Não é todo dia, nem qualquer pessoa que ganha um elogio superlativo de um Nobel de Literatura. Sobre Cleonice Berardinelli, o escritor português José Saramago (1922-2010) disse: “Ela faz parte da aristocracia do espírito, essa que, sim, é necessária para a evolução da sociedade”. A mais longeva integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL) morreu em 31 de janeiro, aos 106 anos, deixando um grande legado de ensaios e edições críticas, além de muitos estudantes que com ela aprenderam a beleza e a sofisticação da língua e da literatura portuguesas.
Nascida em 28 de agosto de 1916 no Rio de Janeiro, Cleonice passou a infância e a adolescência de cidade em cidade. Seu pai era militar e a família o acompanhava nas frequentes transferências. Estavam em São Paulo quando, apaixonada por poesia desde que aprendeu a ler, decidiu cursar letras neolatinas na nascente Universidade de São Paulo (USP). Graduou-se em 1938. Coisa rara à época, seus pais permitiram que ela seguisse os estudos em vez de se casar, o que viria a fazer em 1953, aos 37 anos, com o médico Álvaro Berardinelli.
A ensaísta costumava relembrar, nas muitas entrevistas que concedeu, um diálogo marcante que teve com o marido: “Ele preferia que eu deixasse os alunos particulares e as turmas do ginásio. ‘E a faculdade?’, perguntei. ‘A faculdade não. É a sua vida’, ele disse”. Foi assim que, em 1959, tornou-se livre-docente em literatura portuguesa pela Faculdade Nacional de Filosofia da então Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). À época, tal título outorgava automaticamente o de doutora e a tese que defendeu sobre a poesia e a poética de Fernando Pessoa (1888-1935) foi a primeira no Brasil, e a segunda no mundo, sobre o autor português.
Pessoa foi o primeiro a ser escarafunchado pelas análises inquietas e elegantes de Cleonice, sempre procurando descobrir faces ocultas dos autores por quem era apaixonada. Outros se sucederam nas décadas seguintes: Gil Vicente (1465-1536), Luís Vaz de Camões (1524-1580), padre Antônio Vieira (1608-1697), Eça de Queiroz (1845-1900) e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). A partir daí surgiram livros que seguem sendo utilizados em salas de aula, como Estudos camonianos (MEC, 1973) e Fernando Pessoa: Outra vez te revejo… (Lacerda, 2004). Por anos, foi convidada a assumir uma cadeira na ABL e sempre declinou. Aceitou em 2009, quando passou a ocupar a cadeira de número 8.
Presidente da ABL de 2018 a 2021 e atual presidente da Biblioteca Nacional, o poeta Marco Lucchesi passou a conviver regularmente com Cleonice desde que se tornou “imortal” em 2011, mas já era íntimo de seus livros. “Conheci Cleonice a partir dos mares salinos de Camões, das máscaras e sombras luminosas de Fernando Pessoa e depois, presencialmente, na ABL. Foi um convívio extraordinário, pois ela era atenta às delicadezas e, ao mesmo tempo, capaz de iluminar partes das mais obscuras de um autor. Ela era uma pessoa luminosa e iluminadora, sempre caminhando por essa densa e delicada, forte e sutil, língua portuguesa, que corre nas veias das línguas praticadas no Brasil, África, Portugal e além-mar”, afirmou.
Em uma constante e apaixonada relação com os livros e a sala de aula, Cleonice foi professora de instituições como a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), a Universidade Católica de Petrópolis e o Instituto Rio Branco, além da UFRJ. Na década de 1980, lecionou na condição de visitante nas universidades da Califórnia, em Santa Bárbara, nos Estados Unidos, e de Lisboa, em Portugal. Orientou mais de uma centena de teses de doutorado e dissertações de mestrado, estabelecendo relações intelectuais e de amizade que influenciaram estudantes por toda a vida.
“Conheci dona Cléo, como a chamávamos carinhosamente, em 2005, quando entrei na PUC para fazer o mestrado em literatura portuguesa. Como grande admiradora de Pessoa, e por ser também professora de inglês e adorar Walt Whitman [1819-1892], queria fazer uma dissertação que unisse esses elementos”, relembrou Maria do Carmo Facó, professora aposentada que lecionou em várias universidades do Rio. “A princípio ela não aceitou, pois dizia que não conhecia Whitman o suficiente para orientar meu trabalho, embora soubesse que o próprio Pessoa era seu leitor e admitia, inclusive, ter sido por ele influenciado.” Segundo Facó, como ela tinha muita curiosidade em se aproximar do “poeta do cosmo” norte-americano, não foi difícil convencê-la. Na época da orientação Berardinelli tinha mais de 90 anos.
“Seu legado é de extrema importância. Pessoa, apesar de ter tido 136 heterônimos compilados, permanece a ser desvendado, porque ainda persiste material inédito em sua famosa arca”, diz. “Dona Cléo foi uma das maiores autoridades nessa imensurável aventura, não só ao divulgar a obra do poeta português como de nos ajudar a entendê-la em toda sua complexidade”, resume Facó.
O poeta Carlos A. Pittella, pesquisador da Universidade Concordia, em Montreal, Canadá, relembrou os poucos mais de 10 anos de convívio intenso com a imortal da ABL, que foi sua orientadora no mestrado e no doutorado. “Cleonice foi decisiva na minha formação. Sem ela não teria estudado literatura. Ela me mostrou o horizonte desses estudos e como era possível ampliar esse mesmo horizonte, pois ela ofereceu tanto material de fonte primária, como suas edições críticas, quanto um modelo amplo de metodologia e seriedade de pesquisa. Ou seja, a Cleonice e o trabalho da Cleonice foram e são fontes incontornáveis nos estudos pessoanos. Sempre na vanguarda, e sempre aberta a revisões, o que não é muito comum nesse meio”, afirmou Pittella.
“Cleonice não é só um legado. Legado é algo que foi deixado e ela, para mim, abriu muitas portas, foi também ponte entre os países de língua portuguesa”, comentou. “Para se ter uma ideia, ela nos contou que o Saramago ligava para ela logo que lançava um livro. Alguns dias antes de publicar Ensaio sobre a cegueira, enviou-lhe uma cópia, telefonou e perguntou: ‘Então Cleonice, o que é que achou?’. Ela respondeu: ‘Foi uma pancada na boca do estômago’. Intrigado, Saramago retrucou: ‘Gostou?’. Ela respondeu: ‘Às vezes, nós gostamos de apanhar’.”
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