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Itinerários de pesquisa

Amara Moira defende que pessoas transgênero estejam no meio acadêmico produzindo conhecimento

Escritora pesquisou a obra de James Joyce no mestrado e no doutorado na Unicamp

Amara no Museu da Diversidade Sexual, onde é coordenadora de exposições, de programação cultural e do núcleo educativo

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Sou uma travesti que sempre quis ser escritora. Minha ligação com os livros é antiga. Nasci em Campinas [SP] em uma família de classe média e minha mãe conta que aprendi a ler aos 4 anos. Vivi como homem por 29 anos e cresci isolada, sem amigos, por não conseguir ser quem eu realmente era. Foi nos livros que encontrei um abrigo seguro e talvez por isso decidi seguir o percurso das letras, um caminho que me oferecia a chance de criar mundos onde eu fazia sentido.

Em 2005, entrei na graduação do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]. Logo na aula de recepção dos calouros do curso de letras me deparei com o ABC da literatura, do poeta e crítico literário norte-americano Ezra Pound [1885-1972], que traz um levantamento do que há de mais vanguardista e sofisticado na literatura internacional. Eu me apaixonei por essa obra lançada na década de 1930 porque ela revela que isso que hoje entendemos como vanguardismo sempre fez parte da literatura, ainda que muitas vezes percamos a sensibilidade para esse lado mais experimentalista de outras épocas e culturas.

Quem ministrou a aula aberta foi Trajano Vieira, professor de língua e literatura grega da Unicamp, uma grande influência na minha trajetória acadêmica. Durante a graduação, tive a oportunidade de assistir a algumas de suas palestras e costumava mostrar a ele os poemas que eu traduzia como exercício de aprendizado poético – sugestão preciosa de Pound. Meu nome social, que adotaria mais tarde, foi inspirado por uma expressão que vi na tradução dele para o clássico Odisseia [Editora 34, 2011], poema de Homero composto por volta do século VIII antes de Cristo. As moiras eram as videntes que previam o destino de Ulisses e “amara” é uma forma mais erudita de dizer “amarga”. No caso, “amara moira” é “destino amargo”, junção de palavras que escolhi não apenas pelo significado, mas também pela sonoridade.

Com Trajano e Pound, encontrei um caminho para conhecer minha própria voz. Comecei a explorar a tradução de poesia experimental e também estudar poesia erótica por conta própria. O interesse pelo erotismo deixou meus pais preocupados: eles achavam que essa temática pudesse prejudicar minha carreira acadêmica. Mas o receio se revelou infundado. Por volta de 2006, a professora Eliane Robert Moraes, que atuava na PUC-SP [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo] e hoje é professora de literatura brasileira da USP [Universidade de São Paulo], me contratou como assistente para ajudá-la por cinco meses na elaboração da Antologia da poesia erótica brasileira [Ateliê Editorial, 2015]. Essa oportunidade me mostrou que havia um propósito e uma valorização em relação à pesquisa que eu estava realizando.

Cerca de dois anos depois, em 2008, ganhei uma bolsa para estudar literatura medieval na Universidade do Porto, em Portugal, e aprender paleografia, a leitura de documentos antigos. Essa experiência foi fundamental para meu trabalho de conclusão da graduação em 2010, em que abordei as cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores medievais que falavam de “sodomia”, o nome com que era designada, à época, a dissidência sexual e de gênero.

Reprodução do vídeo da TV Unicamp no YouTubeEm 2018, na defesa de sua tese de doutorado na UnicampReprodução do vídeo da TV Unicamp no YouTube

Até então, eu acreditava que trilharia uma carreira acadêmica como medievalista. Eu já tinha inclusive um projeto de mestrado nesse sentido para submeter à Unicamp logo após minha formatura. Entretanto, no último semestre da graduação, um professor ofereceu uma disciplina inteira dedicada ao livro Ulysses, de James Joyce [1882-1941]. Essa experiência me fez mudar a linha de pesquisa. Fiquei completamente seduzida pela obra, por aquelas experimentações e reinvenções de linguagem que Joyce costuma levar às últimas consequências. Entrei no mestrado na Unicamp em 2011, com um projeto de uma nova tradução de Dublinenses, livro de contos de Joyce, com bolsa da FAPESP. É um trabalho que ainda pretendo publicar.

Em 2013, passei em primeiro lugar no doutorado da Unicamp e dei prosseguimento à pesquisa sobre Joyce, dessa vez com bolsa da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior]. Meu foco foi Ulysses. No livro, o autor trabalha com a indeterminação de sentidos por meio de recursos como onomatopeias ou palavras indecifráveis, como se quisesse deixar o leitor sempre em dúvida sobre o que ele está conseguindo compreender. Em minha pesquisa analisei como foram traduzidos esses momentos em que a obra flerta com a ininteligibilidade.

No primeiro ano de doutorado comecei minha transição de gênero. Eu estava com 29 anos e esse processo me afastou do papel de pesquisadora em tempo integral. Foi uma fase turbulenta. Eu saí de casa porque meus pais tiveram grande dificuldade em aceitar essa escolha. Tampouco me sentia aceita na universidade: eu me sentia julgada, avaliada, observada por parte dos colegas e professores. Por dois anos, trabalhei como prostituta, que era um meio em que me sentia acolhida. Muitas das pessoas com quem dividi as calçadas eram travestis e haviam passado pela mesma experiência que eu vivia naquele momento. Não quero romantizar o que vivi como prostituta, mas ali pude construir uma relação mais positiva com meu corpo, viver a sexualidade de uma forma menos normativa e ainda conviver com pessoas que, a cada dia, eu ia aprendendo a admirar mais. Entretanto, enfrentei abordagens da polícia, além de agressões verbais e físicas nas ruas de Campinas.

Em meio a esse turbilhão, continuei o doutorado, apesar de muitos questionamentos, dentre eles se minha pesquisa fazia sentido naquele momento que eu estava vivendo. A Unicamp não me abandonou, manteve o apoio, o que foi crucial para que eu não largasse meu projeto de estudo. Defendi minha tese de doutorado em 2018 e isso se tornou notícia de jornal, mas não pela qualidade da minha escrita e sim por eu ter sido apontada como a primeira pessoa trans a obter o título de doutora pela Unicamp usando o nome social.

Na época, havia outras pesquisadoras transgênero na Unicamp, como Beatriz Pagliarini Bagagli, que é da área de letras, e Jéssica Milaré, da matemática. Mas éramos, e ainda somos, muito poucas. Como falei durante a defesa da minha tese, concluí o trabalho sobretudo porque é preciso que as pessoas trans estejam dentro do ambiente universitário produzindo conhecimento e tensionando o conhecimento produzido na academia, e não mais apenas como objeto de estudo.

A pesquisa acadêmica deixou de ser o maior propósito da minha vida, outras questões começaram a ser tão importantes quanto ela, a exemplo do ativismo e da escrita. Hoje, aos 39 anos, já publiquei dois livros autorais. Moro em São Paulo e sou coordenadora de exposições, de programação cultural e do núcleo educativo do Museu da Diversidade Sexual, do governo paulista. Minha vida está muito corrida, mas não pretendo parar de estudar. Meu plano é fazer em breve um estágio de pós-doutorado. Há cerca de seis anos comecei a levantar obras literárias escritas no Brasil por autores transgêneros e reuni até agora mais de 100 títulos, boa parte autobiografias. Quem sabe não nasce daí uma pesquisa acadêmica?

A reportagem acima foi publicada com o título “Entre as palavras e a identidade” na edição impressa nº 344, de outubro de 2024.

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