Nesse exato momento, um bebê pequeno, com peso menor do que o esperado, pode estar nascendo em algum lugar do Brasil. Talvez ele seja um dos 40 prematuros que vêm ao mundo por hora no país. Ou não, pois nem sempre é fácil saber se aquela criança de baixo peso nasceu a termo ou é prematura, ou seja, com menos de 37 semanas de gestação. Cerca de metade dos recém-nascidos no Brasil tem idade gestacional imprecisa em razão da não realização de um ultrassom obstétrico nos três primeiros meses de gravidez (ver Pesquisa FAPESP nº 271). Quando essa dúvida surge, o neonato corre risco, pois se for prematuro precisará de cuidados especiais imediatos para evitar intercorrências que podem lhe custar a vida ou trazer prejuízos permanentes à saúde.
“A idade gestacional ao nascimento é a informação mais importante para determinar o prognóstico de um recém-nascido, sua chance de sobreviver e os cuidados de que necessitará nas primeiras horas de vida”, destaca a ginecologista Zilma Reis, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Na ausência de informação confiável, a prematuridade pode ser negligenciada e, com isso, a probabilidade de sobrevida se reduz”, complementa a médica, que também coordena o Centro de Informática em Saúde da faculdade mineira.
Foi para oferecer uma resposta rápida e segura a essa situação, sobretudo em localidades carentes de profissionais especializados, que Reis juntou forças com o físico Rodney Guimarães e um grupo de pesquisadores da UFMG das áreas de neonatologia e obstetrícia, enfermagem, fisioterapia, física, ciência da computação e de dados. O resultado de sete anos de trabalho transformou-se em um produto e começou a ser vendido em outubro do ano passado. Batizado de Preemie-Test, o dispositivo, parecido com um termômetro digital, com cerca de 15 centímetros de comprimento, estima a idade ao nascer pela análise da maturidade da pele do recém-nascido. Ele faz isso emitindo um feixe de luz de LED (diodo emissor de luz) na sola do pé do bebê. A medida de reflexão da luz –
quando ela retorna para o dispositivo – revela a idade da criança (ver infográfico).
“Quanto mais prematuro ela for, mais transparente será a pele. Com isso, grande parte da radiação será absorvida e haverá pouca reflexão. Com maior tempo de gestação, a pele se torna mais espessa, refletindo mais luz, que é captada pelo sensor do aparelho”, explica Reis. “Testamos luzes de vários comprimentos de onda e optamos pela infravermelha, que penetra mais na pele”, acrescenta Guimarães, destacando que a incidência da luz e sua absorção pela pele não traz nenhum prejuízo à saúde dos recém-nascidos.
A informação sobre a maturidade da pele, juntamente com o peso do bebê, alimenta um software dotado de algoritmos de inteligência artificial e permite ao equipamento mensurar a idade gestacional. O aparelho também considera o peso do recém-nascido e se a gestante utilizou corticoides durante o pré-natal, pois esse medicamento acelera a maturação do feto – a informação sobre o uso de corticoides é colhida com a gestante e inserida no programa do Preemie-Test. “Não há tecnologia similar no mercado para identificar a cronologia da gestação”, diz a pesquisadora.
O Preemie-Test é fabricado pela BirthTech, startup criada por Guimarães, que fez um acordo de licenciamento com a UFMG. Com sede em Belo Horizonte, tem filial no pequeno município de Figueiró dos Vinhos, na região central de Portugal, onde o físico reside e produz o equipamento. “Optei por Portugal pelas facilidades burocráticas no processo de fabricação e exportação. Recebemos apoio financeiro do Fundo Social Europeu para contratação de funcionários. Com esses recursos, pagamos 40% do salário de nossos quatro funcionários, entre eles um engenheiro, todos portugueses”, relata Guimarães.
Da Europa, o Preemie-Test foi exportado no primeiro mês de vendas para Índia, Costa Rica, Guatemala, México, Colômbia e Trinidad e Tobago. No total, foram comercializadas 20 unidades. A startup ainda não tem clientes em Portugal e no Brasil. “Obtivemos em novembro autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para vender o dispositivo no país”, diz Guimarães.
O dispositivo pioneiro nasceu da união de saberes da ginecologista e obstetra que largou um curso de engenharia civil pela metade para fazer novo vestibular para medicina e do doutor em astrofísica que, encantado pela área da saúde, realizou um pós-doutorado em biomedicina. “Nos conhecemos quando a Zilma participou da banca de um de meus alunos de mestrado que, em sua pesquisa, havia criado um oxímetro”, lembra Guimarães, então professor do Senai Cimatec, na Bahia. O princípio do oxímetro, aparelho que estima o nível de oxigênio no sangue por meio de feixes de luz que atravessam a pele, foi a inspiração para o Preemie-Test.
O sistema voltado a bebês prematuros só se concretizou graças ao apoio financeiro da Fundação Bill & Melinda Gates, em 2015, que teve contrapartida da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). “O investimento de Bill e Melinda Gates foi essencial para viabilizar o projeto. Eles acreditaram em um resumo de duas páginas”, conta Rodney. Os recursos foram utilizados para fazer a prova de conceito, correlacionando os dados de reflexão da luz com a maturidade da pele. Os resultados dessa pesquisa foram publicados na revista científica PLOS ONE, em 2017. Cerca de um ano e meio depois, a tecnologia e o dispositivo foram patenteados em nome da UFMG e da Fapemig.
Daniel Mansur / Revista Pesquisa FAPESPDispositivo semelhante a um termômetro estima a idade ao nascer pela análise da maturidade da pele do recém-nascidoDaniel Mansur / Revista Pesquisa FAPESP
Em 2018, o projeto foi selecionado pelo programa Grand Challenges Canada, financiado pelo governo canadense. Com o apoio, o equipamento foi usado na avaliação de 305 recém-nascidos com peso inferior a 2,5 quilos no Brasil e em Moçambique entre junho de 2020 e abril de 2021. “Dificuldades são oportunidades”, pontua a pesquisadora da UFMG. “Tendo em vista a escassez de recursos para pesquisa, passamos a focar em editais internacionais. Apostamos em parcerias para além do Brasil, a fim de ampliar os resultados e captar mais recursos.” A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que tem escritório em Maputo, capital moçambicana, também participou do teste, cujos resultados estão sendo organizados para publicação.
Segundo Reis, ensaios de eficácia do aparelho tiveram uma precisão superior a 90%. Em um dos estudos, realizado com 781 recém-nascidos de cinco hospitais brasileiros entre 2019 e 2021, o dispositivo discriminou corretamente os bebês a termo e os prematuros, com um índice de acerto de 91%. Um artigo foi publicado no Journal of Medical Internet Research, em setembro de 2022.
Em 2020, nova patente com aprimoramentos da tecnologia foi depositada em nome da UFMG, Fapemig e BirthTech. A novidade envolve uma redução do formato original do aparelho e o acréscimo de uma nova função associada à saúde pulmonar do recém-nascido. “A versão inicial só oferecia a datação da gravidez. A segunda versão traz um prognóstico de complicações pulmonares relacionadas à maturidade gestacional”, informa Reis.
Ela explica que existe uma relação direta entre a maturidade pulmonar e a capacidade da pele de reter calor, ambas dependentes do tempo de vida intrauterina. Os ensaios clínicos que comprovam essa sincronia entre o pulmão e a pele, últimos órgãos do corpo humano a amadurecer, alimentam o algoritmo e permitem estimar o risco de que o bebê sofra dificuldades respiratórias que venham a exigir cuidados intensivos.
Os criadores do Preemie-Test esclarecem que o aparelho não tem o propósito de substituir as formas convencionais de datação gestacional, mas proporcionar um suporte aos profissionais da saúde, especialmente onde faltam recursos tecnológicos e humanos. O grupo também criou um aplicativo, Preemie Care, que pode ser baixado gratuitamente e tem orientações sobre os primeiros cuidados a prematuros.
A pediatra e neonatologista Ruth Guinsburg, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora científica da Rede Brasileira de Pesquisas Neonatais, elogia a iniciativa mineira. “Pode ajudar na tomada de decisão do profissional, que precisa agir rapidamente nos primeiros cuidados”, opina. Ela enfatiza que as primeiras ações do profissional na sala de parto são cruciais para prevenir a mortalidade e a ocorrência de alterações no desenvolvimento neuropsicomotor dos bebês. No entanto, os dados disponíveis sobre o recém-nascido costumam ser limitados e imprecisos.
“Para fazer o cálculo de idade gestacional, consideramos inicialmente a data da última menstruação – quando o ciclo da mãe é regular e ela tem certeza do dia – e o exame de ultrassom realizado até a 12ª semana de gestação”, esclarece Guinsburg. Quando feito nesse intervalo de tempo, o ultrassom é o método que permite calcular a idade gestacional de forma mais acurada, considerado padrão-ouro, com uma margem de erro de até cinco dias, explica a pediatra.
No processo de validação do Preemie-Test, os pesquisadores da UFMG chegaram a resultados muito próximos aos do ultrassom feito no primeiro trimestre de gestação. “Na média, a diferença das idades gestacionais obtidas pelo teste foi de 1,3 dia, para menos, em relação aos cálculos do ultrassom”, afirma Reis.
Na ausência do ultrassom, a alternativa é submeter o recém-nascido a exames físicos, que dependem da experiência do profissional e podem ter margem de erro maior. Publicado em 2017 na revista Pediatrics, um estudo de revisão sobre o exame de Ballard, um dos mais utilizados para avaliar a maturidade física e neuromuscular do neonato, indicou que esse teste pode estimar a idade gestacional com um erro de cerca de 3,8 semanas.
Para a neonatologista Walusa Ferri, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e chefe da área de Neonatologia do Hospital das Clínicas da mesma instituição, a análise da maturidade da pele do neonato é valiosa por si só, independentemente de sua relação com a maturidade pulmonar. Ela explica que o monitoramento da pele do bebê prematuro é essencial para prevenir intercorrências graves.
“O prematuro perde água pela pele – ela evapora através da epiderme, extremamente fina – e necessita de uma reposição intravenosa do líquido perdido. Se não receber essa reposição, pode desidratar a ponto de sofrer um sangramento intracraniano”, alerta a especialista. Com a informação sobre a maturidade da pele, explica, o profissional da saúde pode estimar o volume da reposição intravenosa necessária. “Em locais com poucos recursos, o dispositivo pode ser de grande valia”, enfatiza Ferri.
Artigos científicos
REIS, Z. S. N et al. Newborn skin reflection: Proof of concept for a new approach for predicting gestational age at birth. A cross-sectional study. PLOS ONE. 20. set.2017.
REIS, Z. S. N et al. Newborn skin maturity medical device validation for gestational age prediction: Clinical trial. Journal of Medical Internet Research. 7 set. 2022.
REIS, Z. S. N et al. Premature or small for gestational age discrimination international multicenter trial protocol for classification of the low-birth-weight newborn through the optical properties of the skin. JMIR Research Protocols. 14 jul. 2020.
LEE, A. C. et al. Diagnostic accuracy of neonatal assessment for gestational age determination: A systematic review. Pediatrics. 17 nov. 2017.
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