Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESPEm julho e agosto, a 26a edição da Escola Brasileira de Probabilidade, evento internacional que reúne pesquisadores e estudantes de estatística, homenageou um de seus principais promotores: o matemático Antonio Galves, do Departamento de Estatística do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP). A homenagem foi o último contato que muitos de seus colegas tiveram com Galves, que morreu no dia 5 de setembro, em Campinas (SP), aos 76 anos, de causa não divulgada.
Nascido na capital paulista, Galves é considerado o pai da rede de pesquisadores em probabilidade e estatística no Brasil devido a seus esforços para formar e fortalecer os vínculos entre os profissionais desse campo, além de estabelecer pontes com colegas de outros países da América Latina e da Europa, sobretudo França e Itália. Suas contribuições teóricas impactaram áreas diversas, da física à linguística, passando pela neurobiologia, informaram outros pesquisadores que conviveram com o matemático. Desde 2013, coordenava o Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (NeuroMat), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP.
Galves realizou quase toda a sua trajetória na USP. Formou-se em matemática em 1968, cursou o mestrado em estatística (1972) e o doutorado na mesma área (1978). Em 1974, na Universidade Pierre e Marie Curie ‒ Paris VI, na França, obteve um Diploma de Estudos Aprofundados, também em estatística. Tornou-se professor na USP em 1969, quando a matemática ainda era ensinada na extinta Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Com a fundação do IME, no ano seguinte, transferiu-se para a instituição onde permaneceu até se aposentar em 2022 como professor titular. Era coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Matemática, Computação, Linguagem e Cérebro (MaCLinC-USP).
O ponto de partida de seus trabalhos foram os sistemas markovianos de partículas, cuja trajetória independe de eventos passados, isto é, da memória. Galves, porém, introduziu a memória nesses sistemas, conforme explica a matemática alemã Eva Löcherbach, da Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. O brasileiro estudava as cadeias de ordem variável, ou seja, sistemas cuja dependência de eventos passados pode ser mais extensa ou mais curta. “Ele tinha uma enorme curiosidade, não só matemática, mas científica como um todo. Foi um grande cientista, porque matemáticos gostam de se ater a seus modelos e melhorá-los pouco a pouco. Mas Galves preferia expandir seus pontos de vista, inventando novas aplicações e campos de estudo”, declara Löcherbach a Pesquisa FAPESP.
Em 2013, o brasileiro e a alemã publicaram, na revista Journal of Statistical Physics, um artigo em que apresentam um cálculo para o tempo que um estímulo (spike) emitido por um neurônio em uma rede neural leva para retornar a seu emissor. Essa é a origem do “modelo de Galves-Löcherbach”, usado em pesquisas de neurocomputação e simulação do comportamento do cérebro e uma das contribuições de maior impacto do pesquisador brasileiro.
Löcherbach se recorda que o artigo foi terminado, às pressas, na mesa da cozinha da casa de Galves, e os dois não esperavam que o conteúdo se tornasse tão influente. “Não sei quem deu esse nome para o modelo, nem quando isso começou”, comenta. Nos últimos anos, Galves e Löcherbach organizavam, com o neurofisiologista francês Christophe Pouzat, um livro introdutório à neurociência estatística, ainda sem data de publicação.
Claudio Landim, diretor-adjunto do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), destaca dois artigos de Galves, escritos na década de 1980. O primeiro, de 1981, em coautoria com os matemáticos Claude Kipnis (1949-1993), francês, e Carlo Marchioro e Errico Presutti, italianos, é um dos primeiros a estudar sistemas termodinâmicos fora do equilíbrio e contém uma dedução estatística da lei de Fourier, que trata do fluxo de calor em um material. O segundo, de 1984, com o físico estatístico italiano Marzio Cassandro, o italiano Enzo Olivieri e a brasileira Maria Eulália Vares, ambos matemáticos, inaugura o “estudo sistemático da metaestabilidade”, de acordo com Landim.
O termo designa estados de sistemas com um longo período de aparente equilíbrio, seguido de uma rápida alteração ao equilíbrio estável. Casos típicos são os líquidos super-resfriados. Por exemplo, uma garrafa de cerveja colocada no congelador, a uma temperatura abaixo de zero ºC, que congela de repente quando sofre uma perturbação externa.
Segundo o matemático argentino Pablo Ferrari, do IME, Galves contribuiu para que esses processos fossem analisados não só na escala macroscópica, mas também na microscópica, a partir da interação molecular. Como o comportamento das partículas não pode ser determinado pela observação, a análise deve ser feita por meio do cálculo de probabilidades. No congelamento da garrafa visto a olho nu, é possível tratar o processo como determinista, porque as diferentes trajetórias se cancelam mutuamente. “Não é possível observar as moléculas, mas sim o resultado da interação de milhares delas. Elas podem ir para um lado ou para o outro e não conseguimos dar a fórmula exata para o que fazem. Mas, quando todas as pequenas perturbações se compensam, o resultado é algo previsível”, explica Ferrari.
O físico matemático José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP entre 1993 e 2005, exemplifica o caráter agregador de Galves por meio de seu esforço de aproximar profissionais do IME e do Instituto de Física da USP. “Nos anos 1980 e 1990 estabelecemos uma parceria muito forte entre as duas instituições, principalmente em torno da questão da metaestabilidade”, diz. “A interação era tão fértil que muitos dos meus alunos acabaram sendo contratados pelo IME, embora fossem físicos.” Perez conta que Galves contribuiu com estudos de física matemática, disciplina que busca expressar as teorias físicas com maior rigor formal.
Na última década, o NeuroMat, criado em 2013, foi o principal centro de atuação de Galves. Nele, pôde associar seus trabalhos teóricos a aplicações práticas na área de modelagem neuronal. De acordo com a neurofisiologista Claudia Domingues Vargas, do Laboratório de Neurobiologia do Movimento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Labmov-UFRJ) e uma das fundadoras do Cepid, já em 2011 Galves buscava pesquisadores interessados em compor o projeto. “Devido a sua experiência internacional, ele agregou uma rede de excelência de especialistas na fronteira da pesquisa matemática e uma longa experiência de pesquisa interdisciplinar”, relata.
Entre os projetos do NeuroMat, há um videogame chamado o Jogo do Goleiro, em que o participante é convidado a prever para que lado um atacante cobrará um pênalti, com base em seu comportamento passado. Essa ferramenta já foi utilizada para detecção precoce da doença de Parkinson. O Cepid NeuroMat também se dedica a iniciativas de promoção da ciência aberta e divulgação científica. Entre elas, Vargas destaca a cartilha Os braços de Nildo e Rony, pertencente ao projeto Abraço, voltado para a lesão do plexo braquial, conjunto de nervos que conecta os braços ao cérebro. “A cartilha foi concebida em seus mínimos detalhes e redigida pelo próprio Galves”, diz. “Ele era um apaixonado pela difusão científica. Dizia que a comunicação dos progressos de pesquisa do NeuroMat deveria ser feita como no jornalismo de guerra, direto da frente de batalha, para divulgar da maneira mais clara possível o conteúdo da nossa pesquisa.”
Galves era casado com a linguista francesa Charlotte Chambelland Galves, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e tinha duas filhas e um filho. O casal desenvolveu junto alguns trabalhos científicos que aplicavam a probabilidade à linguística. Desde 1996, ele era membro da Academia Brasileira de Ciências. Em 2007, recebeu a Grã-cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico, da qual era comendador desde 2002.
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