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Entrevista

Antonio Bianco: Ajuste no tratamento do hipotireoidismo

Médico brasileiro radicado nos Estados Unidos conta como descobriu que a terapia hormonal atual podia falhar e propôs uma correção em seu uso

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPBianco, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, durante visita a São Paulo em abrilLéo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Há 15 anos, o médico brasileiro Antonio Carlos Bianco notou que algo não andava bem com o tratamento de hipotireoidismo então adotado em diferentes países e, com base em suas pesquisas, concluiu que eram necessárias mudanças. À época professor na Universidade de Miami, nos Estados Unidos, ele atendeu mulheres que usavam a medicação recomendada para o problema e não melhoravam. Desde os anos 1970, a terapia consistia no uso de uma versão sintética do hormônio tiroxina (T4), desenvolvida por empresas farmacêuticas norte-americanas para suprir o mau funcionamento da tireoide, glândula em forma de borboleta localizada no pescoço.

Em experimentos feitos em seu laboratório, Bianco e equipe constataram que em muitos pacientes o tratamento com T4 não normaliza a ação dos hormônios da tireoide sobre o organismo. É que muitas pessoas com hipotireoidismo não conseguem converter o T4, um composto inativo, em T3, tri-iodotironina, o hormônio que funciona. A saída, como propôs, é adicionar ao tratamento delas uma versão sintética do T3.

Com cerca de 300 artigos científicos publicados, citados mais de 30 mil vezes por outros trabalhos, Bianco é uma autoridade internacional no estudo da tireoide e apresentou suas descobertas sobre essa falha no tratamento no livro Rethinking hypothyroidism: Why treatment must change and what patients can do, lançado em 2022 nos Estados Unidos (Repensando o hipotireoidismo: Por que o tratamento deve mudar e o que os pacientes podem fazer, ainda sem tradução para o português).

Idade 63 anos
Especialidade
Doenças da tireoide
Instituição
Universidade de Chicago
Formação
Graduação em medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (1983), mestrado (1985) e doutorado (1988) em fisiologia na Universidade de São Paulo (USP)

Formado pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, ele realizou mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP), onde se tornaria professor. No final dos anos 1990, mudou-se para os Estados Unidos e iniciou a fase norte-americana de sua carreira acadêmica na prestigiosa Universidade Harvard.

Em abril, Bianco esteve em São Paulo para fazer uma conferência na sede da FAPESP sobre a formação de médicos-cientistas, grupo profissional raro no Brasil. Pai de trigêmeos, hoje com 22 anos, ele conversou com Pesquisa FAPESP na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde sua mulher, a bióloga e pesquisadora Miriam Oliveira Ribeiro, estuda o controle neuroendócrino do comportamento.

Quais são as doenças mais comuns ligadas à tireoide?
A mais comum é o hipotireoidismo, que frequentemente ocorre quando a glândula é destruída por um processo autoimune ou é retirada devido a nódulos. Esse e outros problemas na tireoide atingem mais mulheres do que homens, na proporção de 9 para 1. Isso ocorre porque as doenças autoimunes, que também afetam a tireoide, são mais frequentes nelas. Ainda não sabemos qual é o mecanismo específico por trás disso. Nos Estados Unidos, há cerca de 20 milhões de pessoas com hipotireoidismo, no Brasil, talvez 10 milhões. Até 1970, o tratamento consistia em tomar uma pílula com extrato de tireoide de porco todos os dias. Funcionava razoavelmente bem. O tratamento atual, com o hormônio T4, funciona bem, mas não é eficaz para 10 a 20% das pessoas.

Por quê?
O T4 não é uma substância ativa. Precisa ser ativado no organismo pela conversão em T3. Com a descoberta em 1970 de que o nosso organismo pode converter T4 em T3, a abordagem terapêutica mudou. Passamos a tratar os pacientes só com T4 sintético. Foi uma grande mudança porque o extrato da tireoide de porco contém os dois hormônios. Naquela época, empresas farmacêuticas usaram esses achados e fizeram um marketing intenso em favor da nova abordagem. Convenceram os médicos de que a tireoide de porco era coisa velha e que o tratamento poderia ser feito só com o T4 sintético. Depois de 1970, começaram a aparecer pacientes que não se sentiam completamente curados, mesmo tomando as doses corretas de T4. A recomendação que recebi dos meus professores era encaminhar esses pacientes, em geral mulheres na meia-idade, para a psicoterapia. Os médicos alegavam que elas tinham crise existencial. Foi o que eu fiz durante boa parte da vida profissional. Até o dia em que atendi uma mulher que era professora em Miami e me disse: “Fui diagnosticada com hipotireoidismo, comecei a tomar o remédio indicado e não voltei ao normal. Perdi o emprego”. Eu disse a ela: “Seus exames estão bons. A senhora deve fazer psicoterapia”. Ela começou a chorar e foi embora. Na semana seguinte, veio outra professora e contou a mesma história: “Não consigo mais dar aula, desisti do meu emprego”.

O que aconteceu com essas pessoas?
Estavam com brain fog, confusão mental. Pensei: “Tem algo errado”. Fui para o laboratório e comecei a estudar o problema. Mudei o foco da minha pesquisa para analisar como os hormônios tireoidianos afetam o cérebro e a capacidade de raciocínio. A tireoide naturalmente produz T3 e T4. O T3 é o hormônio ativo, o T4 é o pró-hormônio, inativo, que pode ser ativado pela enzima desiodase, que estudo desde o começo da minha vida profissional. No tratamento do hipotireoidismo, o T4 da medicação é absorvido pelo sangue e transformado em T3 nos tecidos contendo desiodase. Mas a concentração final é inferior à que ocorreria naturalmente. Essa deficiência pode ser agravada porque, em parte das pessoas, a desiodase não funciona bem devido a um polimorfismo genético. Para elas, é preciso adicionar T3.

Para esses pacientes, a pílula com o extrato era mais eficiente.
Exato, por conter os dois hormônios. Depois de quase 15 anos estudando a questão, escrevi o livro Rethinking hypothyroidism: Why treatment must change and what patients can do. As empresas farmacêuticas que vendiam o T4 sintético realizaram campanhas milionárias de marketing com os médicos, as sociedades médicas e os grupos de ajuda aos pacientes. Elas tinham uma influência grande sobre os médicos e as sociedades profissionais da área da tireoide. Para ter uma ideia, o T4 sintético foi aprovado pela FDA [Food and Drug Administration, a agência de controle de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos] sem que sua eficácia e segurança tivessem sido determinadas em estudos clínicos randomizados.

O tratamento atual do hipotireoidismo não é eficaz para quem não consegue converter o hormônio T4 em sua forma ativa

Como se consegue isso?
Não sei os detalhes. Na época, líderes médicos da área de tireoide, incluindo gestores de sociedades médico-profissionais, escreveram para a FDA apoiando a aprovação. Conto isso no livro. Para as pessoas que não respondem bem só ao T4, uma boa solução é combinar o T4 com o T3. Meus colegas e eu já falamos tanto sobre isso que muita coisa mudou. Hoje, as sociedades médicas nos Estados Unidos e na Europa recomendam o uso dos dois hormônios para esse grupo de pacientes sintomáticos.

Os médicos aceitam a ideia?
Os mais jovens entendem. Os mais velhos não aceitam facilmente, sofreram a mesma lavagem cerebral que eu no passado. O comportamento da indústria farmacêutica tem sido interessante. Ela continua faturando muito porque o T4 sintético funciona bem na maioria dos casos. Mas já se reposicionou para atingir os pacientes que se beneficiam da adição de T3 ao tratamento. Hoje, nos Estados Unidos, cerca de 2 milhões de pessoas usam terapia com T4 e T3, a maioria à base do extrato de tireoide de porco. Esse número dobrou nos últimos 10 anos. Sou consultor de algumas indústrias farmacêuticas que atuam na área e achei que, quando publicasse o livro, iria ocorrer uma saia justa, mas elas ficaram entusiasmadas com o novo mercado.

Você cursou a graduação em medicina já pensando em fazer pesquisa?
Fiz medicina na Santa Casa por influência do meu irmão, Salvador Bianco, professor aposentado do Departamento de Psiquiatria da Unifesp [Universidade Federal de São Paulo], que é 10 anos mais velho que eu. Desde o início queria me tornar pesquisador. Junto com a Santa Casa, cursei biologia na USP, mas desisti no último ano porque botânica era chato. Depois fiz o mestrado e o doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Já no primeiro ano de medicina, comecei a perguntar onde se fazia pesquisa e me falaram: “Vá à fisiologia, onde fica o professor Carlos Roberto Douglas”. Em um primeiro momento, ele, que morreu há poucos anos, não topou: “Você está no primeiro ano, não sabe nada, precisa esperar um pouco; volta no ano que vem”. Insisti e ele cedeu. Comecei a ajudar as pessoas do grupo que estudavam os efeitos da nutrição na tireoide. Isso foi em 1978. Não parei mais. Foi um acaso eu ter me deparado com esse tema.

Certamente gostou, senão teria abandonado.
Sem dúvida. Naquele tempo, talvez 10% ou 20% dos pacientes que eu via no ambulatório da Santa Casa tinham bócio, por causa da deficiência de iodo.

Não havia sal com iodo na época?
Antes dos anos 1970 já se recomendava que o sal de cozinha fosse iodado. Mas não havia muito engajamento das indústrias salineiras nem supervisão da vigilância sanitária. A situação começou a melhorar com o trabalho que o endocrinologista Geraldo A. de Medeiros-Neto [1935-2022] fez com o político André Franco Montoro [1916-1999], quando este foi senador [1971 a 1983]. Só a partir dali houve mais engajamento do governo em supervisionar a iodação do sal. Não é uma tarefa tão simples como parece. O sal passa por uma esteira e é preciso borrifar uma solução de iodo sobre ele. Tem de ser a quantidade correta, bem calculada, pois, com o tempo, o iodo evapora. Aliás, quem cozinha não pode guardar o sal perto do fogão ou em lugar quente porque acelera a evaporação.

O bócio endêmico ainda é um problema no Brasil?
Não mais. As ações dos endocrinologistas e da vigilância sanitária foram efetivas. Mas sempre haverá deficiência de iodo no solo e, consequentemente, nos alimentos. Essa deficiência é geográfica, ocorre quase no mundo inteiro. A tireoide precisa de iodo para produzir seus hormônios. Quando consumimos iodo na dieta, ele é absorvido pelo sangue e chega à tireoide. Se há pouco iodo no sangue, a glândula começa a crescer, na tentativa de captar mais. Normalmente ela pesa 20 gramas, mas pode chegar a quase 1 quilo porque suas células se multiplicam para absorver o pouco iodo disponível. É um mecanismo de compensação. Agora, se a carência de iodo for intensa a ponto de o bócio não conseguir compensá-la, pode ocorrer o hipotireoidismo. Hoje ainda há deficiência ou carência de leve a moderada em várias regiões do mundo. Em poucos a carência é intensa. Quem corre o risco de ser afetado pela carência de iodo são as crianças e as gestantes. As crianças porque seus mecanismos de compensação não são eficientes, e as grávidas porque, na gestação, podem perder mais iodo por ajustes na fisiologia da tireoide.

O que a deficiência de iodo pode provocar na gestante?
Se for intensa o suficiente para prejudicar a síntese dos hormônios da mãe e do feto, pode levar ao bócio e ao hipotireoidismo fetal. O organismo materno é capaz de compensar a deficiência, mas, para o bebê em formação, a falta de iodo é um problema sério. Os hormônios tireoidianos são muito importantes para o desenvolvimento do cérebro do feto e do recém-nascido. Tanto que se faz de rotina o teste do pezinho em busca de problemas genéticos que afetam o desenvolvimento e o funcionamento da tireoide, que atingem 1 em cada 2.500 nascidos vivos.

Por que esses hormônios são tão importantes desde a gestação?
Principalmente para a neurogênese, bem no começo do desenvolvimento do cérebro, quando os neurônios são formados. Esse é um dos temas que estudamos no meu laboratório. A falta do hormônio tireoidiano no começo da vida desencadeia mecanismos epigenéticos que modificam permanentemente a expressão de muitos genes em todo o organismo. Não dá para corrigir mais tarde. Hoje, esse é o tema que mais toma o meu tempo: entender como o T3, ou sua falta, modifica a expressão gênica.

O que já descobriram?
Nós criamos um camundongo que apresenta hipotireoidismo localizado no fígado, só nos dois primeiros dias de vida. O animal se desenvolve normalmente, mas, quando atinge a idade adulta, o funcionamento do seu fígado é diferente daquele do fígado de quem não teve hipotireoidismo logo após o nascimento. O fígado perde a capacidade de armazenar gordura, produz mais corpos cetônicos e menos glicose. Isso porque o enovelamento da cromatina [a fita de DNA no núcleo das células], que regula a expressão dos genes, é modificado pelo hormônio da tireoide.

Nos Estados Unidos, um pesquisador, para ser bem-sucedido, precisa ser independente e ter os seus próprios grants

Você se formou na Santa Casa e virou professor da USP. Tem alguma ligação com a Unifesp?
Tenho grandes amigos e colegas na USP e na Unifesp. Um dos meus mentores em São Paulo foi o professor Rui Monteiro de Barros Maciel, da Unifesp. Ainda hoje colaboramos. Em 1984, ele me apresentou ao pesquisador chileno J. Enrique Silva, por meio do qual fui para Harvard. Nunca trabalhei na Unifesp, embora seja professor credenciado do curso de pós-graduação em endocrinologia de lá até hoje e já tenha orientado vários doutorados. Na USP, fui professor do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas [ICB] por 15 anos.

Como surgiu a possibilidade de ir pra Harvard?
No mestrado, fui a um congresso de endocrinologia em Canela, no Rio Grande do Sul. Lá, o Rui me apresentou ao Enrique, que trabalhava no Brigham and Women’s Hospital, da Universidade Harvard, em Boston, e não desejava retornar ao Chile em razão do golpe militar. Falei para o Enrique: “Quero ir para o seu laboratório”. Fiz o doutorado no ICB, com a parte experimental em Harvard. Quinze anos mais tarde, decidi visitar Harvard novamente. Como o Enrique não trabalhava mais lá, liguei para o professor Philip Reed Larsen, que tinha sido o mentor dele, e fui aceito. Fiquei 10 anos em Boston, estabeleci meu laboratório e me tornei chefe do setor de tireoide do Brigham and Women’s Hospital. Tornar-me independente foi um dos maiores desafios da minha mudança para os EUA.

Por quê?
Para ser bem-sucedido e reconhecido pelos colegas, o pesquisador precisa ser independente, ter os seus próprios grants [bolsas ou subvenção para pesquisa]. Fui, em 1998, sem grant, e trabalhei no laboratório do Larsen, o PI [principal investigator, pesquisador principal]. Esse arranjo é ideal para quem faz pós-doutorado ou é professor visitante, pois o funcionamento do laboratório e os salários são financiados pelo PI. À medida que a permanência se prolonga, esse arranjo se torna menos vantajoso porque é preciso trabalhar no que o PI está disposto a financiar, e o salário é restrito.

Nesse caso, você será sempre pós-doutor ou consegue ter uma posição?
Dá para ser professor da faculdade, mas, até você se tornar independente, sempre estará vinculado a um PI. E, se ele perder os grants, acabou.

É o PI que define o quanto vai pagar para quem trabalha com ele?
Sim. Meu primeiro salário foi muito baixo, cerca de US$ 6 mil por ano. Ainda hoje existe uma tendência muito forte de se pagar menos do que o valor de mercado aos pesquisadores visitantes. Eles geralmente não conhecem os padrões locais e não querem criar uma situação reclamando porque se entende que a visita é temporária e a alternativa é pegar o avião de volta.

Como ter sucesso na pesquisa nos Estados Unidos?
O pesquisador precisa se desligar do PI e virar um pesquisador independente, ter os seus próprios grants e laboratório, o que o transforma em um asset [ativo] da universidade. Como pós-doc, a universidade agradece a mão de obra barata e só. Ela se interessa pelo investigador principal porque, junto com o financiamento que ele consegue, chega muito dinheiro para a universidade. Se sou o pesquisador principal e consigo um grant de US$ 250 mil dos NIH [Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos], o valor padrão de um grant modular, os NIH pagam uma taxa adicional altíssima, conhecida como “custos indiretos”, para a universidade. Essa taxa depende do acordo da universidade com os NIH. Harvard recebe cerca de 70%. Como só cerca de 10% dos grants solicitados ao NIH são financiados, dá para ter uma ideia de quão difícil é se tornar um pesquisador independente.

Como compara a sua vida no exterior com o tempo em que estava da USP?
Na USP, eu fazia pesquisa, mas dava muitas aulas. Em Harvard, dava uma aula por ano no curso de medicina, sobre tireoide. Na Universidade de Chicago também. Ao fazer o programa do curso, o coordenador escolhe entre os melhores em cada área. Nessas grandes instituições se encontram os melhores professores em todas ou quase todas as áreas. É um prestígio gigantesco dar uma aula.

No Brasil é outro sistema.
Em Harvard, tem muito pouco aluno para o número de professores. Lá, na faculdade de medicina, havia cerca de 11 mil professores. Não é exagero. São vários hospitais afilados, onde trabalham muitos profissionais. Uma dificuldade que eu tive no Brasil para fazer pesquisa era o processo de importação de reagentes, animais etc. A burocracia atrapalhava. Os Estados Unidos é a Disneylândia do pesquisador. A encomenda é feita via computador hoje e amanhã chega pelo FedEx.

Esse é o lado bom…
Meu chefe sempre foi um excelente pesquisador, líder mundial na área da tireoide. Então ele não tinha muita dificuldade em renovar seus grants. Tive de me reinventar para conseguir escrever os pedidos de grants, obter financiamento, ter meu próprio laboratório e me tornar independente. A competição é muito acirrada, com os Estados Unidos inteiro, com os melhores pesquisadores. Tive sorte e obtive muitos grants. Logo recebi ofertas de emprego para sair de Harvard e acabei me tornando chefe da endocrinologia na Universidade de Miami. Esse sistema extremamente competitivo parece ser muito bom, mas merece uma palavra de cautela. Estimula a formação e o estabelecimento de indivíduos e núcleos de excelência, mas a que preço?

O que fazer para vender seu peixe com sucesso?
É preciso ter muita objetividade e desenvolver uma fórmula própria. É uma arte. Demorou muito tempo, mas consegui. É nesse gargalo que a maioria não passa. Por quase 10 anos tenho ido aos NIH para julgar os pedidos de grants no setor de endocrinologia celular e molecular. No final, volto para casa deprimido por ver tanta gente boa ter seus pedidos negados e saber das implicações profissionais e pessoais disso.

Seria fantástico formar no Brasil médicos-cientistas, com conhecimento clínico e em pesquisa básica

Por que saiu de Harvard?
Durante certo período da vida do pesquisador, estar em uma universidade como Harvard é muito importante. Ajuda na formação e no reconhecimento pelos pares. Com o tempo, a importância diminui. Além disso, quanto mais famosa é a universidade, menor é o salário. Tem o fator “salário Harvard”: “ganho pouco, mas trabalho em Harvard”. Outras boas universidades, com menos prestígio, querem atrair bons pesquisadores, que trazem seus grants, e pagam salários mais competitivos. Essa troca é um momento-chave na carreira, que deve ser muito bem estudado. Recebi uma oferta muito boa para ir para Miami e a oportunidade de liderar o serviço de endocrinologia, o que me fez aceitá-la. Foi fantástico. Deveria ter ido antes. Faltavam em minha formação a visão e o entendimento do business por trás da pesquisa e da medicina acadêmica nos Estados Unidos.

O que mudou?
Em Miami eu tinha uma função administrativa e mais responsabilidades. Eu era o chefe do serviço de endocrinologia de três hospitais, com cerca de 20 médicos endocrinologistas e oito residentes. Nessa estrutura, o chefe pode quase tudo. Contratar, demitir, decidir a carga de trabalho e o salário das pessoas. Não é como a estrutura brasileira, muito engessada. Um chefe em uma universidade pública como a USP decide o quê? Pouco. O salário de ninguém muda e ele não pode reconfigurar o serviço rapidamente com novos professores. Assume uma função mais burocrática de dar presença e fazer com que a carga horária de aulas e atendimento de pacientes seja cumprida. Lá, o chefe molda o serviço como quiser. Se não funcionar, ele é substituído. O meu sucesso na pesquisa devo aos meus mentores e a Harvard. Em Miami, aprendi a administrar a área médica.

Você conseguia fazer pesquisa também?
Fazia. Estou há quase 30 anos nos Estados Unidos e nunca deixei de pesquisar. Mas Miami não é Harvard. Aprendi a botar a mão na massa, a fazer de tudo e a improvisar. Após seis anos surgiu a oportunidade de me mudar para Chicago. Não pelas minhas qualidades de pesquisador, mas administrativas. Fui como presidente de um grupo de cerca de 600 médicos para a Universidade Rush, uma instituição privada que tem um grande hospital em Chicago. Aí, mudou tudo.

Por quê?
Porque o bastidor de um grande hospital é uma bagunça, muitas vezes assustadora. De 20 médicos, passei a chefiar 600. Aprendi o business da medicina e o funcionamento de um grande hospital. Aprendi como as diferentes partes se interconectam e fazem a máquina funcionar. Foi estressante. Do CEO do hospital, eu escutava: “Você precisa fazer os médicos trabalharem mais”, “o salário deles está muito alto”. Dos médicos, ouvia: “Estamos trabalhando demais”, “queremos aumento”. Era responsável por um orçamento de cerca de US$ 300 milhões por ano. Depois de quatro anos, decidi sair. Aprendi muito, mas o nível de estresse era altíssimo.

E foi para onde?
Para a Universidade de Chicago, onde não tenho função administrativa. Meu trabalho é fazer pesquisa. Nunca fui tão feliz profissionalmente e produtivo.

Qual o paralelo entre o que ocorre nos Estados Unidos e aqui?
Tenho alguma noção de como funcionam as instituições brasileiras por causa da minha associação com o pessoal da Unifesp e da USP e de minha esposa, a Miriam, que é bióloga e professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie. De forma geral, sinto que hoje os mais jovens têm menos interesse na área científica. Não é um fenômeno só brasileiro. Quando comecei, não era assim. Havia uma sede de querer fazer e aprender muito. Acredito que esse desinteresse é, em parte, motivado por mudanças sociais que priorizam a qualidade de vida. Na pós-graduação, eu e meus colegas trabalhávamos muito, com pouca recompensa. Não vejo isso em meus alunos. Além disso, com raras exceções, o salário de quem faz pesquisa nos Estados Unidos é mais baixo e o recém-formado acaba a faculdade devendo para o programa de bolsas da instituição. Isso faz com que o interesse por posições mais bem pagas, longe da pesquisa, seja grande.

No Brasil é diferente?
Não conheço bem a situação do Brasil, mas uma diferença é que aqui sempre houve a ideia de o médico que é professor e pesquisador universitário ter consultório particular. Isso atrapalha a continuidade das pesquisas. Nos Estados Unidos, não existe. O professor trabalha 100% do tempo fazendo pesquisa e vendo pacientes na universidade. O médico é proibido de atender fora da universidade em que trabalha. No meu caso, sou funcionário da Universidade de Chicago e eles pagam 100% do meu salário, independente da minha área de atuação. Mas posso fazer consultoria para empresas farmacêuticas, firmas de advocacia envolvidas em litígio entre médicos e pacientes, patentes etc. Isso não tem problema. Todos temos 20% do tempo para atuar nessa atividade de consultoria. Temos a obrigação de informar a universidade sobre o tópico e o valor recebido dessas consultorias, para que eventuais conflitos de interesse possam ser resolvidos.

Na palestra que deu na FAPESP, você abordou a questão sobre médico-pesquisador.
Falei sobre a formação do médico-cientista, uma subárea da medicina nos Estados Unidos que abrange o médico com excelente conhecimento clínico e de pesquisa básica. Boa parte dos médicos-cientistas nos Estados Unidos tem MD e PhD. O curso de medicina para eles é duas vezes mais longo, mas se formam com os dois títulos. No Brasil, muitos médicos fazem pós-graduação depois da residência. Uma diferença fundamental é que, lá, o PhD é obtido em uma disciplina básica. No Brasil, o PhD dos médicos frequentemente é em uma disciplina clínica. Formamos um superclínico e não um médico-cientista.

De qualquer forma, é difícil reproduzir o modelo norte-americano.
O orçamento anual dos NIH é de US$ 50 bilhões. Eles investem meio bilhão na formação de médicos-cientistas. Seria fantástico estimular a formação de médicos-cientistas no Brasil, mesmo que em pequena escala. Para isso, precisamos pensar em pagar um salário institucional adequado para que os médicos dedicados à academia possam permanecer no hospital todo o tempo. Talvez as agências de fomento à pesquisa pudessem implementar algo semelhante no Brasil, mesmo que fosse um projeto-piloto.

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