O Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) deve divulgar no dia 29 de junho a lista final de projetos aprovados em um edital para apoiar pesquisas sobre a Covid-19, que prevê R$ 50 milhões em investimentos. Desse montante, há R$ 30 milhões em recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) para estudos sobre tratamentos, vacinas e testes de diagnóstico e sobre a patogênese da doença. Os outros R$ 20 milhões vêm do Ministério da Saúde para aplicação em projetos sobre prevenção e controle da doença e atenção à saúde. O balanço do edital mostra que a comunidade científica do país está mobilizada para gerar conhecimento sobre a doença e que os recursos oferecidos são pequenos diante da demanda. Foram apresentados 2.219 projetos. Se todos pudessem ser contemplados, seria necessário investir R$ 1,7 bilhão, 34 vezes mais do que o dinheiro disponível na chamada. Um comitê de avaliação recomendou preliminarmente a aprovação de 90 propostas, que abrangem temas como o uso de inteligência artificial na tomada de decisões médicas e o desenvolvimento de vacinas e novos testes diagnósticos. “Há projetos de grande qualidade que acabaram não sendo recomendados porque não produziriam resultados em tempo de atenuar os efeitos da pandemia”, diz o presidente do CNPq, o agrônomo e entomologista Evaldo Vilela. “Estamos empenhados em levantar mais recursos, tanto de dinheiro federal quanto da iniciativa privada, para financiar outros projetos, além desses 90.”
O edital do CNPq é a iniciativa mais abrangente lançada pelo governo federal para financiar pesquisas sobre o novo coronavírus e se soma a várias outras ações. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), por exemplo, está investindo R$ 141 milhões na contratação de projetos considerados estratégicos pelo governo, entre os quais ensaios clínicos com drogas como a cloroquina e a nitozaxanida, a produção de ventiladores de baixo custo e o desenvolvimento tecnológico de uma vacina por uma equipe das fundações Zerbini, Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre outros. A FAPESP, que já está financiando mais de 50 projetos sobre a Covid-19 propostos por pesquisadores paulistas, associou-se à Finep no lançamento de uma chamada pública que prevê R$ 20 milhões para projetos de pequenas empresas dispostas a desenvolver processos ou produtos inovadores, como kits diagnósticos para a doença, ventiladores pulmonares e equipamentos de proteção individual. A Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), destinou R$ 9 milhões a projetos para desenvolver testes de diagnóstico e fornecer equipamentos de proteção para hospitais.
Boa parte dos recursos federais usados até agora foi remanejada de outras fontes, mas duas medidas provisórias (MP) em tramitação no Congresso Nacional reservam recursos novos para aplicar em pesquisas sobre a Covid-19. As MPs 929 e 962 desbloquearam R$ 326 milhões do FNDCT para ações na emergência sanitária, além de outros R$ 120 milhões em um programa de inovação e desenvolvimento sustentável. A liberação de recursos para a pesquisa contra a Covid-19 ocorre em um momento em que o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação [MCTI] está em seu patamar mais baixo em uma década. “Dos R$ 4,7 bilhões de recursos arrecadados pelo FNDCT neste ano, apenas R$ 600 milhões estavam disponíveis no orçamento. Todo o restante fora contingenciado”, diz o presidente da Academia Brasileia de Ciências (ABC), o físico Luiz Davidovich.
Ele ressalta que os recursos desbloqueados nem sequer chegam a recompor o nível orçamentário de cinco anos atrás. “Estamos propondo que, emergencialmente, todo o montante do FNDCT seja liberado neste ano, não apenas para viabilizar pesquisas que auxiliem a combater a pandemia como também para ajudar a alavancar a inovação no Brasil e tirar o país da recessão brutal em que estamos mergulhando”, afirma Davidovich. Evaldo Vilela, do CNPq, concorda que os recursos disponíveis estão aquém do necessário, mas aponta dificuldades em ampliá-los. “Sou testemunha de que o ministro Marcos Pontes tem se empenhado muito para conseguir mais recursos no Congresso e na área econômica do governo. Essa pandemia veio em um momento em que a economia brasileira já vivia um aperto fiscal forte e o governo precisou investir bastante dinheiro em demandas de caráter social”, afirma. “Os estados também estão em dificuldades financeiras e suas fundações de amparo à pesquisa igualmente sofrem para ampliar investimentos nesse momento”, complementa.
O esforço do Brasil em investir em pesquisa sobre a Covid-19 é pequeno quando comparado ao de nações desenvolvidas. Um estudo realizado em maio pelo Centro de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e Sociedade do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mapeou as ações em pesquisa e inovação adotadas no Brasil e em quatro países: Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Alemanha. Um dos indicadores cotejados foi o de dinheiro novo, aquele não previsto anteriormente no orçamento, destinado a pesquisa e desenvolvimento (P&D) para enfrentar a pandemia. O montante do Brasil, estimado em US$ 100 milhões, ficou aquém dos US$ 970 milhões do Canadá, do US$ 1,72 bilhão do Reino Unido, dos US$ 2,34 bilhões da Alemanha e dos US$ 6,1 bilhões dos Estados Unidos. Em termos relativos, o esforço brasileiro também é inferior ao dos demais países estudados: equivale a apenas 1,8% do orçamento federal em P&D, ante 4,1% nos Estados Unidos, 6,3% na Alemanha, 10,8% no Reino Unido e 11,8% no Canadá. O trabalho mostrou que, entre os cinco países, só Estados Unidos e Reino Unido criaram mecanismos para aprovação rápida de projetos de pesquisa e inovação relacionados à Covid-19. Nos Estados Unidos, os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) definiram um plano estratégico para a Covid-19 com quatro prioridades: pesquisa básica para compreensão da doença, desenvolvimento de testes de diagnóstico, ensaios clínicos com possíveis tratamentos e busca por uma vacina. Até maio, já haviam lançado mais de 30 editais para financiar pesquisas nessas áreas, segundo o trabalho do Ipea.
Na avaliação de Fernanda de Negri, economista do Ipea que coordenou o estudo comparativo, a quantidade de recursos que o Brasil destina à pesquisa da Covid-19 deveria ser muito maior para enfrentar os estragos causados pela crise. “Investir mais em ciência para desenvolver soluções dentro do país custaria pouco diante do enorme custo social da pandemia, na forma de impacto no PIB [Produto Interno Bruto] e de falência de empresas”, afirma. Ela critica a falta de uma estratégia nacional, por exemplo, para desenvolver ou comprar uma vacina que se mostre eficiente contra a Covid-19, um fator- chave para superar a pandemia. “Isso requer acompanhar o desenvolvimento das pesquisas e elaborar cenários sobre quais serão os desfechos possíveis; caso contrário, o Brasil estará condenado ao final da fila da imunização, o que agravará as consequências econômicas e sociais da crise no país.”
Duas vacinas criadas no exterior serão testadas em breve no Brasil, mas isso não resultou de uma ação coordenada do governo federal. Uma delas, desenvolvida pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, será testada no âmbito de uma antiga parceria da instituição com um grupo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), enquanto a outra, da empresa chinesa Sinovac Biotech, é fruto de uma iniciativa do governo paulista. “Os Estados Unidos estão apostando em cinco vacinas ao mesmo tempo e patrocinando a construção de plantas para a produção dos imunizantes. Nós não temos uma estratégia e estamos participando muito pouco desse debate internacional”, diz De Negri. A Alemanha, por exemplo, investiu € 140 milhões para apoiar uma aliança internacional em busca de uma vacina, a Coalition for Epidemic Preparedness Innovation (Cepi), que também conta com investimentos da Austrália, Bélgica, Dinamarca e Etiópia. Também anunciou a criação de um fundo de € 750 milhões destinado a empresas, a fim de acelerar o desenvolvimento clínico e a capacidade de produção de vacinas contra o novo coronavírus, e investimentos de € 750 milhões na biofarmacêutica CureVac, que está desenvolvendo um imunizante promissor.
“O Brasil tem expertise no desenvolvimento e na produção de vacinas e nossas instituições e pesquisadores poderiam estar mais ativos na busca por um imunizante contra o novo coronavírus, mas falta investimento”, afirma Elize Massard da Fonseca, especialista em saúde pública e pesquisadora da Fundação Getulio Vargas, que está participando de uma pesquisa internacional sobre as respostas de diferentes governos frente à pandemia. Em fevereiro, o MCTI formou a Rede Viroses Emergentes (RedeVírus), um comitê de assessoramento para identificar e apoiar esforços existentes, com a participação de representantes do Ministério da Saúde, da Academia Brasileira de Ciências e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, de universidades e instituições de pesquisa. Entre as iniciativas recomendadas pelo comitê, inclui-se o desenvolvimento de uma nova tecnologia de produção de vacinas que pode ser útil para a pandemia no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Investigação em Imunologia, sob coordenação do imunologista Jorge Elias Kalil Filho, da Fundação Zerbini e do Instituto do Coração (InCor) da Faculdade Medicina da USP (FM-USP). Por encomenda da RedeVírus, o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas, identificou cinco fármacos que se revelaram promissores em testes com células infectadas com o vírus. Graças a esse trabalho, a Finep contratou um grupo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para realizar um ensaio clínico com uma dessas substâncias, o vermífugo nitozoxanida. A Finep também patrocina ensaios clínicos com cloroquina e a hidroxicloroquina, feitos pela UFRJ e a Federal de Minas Gerais (UFMG).
Segundo o trabalho do Ipea, “não parece que essa rede esteja sendo ouvida para elaborar uma estratégia consistente e cientificamente embasada de enfrentamento à pandemia”. O trabalho observa que o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT), criado em 1996 para assessorar o presidente da República na formulação da política científica e tecnológica e formado por ministros, representantes da indústria e da comunidade científica, não foi convocado durante a pandemia. A ausência de uma estratégia nacional também é visível em outras iniciativas deflagradas no país desde o início da pandemia. “O Brasil participa de redes de pesquisa internacionais e de ensaios clínicos registrados na Organização Mundial da Saúde [OMS], mas, em muitos casos, isso foi fruto de esforços de universidades e instituições de pesquisa, tais como a Fiocruz, a USP ou o Hospital Albert Einstein”, afirma De Negri.
O grupo do Ipea quer comparar agora os investimentos em pesquisa contra a Covid-19 no Brasil com o de países do mesmo nível de desenvolvimento. “Certamente o Brasil não é o único com estratégias descoordenadas”, diz a economista. “Vamos estudar países latino-americanos para tentar entender por que alguns deles, mesmo sem investir muito dinheiro em pesquisa, conseguiram ter números de contágio e de mortes mais baixos que os nossos.” Grandes investimentos em ciência contra a Covid-19 de fato não foram a regra na maioria dos países. Um levantamento sobre editais de pesquisa lançados em todos os continentes, compilado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostra que os recursos aplicados no Brasil são mais expressivos que os de países da América Latina e mesmo de alguns dos Brics (além do Brasil, o grupo inclui a Rússia, Índia, China e África do Sul).
Segundo esse mapeamento, Argentina lançou apenas uma chamada de projetos contra o novo coronavírus, no valor de US$ 5 milhões, mas mobilizou sua comunidade científica logo no início da pandemia. O edital foi lançado no final de março e pouco mais de 50 projetos foram aprovados no final de abril – cada um vai receber US$ 100 mil ao longo de um ano. A Colômbia investiu US$ 19,5 milhões na infraestrutura de laboratórios para diagnosticar a doença, inclusive nas áreas mais vulneráveis, longe dos centros urbanos, enquanto o Peru destinou US$ 1,4 milhão a projetos de universidades e empresas voltados para o desenvolvimento de testes de diagnóstico, tratamentos e estudos epidemiológicos. A Austrália formulou oito chamadas de projetos, com US$ 26,5 milhões disponíveis, e a Rússia com apenas um, de US$ 20 milhões. O monitoramento da OCDE também mostra como os países enfrentam a pandemia de modo peculiar. O governo da África do Sul, país que conseguiu evitar uma explosão de casos e contabilizava 1,7 mil mortos pela doença até meados de junho, informou ter criado um comitê de especialistas para assessorá-lo e um grupo de pesquisadores para planejar ensaios clínicos, além de participar de iniciativas contra a doença em parceria com a China, a União Europeia e outros países africanos. Já o México, que enfrenta níveis de contaminação elevados (19 mil mortes até 19 de junho), informou a OCDE, de forma vaga, que “consulta médicos e especialistas para prever os avanços da pandemia” e que “está acompanhando a resposta internacional à crise da Covid-19”.
A edição 293, de julho de 2020, traz uma versão resumida desta reportagem
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