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Obituário

Antropólogo foi um dos maiores estudiosos de segurança pública no Brasil

Roberto Kant de Lima organizou cursos de especialização para policiais dentro e fora da universidade

Claudio SallesO antropólogo Roberto Kant de Lima criou uma das principais redes de pesquisa sobre violência no paísClaudio Salles

Professor emérito da Universidade Federal Fluminense (UFF), o antropólogo Roberto Kant de Lima era um dos maiores especialistas em segurança pública do país. Ao longo das últimas cinco décadas, atuou no campo da antropologia do direito e da antropologia política, investigando temas como conduta policial, justiça penal e administração de conflitos. Kant morreu em 20 de maio, aos 80 anos, em Niterói (RJ), onde residia.

Segundo o sociólogo Sergio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Kant mostrou em seus trabalhos que, ao contrário de países como Estados Unidos, não há no Brasil uma articulação de fato entre as operações de vigilância, repressão policial, investigação de crimes, responsabilização criminal, julgamento e sentença. “Ou seja, nosso sistema é inteiramente fragmentado e não existe algo que se possa chamar rigorosamente de justiça criminal”, diz Adorno.

Kant nasceu no Rio de Janeiro, mas se mudou com a família para Santa Catarina ainda na infância. Na juventude, foi para Porto Alegre e formou-se em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1968. Chegou a atuar como fuzileiro naval antes de seguir carreira acadêmica.

Em 1978, concluiu pesquisa de mestrado em antropologia social no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ). Na dissertação “Pescadores de Itaipu: A pescaria da tainha e a produção ritual da identidade social” foi orientado pelo antropólogo Roberto DaMatta.

De acordo com Ana Paula Mendes de Miranda, professora de antropologia da UFF, o incentivo de DaMatta para que seu então orientando cursasse a disciplina de antropologia jurídica, ministrada pelo antropólogo norte-americano Robert Shirley, na UFRJ, impactou os rumos de sua trajetória profissional.

Mais tarde, Kant fez doutorado na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, finalizado em 1986. Sua tese saiu publicada no livro A polícia da cidade do Rio de Janeiro: Seus dilemas e paradoxos (Forense, 1995). Para o antropólogo Luís Roberto Cardoso de Oliveira, da Universidade de Brasília (UnB), a obra representou um marco nos estudos sobre segurança pública no país. “Ele sinalizou a falta de sintonia entre as normas que regem a conduta policial e a ação daqueles agentes na prática.”

Em pesquisa de pós-doutorado, em 1990, na Universidade do Alabama em Birmingham, nos Estados Unidos, deu continuidade ao estudo sobre práticas policiais. Na ocasião, estagiou no departamento de narcóticos da polícia daquela cidade, e em San Francisco, na Califórnia, realizou outro estágio na Defensoria Pública.

Kant foi o principal articulador da criação, em 2009, do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT- InEAC-UFF). A iniciativa se consolidou como uma das principais redes de pesquisa sobre violência no país ao articular antropologia, direito e segurança pública.

Composto atualmente por 30 núcleos de estudos, o instituto reúne mais de 100 cientistas sociais de oito estados da federação e do Distrito Federal, e outros 200 pesquisadores em formação. Além disso, conta com integrantes da África do Sul, Argentina, Canadá, Estados Unidos, França, Portugal, Peru, México e Suíça.

Na avaliação da antropóloga Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, da USP, Kant consolidou e constantemente ampliou análises de temas que eram pouco abordados pela antropologia brasileira. “Ele foi um dos precursores do campo da antropologia do direito no país, que inclui os estudos sobre segurança pública”, diz a pesquisadora.

Isso favoreceu também seu diálogo com atores sociais de fora da universidade. Um exemplo foi a criação, liderada pelo antropólogo, a partir de 1999, do curso de extensão em políticas públicas, justiça criminal e segurança pública para policiais na UFF. Em 2000, a iniciativa se tornou um curso de especialização, originado do diálogo entre Kant e oficiais da polícia militar do Rio de Janeiro.

Thiago Rodrigues, professor de relações internacionais da mesma universidade, lembra que Kant enfrentou resistências dentro da própria instituição de ensino para implementar o projeto. “Ele batalhou em defesa da qualificação da segurança pública e dos policiais, seguindo a bússola dos direitos humanos e do Estado democrático de direito, mas sem demonizar ou alienar os agentes de segurança pública.”

Apesar das dificuldades, a iniciativa se consolidou e se transformou em 2012 na primeira graduação em segurança pública do país. O antropólogo Lenin Pires, da UFF, que participou da criação do curso ao lado de Kant, conta que a motivação veio do entendimento de que o tipo de formação oferecida pelas academias de polícia não favorece que os agentes tenham uma compreensão mais aprofundada dos valores civis necessários à administração de conflitos.

A iniciativa, porém, não se restringiu à universidade. Em 2013, Kant e Pires foram convidados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro a replicar seus conteúdos em um curso de tecnólogo criado na ocasião para policiais da instituição.

Além da segurança pública, Kant voltou o olhar para a própria universidade, ao investigar suas hierarquias, estruturas de poder e mecanismos de exclusão. O resultado da análise está na obra de caráter autobiográfico Antropologia da academia: Quando os índios somos nós (Eduff, 1997).

Nos últimos anos, o antropólogo buscou criar conexões entre a universidade e a escola pública de ensino básico por meio do projeto “Feira de Ciências Simoni Lahud Guedes: Conflitos e diálogos na escola em uma perspectiva multidisciplinar”, iniciado em 2020. Realizado a cada dois anos, o evento reúne professores e estudantes das escolas públicas do estado do Rio de Janeiro, com a assessoria de pesquisadores do INCT-InEAC-UFF.

“A ideia é estimular a produção de projetos de pesquisa entre os estudantes do ensino médio de escolas públicas para que eles reflitam sobre os conflitos escolares e o uso de tecnologias em uma democracia”, conta a antropóloga Talitha Rocha, pesquisadora em estágio de pós-doutorado na UFF e integrante da iniciativa.

Kant teve também destaque no âmbito institucional. Entre outros cargos, foi vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (2006-2008), período em que coordenou a Comissão de Direitos Humanos. Na ocasião se destacou pela defesa dos povos indígenas e comunidades quilombolas.

Exerceu ainda o cargo de pró-reitor de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação da UFF entre 2014 e 2017. “Ele tinha grande habilidade para criar parcerias e teceu redes com intelectuais e instituições não apenas da América Latina, mas também dos Estados Unidos, Canadá, Portugal e França”, observa o antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima, do MN-UFRJ.

Membro da Academia Brasileira de Ciências, o antropólogo recebeu em 2008 um dos mais importantes reconhecimentos de sua trajetória acadêmica: a Ordem Nacional do Mérito Científico, concedida pelo governo federal, principalmente pelo seu papel na consolidação das ciências sociais no país.

Kant morreu em consequência de um câncer. Deixa os filhos Rafael e Felipe.

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