Todo início de ano surgem no país novos casos de febre amarela. Uma razão é que o período é favorável à proliferação dos mosquitos que transmitem o vírus a macacos e seres humanos nas florestas e áreas de mata próximas às cidades. Tem sido assim há décadas e, em 2025, não foi diferente. Até meados de fevereiro, 12 pessoas foram diagnosticadas com a infecção no estado de São Paulo e oito morreram, mais do que em todo o ano anterior. Bem inferiores aos do surto que tomou o Sudeste do país em 2017 e 2018, os números atuais foram suficientes para o Ministério da Saúde emitir uma nota orientando que os viajantes se vacinassem antes de ir para as áreas com transmissão documentada. A Secretaria de Estado da Saúde paulista (SES), por sua vez, alertou os paulistas para se imunizarem. “É importante que toda a população que nunca se vacinou contra a febre amarela o faça”, afirmou Tatiana Lang, diretora do Centro de Vigilância Epidemiológica da SES, em um comunicado de 14 de fevereiro.
Endêmica das áreas de floresta da América do Sul e da África Subsaariana, a febre amarela apresenta alta letalidade. Cerca de 90% das pessoas infectadas pelo vírus não apresentam sintomas ou têm sinais leves, parecidos com os de um resfriado. Nos 10% restantes, porém, o quadro costuma ser grave e até metade morre. Analisando os dados de quem foi a óbito em consequência da infecção, em especial no último grande surto (ver gráfico abaixo), pesquisadores brasileiros começam a identificar indicadores de como a doença se agrava e a conhecer melhor a desorganização que o vírus causa no sistema de defesa.
No trabalho mais recente, publicado em dezembro no Journal of Medical Virology, a equipe do biólogo e imunologista Helder Nakaya e a do imunologista e infectologista Esper Kallás, ambos da Universidade de São Paulo (USP), investigaram o padrão de expressão de quase 25 mil genes em 79 pessoas com infecção confirmada por febre amarela nos primeiros meses de 2018. Elas foram internadas e tratadas no Instituto de Infectologia Emílio Ribas ou no Hospital das Clínicas (HC) da USP e acompanhadas por até dois meses. Vinte e seis morreram e 53 se curaram.
O perfil de expressão dos genes foi bem diferente entre os dois grupos e indicou que, nas pessoas que sucumbiram, o sistema imune apresentou uma resposta bem mais intensa, mas, ao mesmo tempo, ineficaz. “A reação inicial à infecção foi tão exacerbada que contribuiu para a morte dessas pessoas”, conta Nakaya, que também é pesquisador do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (IIEPAE), em São Paulo.
Um indicador dessa potência foi a ativação da via gênica associada à produção de interferon, sinalizador químico que integra a primeira bateria da resposta antiviral, chamada de imunidade inata. Uma vez que o vírus é injetado no corpo pelo mosquito, um tipo de célula de defesa encontrado na pele – a célula dendrítica – o engloba e o digere. Em seguida, inicia a síntese e liberação de interferon, que atua em outros tipos de célula induzindo uma resposta que limita a replicação do vírus. Ao mesmo tempo, o perfil de expressão dos genes de quem morreu provavelmente apresentou falha na produção de outro comunicador químico, a interleucina 1, que estimula a proliferação e o amadurecimento de células de defesa.
“A síntese de interferon e de outras citocinas que promovem a inflamação é importante, mas, quando é excessiva e prolongada, como nos casos graves de febra amarela, leva ao esgotamento dos órgãos produtores de células de defesa”, explica o imunologista Juarez Quaresma, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Ele investiga os mecanismos de morte celular na febre amarela e não participou desse estudo.
Além de produzir interferon, as células dendríticas desempenham outro papel importante: exibem em sua superfície pedaços do vírus e, assim, estimulam outro tipo de célula de defesa – os linfócitos T, que integram a resposta adaptativa – a produzir uma resposta específica contra o agente infeccioso. Nas pessoas que morreram de febre amarela, no entanto, essa apresentação parece estar debilitada, o que pode ter contribuído para a perda de efetividade.
“Os métodos tradicionais de análise da resposta imune permitem avaliar umas poucas proteínas do sangue e dão uma visão limitada de como a infecção evolui. Por isso, usamos a técnica de análise da expressão gênica, que oferece acesso ao quadro global”, explica o bioinformata André Gonçalves, primeiro autor do estudo, que faz pós-doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido.
“Esse trabalho ajuda a compreender como o sistema imune das pessoas responde à infecção natural. Muito do que se sabia da imunopatogênese da doença em humanos era baseado na resposta imune à vacina, que simula uma infecção mais branda. Hoje temos indícios de que a resposta à infecção e à vacina podem ser diferentes”, conta a biomédica Cássia Terrassani Silveira, coautora do trabalho e pesquisadora da equipe de Kallás, que também é diretor do Instituto Butantan.
A análise gênica trouxe ainda outro sinal de resposta imune desajustada e ineficiente em quem sucumbe ao vírus. O perfil de expressão gênica dessas pessoas sugeria que seu organismo produzia nos estágios iniciais da febre amarela uma célula de defesa inata mais comum em infecções causadas por bactérias, mas não nas por vírus: os neutrófilos. Mais grave: os neutrófilos aparentemente eram imaturos.

James Gathany / CDCMosquito do gênero Sabethes, um dos transmissores da febre amarela silvestre na América do SulJames Gathany / CDC
Versáteis e de vida curta, os neutrófilos são uma das primeiras células a migrar para o local da infecção. Ao encontrar um patógeno, em geral uma bactéria, o neutrófilo o envolve e lança sobre ele um banho químico corrosivo. Se a situação foge ao controle, sinais do ambiente o levam a desenovelar o seu DNA e, em um evento explosivo, lançá-lo embebido em compostos tóxicos sobre os invasores. O papel desse mecanismo ainda é investigado nas infecções virais.
Por que, então, o organismo produziria neutrófilos contra o vírus da febre amarela? Esse aliás, era um fenômeno que Kallás e colaboradores já haviam observado no primeiro estudo com os pacientes do Emílio Ribas e do HC, publicado em 2019 na The Lancet Infectious Diseases. Na época, os pesquisadores analisaram dados clínicos e laboratoriais de 76 pessoas com febre amarela, das quais 27 morreram. Eles buscavam sinais que pudessem predizer quando o caso ia se agravar e o risco de óbito era maior. Identificaram 10 fatores, entre eles ter mais de 45 anos, marcadores elevados de danos nos rins e no fígado e problemas de coagulação do sangue. Dois, no entanto, se sobressaíram: ter uma concentração elevada de vírus no sangue, algo que não havia sido medido na febre amarela (na dengue, por exemplo, essa relação não importa); e apresentar uma contagem de neutrófilos considerada alta para uma infecção por vírus, superior a 4 mil cópias por mililitro.
“Duas das hipóteses que podem explicar a taxa de neutrófilos envolvem a ocorrência de uma resposta inflamatória muito elevada. Ela pode estar estimulando a produção e a liberação de neutrófilos pela medula óssea e a passagem de bactérias do trato gastrointestinal para o sangue em decorrência de uma lesão no revestimento dos intestinos”, explica o biomédico Mateus Thomazella, da equipe de Kallás, que estuda o último fenômeno, a chamada translocação bacteriana, e recentemente identificou no sangue sinais de danos às células intestinais, dados submetidos para publicação.
Os intestinos podem ser apenas mais um dos órgãos danificados na febre amarela grave. O vírus se reproduz preferencialmente nas células dos rins e, em particular, do fígado, mas análises de tecidos e órgãos coletados em autopsias vêm mostrando estragos mais amplos. Inspecionando os órgãos de 73 pessoas que morreram em consequência da febre amarela, o grupo do patologista Amaro Duarte Neto, da USP, identificou lesões no coração de mais de 90% delas. Os dados foram apresentados em um artigo publicado em 2023 na revista eBioMedicine. No ano seguinte, na mesma publicação, a equipe da médica Ester Sabino, também da USP, demonstrou um mecanismo pelo qual o vírus lesiona o endométrio, o revestimento interno dos vasos sanguíneos.
Anos antes, Quaresma, da UFPA, analisando tecidos de 10 pessoas que morreram de febre amarela em outros estados brasileiros, já havia observado que as citocinas produzidas em resposta ao vírus alteravam o comportamento do endotélio, facilitando a entrada de células de defesa no tecido pulmonar, o que produz danos, sangramento e acúmulo de muco, como detalhou em artigo na revista Viruses em 2022. “Com o agravamento da infecção, o pulmão é o último órgão a ser comprometido e leva à morte”, afirma o imunologista.
A reportagem acima foi publicada com o título “Um vírus devastador” na edição impressa nº 349 de fevereiro de 2025.
Projetos
1. Metagenômica viral de dengue, chikungunya e zika vírus: Acompanhar, explicar e prever a transmissão e distribuição espaço-temporal no Brasil (nº 16/01735-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Ester Cerdeira Sabino (USP); Investimento R$ 445.187,99.
2. Biologia de sistemas de longos RNA não codificadores (nº 12/19278-6); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Helder Takashi Imoto Nakaya (USP); Investimento R$ 1.298.032,85.
3. Biologia integrativa aplicada à saúde humana (nº 18/14933-2); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Helder Takashi Imoto Nakaya (IIEPAE); Investimento R$ 2.326.694,25.
4. Estatística de redes: Teoria, métodos e aplicações (nº 18/21934-5); Modalidade Projeto temático; Pesquisador responsável André Fujita (USP); Investimento R$ 1.595.955,04.
5. CPDI – Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (nº 13/08216-2); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Fernando de Queiroz Cunha (FMRP-USP); Investimento R$ 72.926.585,03.
6. Investigação da neutrofilia em pacientes com febre amarela aguda (nº 19/13713-1); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Esper George Kallás (USP); Bolsista Mateus Vailant Thomazella; Investimento R$ 148.324,57.
7. Implantação de um modelo in vitro de avaliação da permeabilidade vascular para estudos da patogênese da dengue hemorrágica e triagem de compostos com potencial terapêutico (nº 13/01690-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Ester Cerdeira Sabino (USP); Investimento R$ 230.535,39
8. Avaliação da permeabilidade endotelial para estudos da patogênese da dengue e triagem de compostos com potencial terapêutico (nº 13/01702-9); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Ester Cerdeira Sabino (USP); Bolsista Francielle Tramontini Gomes de Sousa; Investimento R$ 525.578,45.
Artigos científicos
GONÇALVES, A. N. A. et al. Systems immunology approaches to understanding immune responses in acute infection of yellow fever patients. Journal of Medical Virology. 5 dez. 2024.
KALLAS, E. G. et al. Predictors of mortality in patients with yellow fever: An observational cohort study. The Lancet Infectious Diseases. 16 mai. 2019.
GIUGNI, R. F. et al. Understanding yellow fever-associated myocardial injury: An autopsy study. eBioMedicine. out. 2023.
DE SOUSA, F. T. G. et al. Yellow fever disease severity and endothelial dysfunction are associated with elevated serum levels of viral NS1 protein and syndecan-1. eBioMedicine. nov. 2024.
VASCONCELOS, D. B. et al. New insights into the mechanism of immune-mediated tissue injury in yellow fever: The role of immunopathological and endothelial alterations in the human lung parenchyma. Viruses. 27 out. 2022.
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