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Educação

Antropologia em verbetes

Enciclopédia especializada e de acesso livre reúne conteúdo produzido por pós-graduandos

Pintura anônima que ilustra The magical power of words, obra do antropólogo Stanley Tambiah (1929-2014)

The J. Paul Getty Museum

Ao término de um semestre letivo,  a antropóloga Beatriz Perrone-Moisés decidiu avaliar seus alunos da pós-graduação em antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) de uma maneira diferente. Solicitou que os trabalhos de conclusão do curso fossem entregues sob a forma de verbetes de enciclopédia, com textos que reunissem, de modo enxuto e direto, informações de referência sobre conceitos e assuntos relacionados ao que havia sido discutido no curso.

Nascia ali a ideia de uma enciclopédia de antropologia, obra colaborativa virtual e de acesso livre lançada em 2015 e que vem se tornando referência entre interessados nesse campo de estudo. “Um dos grandes méritos do projeto é que ele associa a produção que acontece em sala de aula com a pesquisa e a extensão universitária, uma vez que seu resultado é compartilhado com a comunidade dentro e fora da universidade”, conta Fernanda Arêas Peixoto, na época coordenadora da pós-graduação em antropologia da FFLCH-USP e responsável por colocar em prática a ideia concebida por Moisés. “Foi um jeito interessante que minha colega Beatriz encontrou para evitar o engavetamento dos trabalhos, usualmente lidos por um grupo restrito de pessoas”, completa Peixoto, que atualmente é uma das coordenadoras editoriais da enciclopédia. A iniciativa foi concretizada com recursos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Alimentado inicialmente por mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos da própria faculdade, o acervo logo se tornou uma importante ferramenta de difusão acadêmica e os verbetes passaram a ser produzidos também por integrantes de outras universidades públicas paulistas, como as estaduais de Campinas (Unicamp) e Paulista (Unesp) e as federais de São Paulo (Unifesp) e São Carlos (UFSCar). Professores dessas outras instituições passaram a integrar o conselho editorial em 2018. “Identificamos um momento oportuno para expandir o projeto e contemplar conteúdos produzidos nessas diferentes universidades, o que trouxe novos olhares para o que vínhamos fazendo”, explica Peixoto.

Wellcome Collection Imagem captada pela fotógrafa Shinichi Suzuki acompanha texto sobre As técnicas do corpo, do antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950)Wellcome Collection

Para receber as contribuições de seus colaboradores, a equipe editorial sistematizou o processo de submissão dos verbetes, visando garantir a compreensão de seus conteúdos, tanto pelo leitor especializado quanto pelo leigo. As orientações incluem um estilo de escrita direta, sem adjetivações, jargões nem citações no corpo do texto. Os verbetes podem abordar definições sobre pensadores, livros, conceitos, correntes de pensamento, subcampos da antropologia ou mesmo instituições, associações ou sociedades científicas. Após a entrega, o texto é avaliado por pelo menos dois dos 12 integrantes da comissão editorial, além de Peixoto e André S. Bailão, doutorando em antropologia social na FFLCH-USP, que desde 2020 divide com ela a coordenação editorial do projeto.

Durante a análise feita pelos pares, o diálogo entre avaliadores e autores é constante. “Consideramos essa troca importante, pois as submissões não são prontamente aceitas ou recusadas. Discutimos os textos com os autores até chegarmos a um consenso sobre a versão final do verbete, em uma prática que gosto de comparar a um ateliê de escrita”, diz Peixoto. Os textos são recebidos por e-mail e as avaliações feitas duas vezes ao ano. As contribuições recebidas até o mês de março têm publicação prevista para o primeiro semestre. As que chegam até agosto, tornam-se disponíveis para consulta antes do final do ano. Todos os verbetes são acompanhados dos nomes de seus autores, data de publicação, palavras-chave e indicações bibliográficas que possibilitem a ampliação do conteúdo descrito. “Cada verbete funciona como uma espécie de bússola. Além de trazer definições, eles servem como ponto de partida para que os leitores possam seguir pesquisando o tema”, completa Peixoto.

Com quase 70 verbetes publicados desde seu lançamento, a enciclopédia é pioneira no Brasil, que segue sem outras fontes semelhantes disponíveis para consulta on-line. Foi registrada em 2021 com o código International Standard Serial Number (ISSN) – em português, número internacional normalizado para publicações seriadas. “Há por aqui uma escassez de publicações do gênero no campo da antropologia. Mesmo os dicionários impressos, que têm propostas diferentes das enciclopédias, são bastante restritos e, em geral, focados no campo das ciências sociais como um todo”, explica Bailão, que também responde pela iconografia incluída no acervo. “Apesar de ainda não estarem presentes em todos os verbetes, as imagens têm o objetivo de complementar as informações, sendo a maioria de domínio público”, diz. Há, no entanto, imagens mais recentes e que requerem autorização de uso como a que ilustra o verbete da antropóloga brasileira Lélia de Almeida Gonzalez (1935-1994), retratada pelo fotógrafo Januário Garcia Filho (1943-2021). “Em casos como esse, entro em contato com os detentores das imagens para obter as autorizações de uso”, completa. A intenção é que com o tempo todos os verbetes sejam acompanhados de referência iconográfica. Os responsáveis pela enciclopédia trabalham agora para intensificar a divulgação de seu conteúdo nas redes sociais, além de avaliar a possibilidade de criar versões em PDF dos textos e imagens apresentados nos verbetes, formato que facilita a impressão.

Reprodução ea.fflch.usp.br / foto Library of Congress Página sobre Mules and Men, de autoria da antropóloga e escritora norte-americana Zora Neale Hurston (1891-1960)Reprodução ea.fflch.usp.br / foto Library of Congress

Uma das peculiaridades da enciclopédia é que nela a definição de conceitos antropológicos está sempre associada às concepções de pensadores que se debruçaram sobre o tema. É o caso de ritual, cuja descrição faz analogia entre os conceitos de “ritual” e “cultura” na perspectiva trazida pelo antropólogo norte-americano Roy Wagner (1938-2018). Outro exemplo está no verbete sobre violência, na acepção da antropóloga indiana Veena Das, que reflete sobre os desdobramentos da violência na vida cotidiana.

Campeão de citações em trabalhos acadêmicos, o verbete “gentrificação” é descrito na enciclopédia como “a versão aportuguesada de gentrification (de gentry, ‘pequena nobreza’), conceito cunhado pela socióloga britânica Ruth Glass (1912-1990) no livro London: Aspects of change (MacGibbon & Kee, 1964), para descrever e analisar transformações observadas em diversos bairros operários em Londres”. Entre os verbetes mais  citados, segundo o Google Scholar, destacam-se também o conceito de genealogia na obra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), Ensaio sobre a dádiva, texto considerado central para a teoria antropológica produzido pelo sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss (1923-1924), e ideia de paisagem, desenvolvida por Tim Ingold, antropólogo britânico que reflete sobre a paisagem a partir de inúmeros processos que se verificam na passagem do tempo e nos registros duradouros de seres vivos, ciclos geológicos e atmosféricos. “Temos recebido solicitações de editoras de livros didáticos interessadas em utilizar as definições presentes nos verbetes da enciclopédia em suas obras”, diz Peixoto.

Metropolitan Museum of Arts Obra do pintor holandês Pieter Bruegel, o Velho (c.1525/1530-1569) ilustra o conceito de paisagem elaborado pelo antropólogo britânico Tim IngoldMetropolitan Museum of Arts

Doutoranda pela área de Estudos de Gênero do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais  da Unicamp, Natália Negretti utilizou a enciclopédia como fonte de pesquisa na elaboração de um de seus trabalhos acadêmicos. “Acho essencial podermos dispor de conceitos-chave do campo da antropologia elaborados por pesquisadores brasileiros”, afirma Negretti. “A enciclopédia também tende a popularizar diálogos da antropologia e ciências sociais, assim como autores por vezes mais encontrados em outras línguas. Essa abertura, articulada à disponibilização pela internet, possibilita uma partilha menos restrita.”, completa.

Em sentido etimológico, a antropologia pode ser descrita como o estudo do homem (do grego, antropo, homem; logos, estudo). Como ciência da humanidade, busca compreender o ser humano em sua totalidade, relacionando-se com os demais campos das ciências, estando também ligada a seus aspectos biológicos e culturais. A  enciclopédia, por sua vez, procura ocupar um espaço ainda pouco explorado, sobretudo em língua portuguesa, somando-se a obras de referência como a The Cambridge encyclopedia of anthropology, mantida pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e a Bérose encyclopédie internationale des histoires de l’anthropologie , voltada à história da antropologia e mantida por diferentes instituições científicas da França, e da qual Fernanda Peixoto também participa. Em formato parecido, porém com conteúdos do campo da filosofia, destaca-se a Stanford encyclopedia of philosophy, editada pela Universidade Stanford, em Palo Alto, nos Estados Unidos. “A divulgação científica se revela fundamental para disseminar problemas e perspectivas da antropologia, fomentando novos olhares e reflexões nesse campo de estudo, e democratizando o acesso ao conhecimento”, finaliza Peixoto.

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