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Obituário

Antropóloga Eunice Durham morre aos 90 anos

A pesquisadora foi uma das principais referências em estudos sobre educação superior, área que ajudou a organizar no Brasil

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

A antropóloga Eunice Ribeiro Durham foi uma das principais pensadoras do sistema educacional brasileiro, tendo produzido estudos e reflexões que ajudaram a pautar discussões sobre o sistema universitário do país. Suas contribuições extrapolaram o universo acadêmico. A partir dos anos 1990, a pesquisadora passou a ter um papel de destaque também na formulação de políticas públicas, as quais auxiliaram na reorganização do ensino superior no Brasil. Ela morreu na terça-feira, 19, aos 90 anos, em decorrência de uma septicemia desencadeada por complicações no intestino.

Nascida em Limeira, no interior de São Paulo, Durham iniciou sua trajetória acadêmica na antropologia na década de 1960, empreendendo estudos sobre migração rural e urbana, movimentos sociais e organização familiar das classes sociais ao lado de antropólogos como Ruth Cardoso (1930-2008) e Darcy Ribeiro (1922-1997). Seu interesse pelas áreas de política universitária e educação superior começou a tomar forma nos anos 1970, quando já era livre-docente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) – instituição em que se graduou em ciências sociais em 1954, fez mestrado, doutorado e obteve o título de professora emérita, em 2002.

“Com a morte do Vladimir Herzog, em 1975, eu estava voltando da romaria que fizemos até a catedral da Sé para o culto ecumênico e encontrei outros colegas que disseram que, após o ato, haveria uma reunião dos professores na USP. Era preciso tomar uma atitude. Fui a essa primeira reunião, que criou a Associação dos Docentes da USP, a Adusp. Comecei então um imenso envolvimento com a política universitária e me dei conta de que sabia muito pouco sobre a universidade”, disse em entrevista a Pesquisa FAPESP em abril de 2016.

Seus estudos nessa área a levariam, anos mais tarde, a ter uma participação de destaque na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Nacional, ao lado de Darcy Ribeiro. Promulgada em 1996, após anos de discussão no Congresso Nacional, a lei – que até hoje regulamenta a educação no país – descentralizou a administração do sistema educacional brasileiro, repartindo essa competência entre as instâncias do poder. A educação infantil ficou com os municípios e o ensino médio com os estados. A União permaneceu responsável pelo ensino superior público e controle do privado.

A legislação ampliou ainda a autonomia das universidades, inclusive no que diz respeito à possibilidade de reorganização de sua estrutura interna, e liberou os cursos da obrigatoriedade do currículo mínimo, que definia as disciplinas a serem ministradas.

A participação de Durham na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases se deu em uma época em que a antropóloga trabalhava no governo federal. Entre 1990 e 1992, ela presidiu a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e foi secretária de Educação Superior do Ministério da Educação (MEC). Entre 1995 e 1997, no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, assumiu a Secretaria de Política Educacional do MEC, na qual ampliou o escopo de suas preocupações para os ensinos fundamental e médio.

“Eunice era uma intelectual de forte embasamento teórico e ampla capacidade de fazer levantamentos e organizar dados sobre a educação brasileira”, comenta o físico José Goldemberg, presidente da FAPESP de 2015 a 2018, que trabalhou com Durham quando reitor da USP, entre 1986 e 1990. “Essas características foram fundamentais à época em que trabalhamos na reforma do estatuto da universidade”, ele diz, referindo-se à estatuinte, promulgada em 1988, que, para muitos, ajudou a oxigenar a USP, ao instalar as pró-reitorias, modernizar sua gestão institucional, introduzindo avaliações periódicas do sistema acadêmico, entre outras mudanças.

Foi também nessa época que a antropóloga criou o primeiro núcleo de pesquisa voltado ao terceiro grau no país, o Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior (Nupes, sucedido pelo atual Núcleo de Pesquisas de Políticas Públicas, Nupps), grupo interdisciplinar que, entre 1989 e 2005, desenvolveu estudos, segundo Durham, mais baseados no levantamento e análise de fatos e informações, levando em conta o que ocorria no resto do mundo. “Esse núcleo foi pensado inicialmente como um grupo de pesquisa do conselho de reitores das universidades paulistas, mas acabou se tornando uma atividade desenvolvida apenas dentro da USP”, conta o sociólogo Simon Schwartzman, do Instituto de Estudos de Política Econômica, no Rio de Janeiro, que trabalhou com a antropóloga, a convite dela, na organização do novo núcleo em fins dos anos 1980.

Segundo Schwartzman, “a principal contribuição do Nupes àquela época foi a de estabelecer redes de colaboração com acadêmicos de outros países em torno de estudos comparativos baseados em dados e na literatura acadêmica internacional daquele momento nessa área”. O primeiro – e, talvez, o mais importante – envolveu cinco países latino-americanos e pesquisadores de cada um deles. “O trabalho nos permitiu identificar os desafios do ensino superior na região e as reformas que os governos locais estavam adotando para superá-los.”

Os trabalhos desenvolvidos no Nupes fizeram com que Durham compreendesse o ensino superior como um sistema mais amplo, flexível e diversificado, composto por instituições públicas, privadas e técnicas de tamanhos diferentes, capazes de atender a demandas regionais e a formar professores, pesquisadores e profissionais para o mercado de trabalho. “Não há atualmente muita controvérsia em reconhecer que o ensino superior brasileiro é diverso, formado por instituições com vocações distintas, não necessariamente vinculadas ao modelo de universidade que importamos dos Estados Unidos após a reforma universitária de 1968, e tampouco ao indissociável tripé ensino, pesquisa e extensão”, comenta a cientista política Elizabeth Balbachevsky, professora da FFLCH-USP. “O reconhecimento de que o ensino superior não se resume apenas à universidade, mas se constitui em um sistema diversificado de instituições, se deu a partir dos trabalhos de Durham e Schwartzman no Nupes no início dos anos 1990.”

Durham soube traduzir bem essa reflexão acadêmica em sua atuação política dentro da Capes e do MEC. “Ela pensou intelectualmente a educação e o sistema universitário brasileiro e soube transpor esses conceitos na reorganização do ensino superior no país”, destaca Balbachevsky. “Ela era uma pessoa corajosa, de forte senso prático e grande capacidade de organização”, diz Goldemberg. A antropóloga também é lembrada por sua retidão intelectual. “Defendia suas ideias de forma aguerrida e isso a fez se indispor com muita gente”, lembra Schwartzman. “Quem, como eu, teve a oportunidade de interagir com a professora Eunice nas atividades universitárias, sabe que perdemos uma das mais expressivas vozes e inteligência do pensamento do ensino superior no Brasil”, afirmou à Agência FAPESP Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP, reitor da USP entre 2014 e 2018.

“Quando ocupei, juntamente com o professor Paulo Martins, a direção da FFLCH, criamos um comitê de professores eméritos para colaborarem com a direção. Ela [Durham] esteve presente em todas as reuniões. Na última, caminhou até a janela, para não incomodar com o seu cigarro, e falou-me: ‘Acho que não tenho mais a contribuir; a universidade mudou e agora é com vocês’. Discordei. Mas aquele seu jeito peremptório não me deixou dizer mais nada”, destacou a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, vice-reitora da USP, em texto publicado no Jornal da USP.

A pesquisadora deixa um filho, fruto do casamento com o antropólogo norte-americano John Durham, e um neto.

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