você sempre insinuou, eu não sou maluco. Mas aquele sujeito era doido de pedra e queria algo de mim, algo assustadoramente esquisito. Deixei o apartamento pros credores e sumi.
Acontece que o homenzinho me encontrou. Não sei como. Ele disse que meu prazo para pôr os negócios em ordem, me despedir da família e encontrar uma clínica de confiança onde deixar meu corpo, que ficaria vazio após minha transferência mental, havia terminado. Ou eu ia com ele naquele momento ou ele ofereceria o emprego a outra pessoa, talvez ao Hélio ou ao Jardel. Assim sendo, precisei matá-lo. Foi legítima defesa de minhas posses e possibilidades. Você devia ter visto o brilho estranho que os olhos dele emitiram na hora da morte. O corpo, em pequenas parcelas, está concretado nas colunas do edifício Altos da Excelência. Não deixe o supervisor mexer nelas, Jorge. Continue erguendo o prédio. Esse é o conselho que te deixo antes de sumir de vez. Vá por mim, é melhor não mexer nos esqueletos que sustentam altos projetos.
Republicar