Minha vida divide-se em a.C e d.C. A fase de assustar gente passou, agradeço a Deus. Foi ele quem posicionou o filho da dotôra aquele dia. Eu aterrorizei o menino, fiz ele espernear de pavor – nenhuma novidade até aí. E o que seria motivo de humilhação para minha surpresa acabou se tornando o estopim da redenção. Tudo isso devo a Carola. Como eu disse, minha vida é antes de Carola e depois de Carola. Valha-me Senhor.
Eu amedrontava as pessoas antes de Carola. Mas este não é o verbo adequado. Eu metia susto, é isso. Eu metia susto quando golpeava o crânio. Medo é exagero.
O primeiro sinal veio aos treze. Eu assistia à novela com a família. Era o último capítulo, iam desvendar a trama. A favela estava muda. Os barracos reluziam o azul da tevê. Quando senti a fisgada no pescoço. A cabeça virou todinha pra esquerda. Foi um golpe automático e súbito, não tive controle. A mãe pulou do chão, que disgreta! Marinéia, Josinéia, Dulcinéia, Jocimar, Ribamar e Itamar se amontoaram pra rir de mim. Irmão é cruel. Imagine multiplicado por seis. Eles falaram em possessão. A mãe disse que era dívida com o passado. Quê qui se anda aprontando, fia? Mas permaneci calada, com a região doída. A confusão nos fez perder o assassino. Só soubemos na noite seguinte, quando repetiu o final.
O pai tinha um ditado: o pobre são dois braços fortes. Eu não fujo à regra. Sou empregada doméstica desde os dezoito. Na verdade, diarista. Diarista é um termo mais profissional pra dizer a mesma coisa. Ou seja, a quase-escrava que madruga, toma dois ônibus, varre e encera assoalho, lava privada, limpa janela, lustra móveis, passa roupa, faz almoço e volta feliz com uns trocados a mais. O ditado é válido, mas é preciso força além dos braços para ser pobre. Eu sou uma fortaleza.
Antes de Carola, era um martírio. Eu metia susto nos passageiros, no trocador, no motorista e nos proletários que aguardavam no ponto de ônibus. Havia pouco mercado para mim. Arranjava serviço somente em casas sem criança. Criança é um bichinho sensível. Vê no meu cacoete uma ameaça. Mas nunca tive intenção de assustar ninguém. Carola sempre soube disso, nem precisei falar. Você sofre de distonia focal, explicou ela, do tipo torcicolo espasmódico expandido ao movimento mandibular. Eu ouvia com atenção. O consultório da dotôra ia me engolindo. Quanto tempo me resta?, perguntei já pingando lágrima, tremendo toda. Carola me deu água com açúcar. Mulher benta que dói.
Não domino este corpo, é isso. Meu pescoço repuxa a cada meio minuto. A cabeça chicoteia para um lado. A mandíbula, para o outro. O rosto contorce mais que os joelhos. Os dentes avançam para fora da boca, como um gorila enfezado. Daí por que meto susto nos outros. Ninguém está apto a enfrentar essa careta no meio da rua. Mas isso era antes de Carola, repito.
O pai também dizia: acaso é a pior crendice. A Josinéia, que Deus a tenha, partiu três dias após contar a piada do vinho branco. Ela se estrepou exatamente como a anedota. Escapou do carro vermelho para não ser atropelada quando, então, “vinho branco”. Foi uma lição pra família. A gente é marionete do Senhor. Melhor não duvidar. Toquei nesse assunto de propósito. Pois foi destino, e não acaso, quando Marquinhos trepou naquele banco do Parque Municipal. Ele se apavorou comigo ali. Seu berreiro atraiu a mãe e minha salvadora: dotôra Carola. Começou assim a fase d.C.
Ela adulou o Marquinhos até ele quietar. Abriu um estojinho metálico e me deu o cartão. Nele estava grafado: Maria Carola Bustamante, médica neurologista, especialista em distúrbios do movimento do Departamento de Neurologia do Hospital das Clínicas de Belo Horizonte. Daí a vida mudou. Fiz um montão de exames. A dotôra analisou tudo no consultório dela. Um lugar branco de doer a vista. Sem um grão de poeira. A diarista devia ser de boa qualidade. Carola foi bem direta: você é distônica, ponto final. Ela trouxe água com açúcar pra mim. Eu não ia morrer, longe disso. Deus dá a vida, brincou ela, e o médico a mantém.
Hoje sou filiada à Associação Brasileira dos Portadores de Distonias. Ajudo nas campanhas nacionais. A gente distribui folhetos ao povo que passa. Às vezes até arrisco uma explicação. Se a pessoa se interessa, disparo toda metida: “Distonia é uma doença neurológica caracterizada por contrações musculares repetitivas. Já foi chamada de coréia tetanóide, espasmo histérico, cãimbra tônica, neurose de torção. É mais conhecida por tique nervoso, mania, trejeito ou cacoete. O tratamento se faz por toxina botulínica”. Não gaguejo sequer uma vez. Meus colegas admiram isso. Especialmente o Geninho. Ele é um doce. Sorri o tempo todo. Sorri todo pra mim.
A cada três meses, compareço ao Hospital das Clínicas. Lá, o pessoal aplica a toxina nos músculos afetados. Assim eles não mexem sozinhos. E eu não meto susto em ninguém. A dotôra conta que muita mulher injeta aquilo na cara. Só pra ficar menos velha. Então aproveito e tiro onda de madame. Que felicidade é essa?, perguntam os amigos. “É nada não, só aplicamento rotineiro de botox, dá aquela renovada…”
Carola é nome de mulher devota e boa. Eu bem o sei. A diarista dela, a “cobrona”, pediu a conta. A dotôra me chamou na hora. O começo foi difícil, é verdade. O Marquinhos não ia comigo. Por causa do trauma. Além disso, havia muita coisa pra limpar: a casona, o consultório, janelas e janelas ainda maiores. Mas, como já disse, sou uma fortaleza. Acabei superando as dificuldades com o tempo. Se bem utilizado, o tempo é uma bênção. Mesmo com a mãozinha do botox. Hoje dou conta da arrumação, faço o trabalho voluntário e estudo à noite. A Carola quer me ver enfermeira. Paga o supletivo com satisfação. Santa Carola, Deus conserve.
Durmo a semana inteira na casa dela. Depois que o pai e a mãe se foram, tudo ruiu lá no barracão. Ribamar e Itamar se aliaram a uns rapazes de cabelo oxigenado. As meninas andam parindo pelas esquinas. E não importa a hora, há sempre alguém gritando. Aqui é diferente. Marquinhos vem e dá boa noite. Seu Edu me ajuda na matemática. Ele é bom de números, constrói pontes com os danados. A Carola também chega perto. Fala dos artigos que tem publicado em revistas científicas. E do novo gene da distonia que encontrou no interior de Minas Gerais. Aí ela se empolga toda. Diz que se não fosse a ciência eu e Geninho mal cruzaríamos um olhar. Pois torço o pescoço pra esquerda e ele pra direita: íamos sempre nos desencontrar. Agora, não mais. Se a gente quisesse, poderia até beijar demorado. Sem interrupção. Mas essa já é outra história. Ou quem sabe, outra fase. Vai depender do que decidirem lá em cima. É isso.
Leozito Coelho é jornalista e escritor. Já publicou seus contos nas coletâneas Entre duas mortes, Sombras e contos de algibeira. Em 2008, lança seu primeiro livro: Curto-Circuito – Narrativas mínimas para almas transitórias.
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