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Bioquímica

Anticorpos muito especiais

Substâncias produzidas por empresa brasileira facilitarão a produção de novos medicamentos

PROTEIMAXEfeito visual provocado pela ação dos anticorpos nos receptores das célulasPROTEIMAX

Os bons resultados atingidos num trabalho de cooperação entre pesquisadores brasileiros da Proteimax, uma empresa de biotecnologia da cidade de Cotia, na Grande São Paulo, e da Escola de Medicina Monte Sinai, em Nova York, Estados Unidos, devem facilitar o desenvolvimento de novos medicamentos pela indústria farmacêutica como analgésicos, anti-hipertensivos e antidepressivos, entre outros.

O grupo conseguiu, em laboratório, produzir uma série de anticorpos que são substâncias que se ligam a receptores existentes nas membranas das células e conhecidos pela sigla GPCR (do inglês G-Protein-Coupled Receptor ou receptores acoplados à proteína G). Por meio da ativação ou bloqueio desses receptores é que muitos fármacos agem. Essas proteínas fazem a comunicação entre o meio extracelular e o meio intracelular, permitindo ou não que uma droga tenha o seu efeito num determinado órgão do corpo.

Além de ser uma ferramenta para o desenvolvimento de novos fármacos e para o estudo da ação desses produtos em testes laboratoriais com animais, os anticorpos servem para descobrir com exatidão quais receptores acoplados à proteína G estão relacionados a determinadas doenças. Sabendo os receptores afetados será possível criar e testar novos fármacos que tenham ação dirigida para esses receptores.

Os novos anticorpos são destinados a pesquisadores de indústrias ou de instituições de pesquisa que vão utilizar esses produtos em ensaios in vitro ou in vivo, em animais, durante o desenvolvimento de novos fármacos, para determinar a ação e a duração dos medicamentos no organismo ou identificar previamente possíveis efeitos colaterais, além de entender melhor o funcionamento bioquímico das doenças.

A Proteimax já desenvolveu 11 tipos de anticorpos que reconhecem diferentes GPCRs na forma ativada e tem como alvo comercial instituições de todo o mundo. O mercado para esse tipo de anticorpos é muito grande e abrange toda a indústria farmacêutica mundial porque o uso desse insumo vai diminuir o tempo de desenvolvimento e aprovação de novos medicamentos, além de reduzir custos de produção e tornar o produto final mais barato para o mercado consumidor.

“Já fomos procurados por pesquisadores e empresas de outros países, que querem mais informações sobre o produto”, conta Andrea Sterman Heimann, formada em ciências moleculares pela USP e diretora da Proteimax. Em meados de dezembro, ela comemorou com sua equipe a publicação de um artigo que detalha a utilização dos anticorpos na versão eletrônica do Journal of Biological Chemistry, um periódico científico de alto impacto na área biológica.

Entre os 11 anticorpos está o receptor de angiotensina II, um composto protéico envolvido na hipertensão, que, entre outras funções, faz as artérias se contraírem levando a um aumento da pressão arterial. O anticorpo anti-receptor de angiotensina II pode ser usado para examinar se determinado fármaco – um anti-hipertensivo ou outro medicamento que se quer testar – inibe ou ativa o receptor de angiotensina II nas células do coração e dos vasos sangüíneos, por exemplo.

Então, no caso de um anti-hipertensivo, o teste serve para verificar se o medicamento realmente funciona. Se o experimento estiver sendo feito durante o desenvolvimento de um novo anti-histamínico, remédio contra alergias, e ele agir ativando o receptor de angiotensina II, a ação química desse medicamento pode não ser bem-vinda, porque o paciente poderá ter um aumento de pressão sem necessidade.

Um outro anticorpo desenvolvido na Proteimax reconhece o receptor de dopamina ativado, uma substância neurotransmissora, cuja falta no organismo está relacionada ao mal de Parkinson, doença caracterizada por tremores, ou ao distúrbio bipolar, em que o paciente alterna sintomas de depressão e de euforia. Uma das aplicações dos anticorpos que reconhecem esses receptores ativados é a utilização como ferramenta nos trabalhos de desenvolvimento, por exemplo, de medicamentos antidepressivos, usando nesse caso o anticorpo para o receptor GPCR de serotonina, uma substância natural com a função neurotransmissora ligada a sensações de prazer. Com o anticorpo que reconhece o receptor de serotonina ativado, produzido na Proteimax, os pesquisadores poderão saber se as células que têm receptores de serotonina são afetadas seriamente por um antiinflamatório, identificando um efeito colateral não desejado.

PROTEIMAXOutro anticorpo produzido pela empresa reconhece a ação do Delta-9-THC, princípio ativo da maconha, no receptor canabinóide, responsável pelos efeitos da droga no organismo. Na verdade, esse receptor recebeu o nome durante os estudos sobre os efeitos da maconha no organismo, mas outras drogas podem ativar ou inibir esse receptor, principalmente em medicamentos que atuam no controle da dor, sintoma também relacionado a ele. O anticorpo, no caso, servirá para testar se novos compostos com intuito medicamentoso podem agir sobre esse receptor, ativando-o ou inibindo-o.

O objetivo é identificar um medicamento que ative esse receptor, no caso de diminuir a dor, mas que não provoque os efeitos psicotrópicos da maconha. O mesmo raciocínio vale com o anticorpo do receptor opióide, ativado por endorfinas, um hormônio liberado na corrente sangüínea quando nos exercitamos. Ele também está ligado ao combate da dor, como o fármaco morfina (ativador de receptor opióide). “Com o anticorpo antiopióide será possível de forma mais fácil e rápida escolher melhor outros tipos de morfina, sem os efeitos colaterais, como o vício e a tolerância ao medicamento que ela apresenta”, diz Andrea.

Atualmente cerca de 40% dos medicamentos mais utilizados no mundo atuam direta ou indiretamente ativando ou bloqueando os receptores do tipo GPCR. “Há tempos pesquisadores do mundo inteiro buscam melhores métodos de ensaio para verificar a atividade dos receptores acoplados à proteína G. E os anticorpos que conseguimos desenvolver servem exatamente para isso”, diz Andrea Sterman Heimann. Os GPCRs são considerados a classe mais importante de receptores.

Uma analogia possível para entender o funcionamento deles e a importância que têm no organismo é o uso de um interfone instalado na portaria de residências ou de prédios. Alguém dentro de casa se comunica, pelo interfone, com outra pessoa que está fora. Dependendo do que a pessoa de fora falar, a de dentro vai fazer alguma coisa, como abrir a porta, chamar alguém, receber algo, dispensar o estranho etc. Os receptores em geral correspondem ao interfone, ao passo que os receptores acoplados à proteína G equivaleriam à marca de um determinado interfone. E cada tipo desse último, o GPCR, seria um modelo diferente do interfone daquela marca. Ao todo, já existem cerca de 400 desses receptores conhecidos.

E o que significa a ativação ou bloqueio de um GPCR? A ativação ocorre quando uma substância qualquer, por exemplo, um fármaco se liga nele e, a partir daí, envia um sinal para dentro da célula. Na comparação com o interfone, seria quando alguém pega o aparelho e fala, desencadeando uma resposta qualquer. Esse alguém é chamado de agonista, que faz a informação química atravessar a parede da célula. Já bloquear o receptor significa inibir a possibilidade de ele receber o estímulo do agonista. O bloqueio ocorreria, por exemplo, se o fio estivesse cortado, o que impediria qualquer possibilidade de comunicação entre quem está fora e quem está dentro da residência, ou da célula.

A produção de anticorpos que reconhecem uma conformação específica dos GPCRs (ativa ou inativa) representa uma nova e poderosa técnica que pode ser usada para examinar a duração e a extensão de estímulos fisiopatológicos, como, por exemplo, a ação da morfina no sistema nervoso central. “Isso é importante para a pesquisa básica e clínica, além de criar uma nova ferramenta de screening (triagem) – um método de varredura normalmente empregado pelos laboratórios farmacêuticos para testar novas drogas e verificar seus efeitos e sua eficácia. Essa nova técnica é mais rápida e barata para o trabalho de identificar novos fármacos que agem em determinado tipo de GPCR”, diz Andrea.

PROTEIMAXA cor verde, na membrana de uma célula de rato, mostra que o anticorpo reconheceu o receptor de angiotensina II, substância ligada a hipertensãoPROTEIMAX

A produção de anticorpos em si já é uma técnica conhecida e estabelecida em vários países. Os anticorpos existentes normalmente reconhecem a proteína independentemente do estado dela, se ativa ou inativa. A grande inovação do grupo foi conseguir fazer com que os anticorpos reconheçam o receptor em um estado específico, no caso, ativado. “Isso é difícil de fazer e envolve desde estudos no âmbito da bioinformática até a produção em si do anticorpo, que tem certo grau de complexidade”, explica Andrea. O pulo-do-gato, diz a pesquisadora, foi conseguir identificar a região do receptor GPCR, que sofre uma mudança de conformação (ou estrutural) quando ele está ativado. “O anticorpo que criamos se liga exatamente nessa região específica do receptor que é alterada. A totalidade dos anticorpos comerciais gruda em regiões do receptor que não se alteram, esteja ele na forma ativa ou inativa. Com isso, têm a função apenas de detectar a presença do receptor sem revelar seu estado de ativação em relação a um fármaco, por exemplo”.

Novos anticorpos
Foi fundamental para o êxito da pesquisa a parceria estabelecida com a pesquisadora Lakshmi Arehole Devi, da Escola de Medicina Monte Sinai, uma das maiores autoridades do mundo em GPCR. Tudo começou em 2003, quando ela veio ao país participar do congresso da Sociedade Brasileira de Farmacologia, a convite do professor Emer Suavinho Ferro, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB/USP), que também é sócio da Proteimax. “Em uma conversa com ela, contei que estava começando a produzir anticorpos para dar impulso à Proteimax e ela se interessou em colaborar. Fizemos um anticorpo para ela testar e foi tamanho o sucesso que a parceria não parou mais. No ano passado fiquei três meses em Nova York testando os novos anticorpos produzidos por nós no Brasil. Esses testes são necessários para verificar se eles de fato reconhecem a forma ativada do receptor tanto in vitro como in vivo“, diz a diretora da Proteimax.

Além de testes de novos fármacos, os produtos da empresa também serão úteis na pesquisa básica. Com eles, pesquisadores de instituições de pesquisa, em institutos ou universidades, poderão avaliar quais receptores estão envolvidos no aparecimento de uma doença. “É possível, por exemplo, saber quais os receptores do cérebro são afetados pelo mal de Parkinson e testar possíveis fármacos que revertam os receptores danificados”, diz Andrea.

Na prática, os experimentos com os anticorpos começam quando o pesquisador coloca as células ou apenas as membranas com os receptores numa placa de polietileno (placa de teste transparente) e as sensibiliza com a droga que deseja testar. Depois adiciona o anticorpo. Se ele se ligar ao receptor, é revelada uma cor amarela na amostra. O pesquisador sabe que o receptor foi ativado e a droga funcionou. Nos testes in vivo o processo é um pouco mais longo. Inicialmente, a nova droga é administrada em um animal. Aguarda-se um tempo para ela agir, sacrifica-se a cobaia e retira-se um tecido do corpo onde, supostamente, a droga agiu. Esse tecido é colocado em contato com os anticorpos. Se a droga funcionou, surgem na amostra pigmentos coloridos, normalmente verde ou vermelho. “A técnica padrão utilizada por laboratórios para testar a eficácia de novos fármacos, chamada binding (ligação), é mais trabalhosa e oferece certo perigo. É preciso usar uma droga marcada com moléculas radioativas, o que expõe os pesquisadores ao risco de contaminação. Sem falar que é cerca de dez vezes mais cara do que o processo que criamos”, diz Andrea.

O método de fabricação dos anticorpos segue o protocolo padrão de produção dessas substâncias em coelhos. O primeiro passo é escolher a parte da proteína (peptídeo) que o anticorpo deve reconhecer. Em seguida, é preciso sintetizar essa parte da proteína e acoplá-la em uma proteína carregadora, conhecida pela sigla KLH (sigla, em inglês, de Keyhole Limpet Hemocyanin). Esse conjunto (peptídeo mais a proteína carregadora) recebe o nome de antígeno. O passo seguinte é injetar o antígeno no coelho e esperar que o animal produza o anticorpo contra ele. A última fase é a retirada de sangue do animal, que passa por um processo de purificação. “O segredo do processo é escolher a parte certa da proteína”, diz Andrea. Cada coelho produz, em sua vida útil, de cerca de 4 meses, 50 mililitros de anticorpos, que possuem a aparência de uma substância líquida viscosa e avermelhada. Essa quantidade é suficiente para a indústria farmacêutica realizar 500 mil ensaios.

O projeto para desenvolvimento de anticorpos foi financiado pelo Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP que prevê a produção de 50 tipos diferentes dessas substâncias. O apoio financeiro da Fundação também permite que os testes para verificar a eficácia dos anticorpos feitos em Nova York sejam realizados na Proteimax. Por se tratarem de moléculas de domínio público, os anticorpos não são patenteáveis, mas a Proteimax pode patentear a idéia de utilizar anticorpos que reconhecem a conformação dos receptores para identificar ação de substâncias e estímulos, bem como no tratamento de doenças. Até o final de janeiro, o pedido de patente deverá ser depositado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).

O Projeto
Anticorpos conformação específicos: proposta para geração de anticorpos dirigidos e receptores acoplados à proteína G (GPCRS) (nº 04/14258-0); Modalidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe); Coordenadora Andrea Sterman Heimann – Proteimax; Investimento R$ 111.922,02 e US$ 102.102,83 (FAPESP)

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