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Pesquisa na quarentena

“Apesar de nunca ter trabalhado com vírus antes, tentei fazer minha parte para ajudar a combater a Covid-19”

Durante a pandemia, o biomédico Rodrigo Ureshino, da Unifesp, passou a investigar se o hormônio estrogênio poderia reduzir a infecção por Sars-CoV-2

Os peixes precisam de cuidado constante, então mesmo durante a pandemia é necessário ir ao laboratório

Arquivo pessoal

Quando a pandemia começou, minha esposa e nosso filho de 2 anos foram para a casa que temos em Mogi das Cruzes. Achamos melhor assim. Eu fiquei em São Paulo e ia aos finais de semana. No começo era todo um cuidado ao chegar em casa: tirar a roupa, deixar em um cabide separado e tomar banho. Ainda faço isso, mas com menos pânico. Tomamos essa decisão porque, apesar de as aulas presenciais terem sido suspensas na Unifesp [Universidade Federal de São Paulo] já no final de março de 2020, não cheguei a ficar em quarentena. Continuei frequentando o laboratório onde fica o nosso biotério de zebrafish, peixe também conhecido como paulistinha. Eles precisam ser alimentados seis vezes por semana e não poderíamos expor os alunos.

Em março de 2020, estávamos trabalhando em um projeto de pesquisa do programa Jovem Pesquisador [JP], da FAPESP, onde estudamos o papel de compostos estrogênicos em modelos de doenças neurodegenerativas em células in vitro e também em zebrafish. A ideia é observar se estrógenos, como o estradiol, podem modular e melhorar a autofagia, um processo protetor das células, ajudando a remover o excesso de proteína tau, diretamente relacionada com a doença de Alzheimer. Para isso, montamos o biotério de zebrafish na Unifesp, no campus de São Paulo. Não é muito grande, mas precisa de manutenção constante. Nossa rotina de pesquisa mudou totalmente e o projeto chegou a ser paralisado porque os alunos precisaram ficar em casa e não poderiam continuar com os experimentos. Retomamos em setembro com rodízio de alunos, para que não houvesse aglomeração no laboratório, e com todos os protocolos de segurança.

Em paralelo, seguimos as pesquisas sobre a Covid-19. Logo no início da pandemia a professora Roberta Stilhano, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, veio conversar comigo sobre a possibilidade de remanejar a verba do JP para trabalharmos com a doença. Conseguimos fazer isso por meio de uma chamada de rápida implementação que a FAPESP fez e decidimos investigar se os estrógenos poderiam ter um papel protetor. Começamos observando as estatísticas e vimos que os homens apresentaram formas mais graves da doença e estavam morrendo mais do que as mulheres. Vendo esses dados, escrevemos e publicamos um artigo de revisão sobre o assunto, em parceria com colegas da Califórnia, nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, também tive um caso na família, o que reforçou o alerta. Em fevereiro, quando ainda pouco se falava de Covid-19 por aqui, um primo de segundo grau viajou para Brasília com a esposa e os dois, aos 62 anos, foram contaminados. Ela saiu do hospital rapidamente e ele faleceu em abril, depois de três semanas intubado.

Minha área de pesquisa é farmacologia e trabalho com células e com modelos animais. Entramos em contato com várias pessoas, porque precisávamos tornar viáveis os ensaios com o vírus. Nada teria sido possível sem a Roberta, porque é ela que entende muito de biologia molecular e me estimulou.

Apesar de nunca ter trabalhado com vírus, me senti na obrigação de fazer alguma coisa, dentro do possível. Meus pais são médicos. Minha mãe já estava aposentada, mas meu pai continuou trabalhando durante a pandemia e só se aposentou no final do ano passado. Minha irmã é psiquiatra e também estava no hospital. Eles são um exemplo para mim, porque estavam na linha de frente. Então, como biomédico e pesquisador, também tentei fazer minha parte. Decidi entrar de cabeça na pesquisa sobre Covid-19 e minha esposa me incentivou.

Roberta e eu conseguimos contato com o virologista Mário Janini, da Unifesp, que topou nos ajudar. Ela e Robertha Lemes, pesquisadora em estágio de pós-doutorado em meu laboratório, que já tinham mais experiência em cultura celular e vírus, começaram a trabalhar nos nossos projetos no laboratório de biossegurança nível 3 [NB3] da Unifesp, com colaboração do grupo da virologia coordenado pelo Mário. Particularmente, eu queria estar no laboratório também, mas não tinha treinamento específico para NB3 e precisava cuidar da administração do projeto e da análise dos dados, juntamente com minha colega Carla Prado.

Nosso primeiro trabalho de Covid-19 foi uma revisão publicada em novembro de 2020. Em janeiro de 2021, publicamos um trabalho em que observamos que células Vero [oriundas de macacos e muito usadas como modelo para estudos in vitro] tratadas com estradiol diminuíram de 30% a 40% a carga viral de Sars-Cov-2. O estrógeno parece ter um potencial protetor nas doenças que envolvem muita inflamação. Isso poderia ser mais estudado, pensando no combate à tempestade de citocinas que a Covid-19 provoca. Agora precisamos replicar o estudo em células humanas e, posteriormente, em camundongos modificados geneticamente para desenvolver a doença.

Ao longo do caminho enfrentamos alguns problemas, como a falta de reagentes e de aparatos e materiais necessários para o trabalho no NB3. Em outubro do ano passado, o laboratório NB3 da Unifesp precisou ser fechado para reformas. Entramos em contato com a veterinária Liria Okuda, do Instituto Biológico de São Paulo, que abriu as portas do laboratório para nossas experimentações. Somos muito gratos, essa parceria permitiu que os projetos continuassem em andamento. Recentemente, com a fase emergencial da pandemia em São Paulo, foi preciso parar por um tempo.

Estamos trabalhando também com uma biblioteca com 42 compostos estrogênicos (alguns deles aprovados pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] para uso em diversas doenças) que utilizei para o projeto das doenças neurodegenerativas. Assim como vimos que alguns compostos podem reduzir a proteína tau, estamos fazendo testes in vitro com o Sars-CoV-2 em células Vero. Vamos observar quais deles diminuíram a carga viral. Fármacos que já são utilizados para um fim podem ser úteis para outras coisas, é o que chamamos de reposicionamento.

As aulas a distância foram um desafio. Se tem uma coisa que eu não sei fazer e não gosto é me ver em vídeos ou na televisão. Vou gravando parte por parte, editando. Levava uma semana para gravar uma aula, depois foi ficando mais rápido. Estamos acostumados a ir para a lousa e rabiscar, é muito diferente. A universidade optou pelas aulas gravadas porque muitos alunos não têm acesso à internet de qualidade e assistir a aulas síncronas, ao vivo, seria complicado. Fazemos alguns encontros virtuais para tirar dúvidas, mas o conteúdo principal precisa ficar gravado.

Estou em um ritmo puxado de trabalho, com a coordenação dos projetos e as atividades de pesquisa, não paro de segunda a segunda. Sei que não é o ideal e que pode ter consequências. Eu costumava andar de moto para espairecer, mas desde o início da pandemia não consegui mais. Para relaxar, brinco com meus filhos. Um deles, de 12 anos, é do meu primeiro casamento e não mora comigo. Vou visitá-lo uma vez por semana, com o caçula, e nós três, todos de máscara, brincamos na área aberta do condomínio. Nessa hora, pelo menos, não penso em trabalho. Também desabafo com minha esposa, ela é minha melhor amiga. No momento que enfrentamos, é a família que alivia nossas angústias.

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