Na busca por combater o vírus Sars-CoV-2, pesquisadores do mundo todo trabalham para desenvolver tratamentos que minimizem os efeitos da Covid-19 – a doença por ele causada – e vacinas que protejam contra a infecção. Um desses grupos é o do imunologista brasileiro Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller, em Nova York, Estados Unidos. Em artigo publicado na revista Nature esta semana (18/6) – ainda como prévia, antes de finalizado o processo de edição –, o grupo mostra que nem todos os convalescentes produzem os mesmos anticorpos. E aqueles conhecidos como neutralizantes, eficazes em combater o vírus, são raros e produzidos em maiores quantidades apenas por algumas pessoas. Identificados, podem ser promissores como tratamento.
Os pesquisadores analisaram o plasma – porção do sangue na qual estão os anticorpos – de 149 pacientes recuperados que tinham estado sem sintomas da doença por pelo menos 14 dias e constataram níveis baixos de atividade neutralizante na maior parte deles. Isso porque os tipos de anticorpos produzidos podem variar imensamente e nem todos são eficientes contra o vírus. “Isolamos os anticorpos eficazes no plasma de seis pacientes”, relata Nussenzweig.
O importante foi constatar que, apesar de raros, os anticorpos que funcionam melhor são os que têm como alvo os receptores conhecidos como RBD (receptor binding domain, ou domínio ligador do receptor) na proteína S (de spike, ou espícula, as projeções que revestem o vírus). Uma vacina eficiente, o artigo conclui, pode ser uma que provoque a produção desses anticorpos.
Para o imunologista Edecio Cunha Neto, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), é uma conclusão otimista. “Se a infecção não elicitou resposta de anticorpos neutralizantes com alta concentração e capacidade, e se forem indispensáveis para a proteção, é improvável que esse seja isoladamente um bom caminho para vacina”, pondera. Afinal, o que a maior parte das vacinas faz é apresentar uma forma inofensiva do patógeno para provocar uma resposta do sistema imunológico. Se for feita a partir de vírus inativados ou da proteína S, o provável é que a estimulação seja mais fraca do que aquela resultante da infecção real, segundo ele, gerando ainda menos anticorpos neutralizantes.
Há hoje cerca de 130 vacinas em teste contra o novo coronavírus. A maior parte delas segue as abordagens mais convencionais. A torcida é para que alguma delas seja eficaz para proteger a população mundial da pandemia.
Mas há também vacinas mais elaboradas em desenvolvimento. O pesquisador da FM-USP é parte de uma dessas iniciativas, coordenada pelo imunologista Jorge Kalil. “Não podemos competir temporalmente com as que estão em fase avançada de testes”, diz Cunha Neto. “A ideia é produzir uma segunda geração de vacinas com outros truques, que induzam outros tipos de respostas imunes apresentadas pelos pacientes que se curaram de infecção leve.” Vacinas mistas estimulando linfócitos T com fragmentos do vírus, o RBD e versões alteradas da proteína S estão, justamente, entre esses truques.
Imunidade natural
O objetivo principal de Nussenzweig é o desenvolvimento de medicamentos à base de anticorpos monoclonais, aqueles que têm origem em um único linfócito B. A identificação desses candidatos, isolados de convalescentes, é um ponto de partida importante.
Essa também é a busca do grupo da USP, que está analisando o plasma de cerca de 200 voluntários que tiveram doença leve – o que significa, em princípio, que conseguiram combater o vírus de forma eficaz com suas próprias armas imunológicas. De acordo com Cunha Neto, a biomédica Silvia Boscardin, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, está empregando as mesmas técnicas do grupo de Nussenzweig para isolar anticorpos neutralizantes. Ele explica que pelo mundo há pelo menos cinco equipes fazendo trabalho semelhante e que seria vantajoso para o Brasil fabricar medicamentos com nossos próprios anticorpos. “Não precisaríamos comprar dos outros.” Também pode haver especificidades nos anticorpos produzidos na população brasileira, etnicamente muito distinta da norte-americana.
Uma vez isolados e testados para eficácia, o passo seguinte é replicá-los em massa para elaborar a terapia. “É mais simples do que fazer uma vacina que funcione”, diz o pesquisador da USP.
A estratégia é considerada mais certeira e refinada do que aquelas baseadas no plasma integral de recuperados. “Se essas terapias de plasma funcionarem, é porque doses muito baixas de anticorpos são eficazes, ou porque algo diferente dos anticorpos específicos são o agente ativo no plasma”, conclui Nussenzweig. A cura espontânea dos pacientes com Covid-19 também pode depender de fatores imunológicos distintos, como outros tipos de anticorpos, células da defesa como os linfócitos T ou uma combinação desses fatores. “Se o crucial forem os anticorpos, os monoclonais serão milhares de vezes mais potentes do que o plasma.”
Não é possível inferir, com esses resultados, a eficácia da imunidade adquirida quando uma pessoa se recupera. O teor de anticorpos não é a única estratégia de defesa, e os imunologistas ainda estão no início de sua investigação de como o corpo humano combate o novo coronavírus.
Artigo científico
ROBBIANI, D. F. et al. Convergent antibody responses to SARS-CoV-2 in convalescent individuals. Nature. on-line, accelerated article preview. 18 jun. 2020.