Podcast: Frederico Reis
“A ideia é unir o mundo das tecnologias livres com as ciências humanas”, disse o cientista da computação Jerônimo Pellegrini, professor do Centro de Matemática, Computação e Cognição da UFABC. O laboratório tem 40 metros quadrados (m²) e foi construído em um terreno da universidade com painéis de madeira cortados por computador e encaixados sem o uso de pregos ou parafusos. O financiamento coletivo arrecadou R$ 72 mil – R$ 9 mil acima da meta estabelecida – e mobilizou mais de 900 doadores. A campanha foi realizada pela plataforma Catarse, utilizada principalmente por artistas que querem lançar CDs ou montar espetáculos.
Em agosto, surgiu a primeira plataforma brasileira de crowdfunding dedicada a temas científicos. Batizada de Entropia Coletiva, foi idealizada pelo programador Frederico Reis, pela neurocientista Patrícia Bado e pelo físico Ivan José, do Rio de Janeiro, e teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). A plataforma já hospeda quatro campanhas de arrecadação. Uma delas é liderada por pesquisadores dos laboratórios de Investigação da Doença de Alzheimer e de Doenças Neurodegenerativas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Eles pretendem obter R$ 85 mil para a pesquisa de um tratamento contra Alzheimer com medicamentos usados para combater o diabetes.
As plataformas de crowdfunding podem trazer retorno financeiro para seus donos – isso depende, claro, do sucesso das campanhas. “Cobramos 18% do total arrecadado por projeto. Nossa taxa inclui o custo com a operadora de pagamentos, de 5%, e o contrato com uma agência de marketing digital”, diz Frederico Reis, da Entropia Coletiva, que também oferece um serviço de consultoria para auxiliar pesquisadores a divulgar suas campanhas. Já a Experiment cobra 12%.
A brasileira e a norte-americana adotaram modelos diferentes. A Entropia Coletiva é baseada no conceito de financiamento flexível, que permite ao pesquisador receber parcialmente qualquer valor arrecadado, mesmo que a campanha não tenha alcançado a meta prevista. A Experiment, por sua vez, utiliza o modelo all-or-nothing (tudo ou nada), que autoriza o resgate do valor doado somente se o pesquisador atingir o objetivo. Caso contrário, os doadores são reembolsados. “O modelo do ‘tudo ou nada’ faz com que os pesquisadores definam metas realistas e reduz o risco de envolver doadores em projetos que podem não sair do papel”, justifica a bióloga Cindy Wu, cofundadora da Experiment.
Vinícius Maracaja-Coutinho, professor do Centro de Genômica e Bioinformática da Universidade Mayor de Santiago, no Chile, deu preferência para o modelo flexível quando lançou, em 2015, a plataforma de crowdfunding científica Dodo, que cobra 10% de taxa. A iniciativa é um projeto da Beagle Bioinformatics, startup que ele fundou em 2012 após concluir o doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Coutinho desenvolveu a plataforma no Chile, ao participar de um programa federal de apoio à inovação. “Recebemos cerca de US$ 60 mil do governo chileno para conceber a Dodo. Em razão disso, transferi a startup para o Chile”, relata.
No momento, a maioria dos projetos na Dodo é de sequenciamento genético. Um grupo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), por exemplo, conseguiu cerca de US$ 2 mil para sequenciar o genoma de um inseto chamado cochonilha. “A cochonilha é utilizada para produzir um corante vermelho, utilizado na indústria alimentícia. Mas em 2015 houve um surto no sertão pernambucano e o inseto acabou com as plantações de palma, impactando a produção de gado bovino, que depende da planta para se alimentar”, explica Coutinho, que faz parte do grupo da UFPB. Os pesquisadores esperam que o sequenciamento ajude no controle biológico da praga.
Uma das primeiras campanhas de crowdfunding científico do Brasil ocorreu em 2013 e foi lançada por pesquisadores da UFRJ, que arrecadaram cerca de R$ 40 mil para mapear o genoma do mexilhão-dourado, uma espécie invasora que causa problemas ambientais no país. Com os recursos, o biólogo Mauro Rebelo e sua então aluna de doutorado Marcela Uliano concluíram o sequenciamento e agora se preparam para publicar os resultados. “O objetivo é ajudar a criar estratégias para controlar o avanço da espécie”, diz Rebelo, que atualmente está envolvido no lançamento de uma iniciativa para estudar genomas chamada Genome Research Application Environment (GRAppE), que também será financiada coletivamente.
Outro caso conhecido no país é o do Grupo Independente para Análise do Impacto Ambiental (Giaia), que reúne pesquisadores de várias instituições na tarefa de analisar os impactos ambientais resultantes do rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana (MG). Logo após o desastre, em 2015, eles lançaram uma campanha na internet que conseguiu arrecadar R$ 90 mil junto a 1.473 doadores. “A gente se mobilizou por meio de uma página no Facebook, que conta hoje com 15 mil seguidores. Essa rede ajudou a divulgar a campanha na internet e a mobilizar doadores”, relata o biólogo Dante Pavan, integrante do Giaia. Do total arrecadado, cerca de R$ 70 mil já foram gastos com viagens e compra de materiais para a análise de água e sedimentos da bacia do rio Doce (ver Pesquisa FAPESP nº 243).
Para Frederico Reis, da Entropia Coletiva, o ambiente no Brasil é mais desafiador do que o de países como os Estados Unidos, onde a prática do crowdfunding é favorecida pelo costume de empresas e indivíduos fazerem doações a instituições científicas. “Outro entrave é que os pesquisadores brasileiros não têm o hábito de buscar ajuda financeira em fontes que não sejam públicas”, argumenta Reis. Segundo ele, é preciso disseminar no país uma cultura de pesquisa que não dependa unicamente do apoio do governo, ainda mais em tempos de crise econômica e cortes no orçamento. “Trata-se de uma forma de complementar as fontes de apoio tradicionais, como as obtidas de agências de fomento.”
No exterior não faltam exemplos de projetos científicos que se viabilizaram graças a doações do público. Em 2015, mais de 18 mil pessoas contribuíram para uma campanha criada na Experiment. Um casal de Los Angeles, na Califórnia, conseguiu angariar US$ 2,6 milhões para financiar estudos sobre a doença de Batten, uma condição neurodegenerativa rara que se manifesta na infância, afetando a visão e as capacidades intelectual e motora. As duas filhas do casal sofrem da doença. A Experiment é uma criação de pesquisadores da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. “Acreditamos que é necessário diversificar e aumentar a quantidade de fontes de apoio para financiar pesquisas”, diz Cindy Wu.
Suzana Diniz, aluna de doutorado do Departamento de Biologia Animal da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), recorreu à Experiment em 2016 em busca de recursos para sua pesquisa. Ela angariou US$ 820 para realizar um estudo sobre o papel da reflexão de luz ultravioleta (UV) nos formatos feitos por aranhas em suas teias. O dinheiro foi usado para comprar materiais e custear o trabalho de campo. O objetivo era estimar o efeito da luz UV, refletida nas teias, sobre a atração de insetos que servem de alimento para as aranhas e sobre a incidência de predadores, como aves. “Observamos que, no geral, as decorações de teias que refletem luz ultravioleta atraem mais insetos do que as que tiveram o UV bloqueado. Mas, contrariamente ao esperado, quando refletem UV, as teias com decorações em formato de X atraem menos insetos visualmente guiados, como abelhas e moscas”, explica Suzana, que utilizou a plataforma Experiment também para divulgar resultados preliminares.
freepik Cindy Wu conta que a prática de publicar dados enquanto a pesquisa está em andamento é desejável, pois informa os doadores sobre o que foi feito com os recursos. “Também incentivamos a publicação de relatos informais sobre o processo da pesquisa”, diz Cindy. Ela explica que a Experiment pede aos cientistas que deixem claro ao público que os resultados são parciais e ainda não revisados por pares. Não é qualquer campanha que pode ser hospedada pela plataforma. A seleção de projetos é feita por uma comissão técnica. Um dos critérios é que o pesquisador esteja vinculado a alguma instituição científica e que o projeto seja endossado por outro colega da área. Para Frederico Reis, da Entropia Coletiva, o fato de os projetos financiados coletivamente não passarem por seleção rigorosa, como ocorre em agências de apoio, não significa que a qualidade não seja levada em consideração. “É comum que a pesquisa resulte na publicação de um paper e, então, passe pelo crivo da revisão por pares”, pontua Reis. “Mas o filtro principal é dos doadores, que decidem se um tópico vai ou não ser pesquisado”, avalia.
A pesquisa do neurocientista Eduardo Schenberg só se tornou viável por causa do financiamento coletivo. Ele coordena um estudo sobre o uso do MDMA, o princípio psicoativo do ecstasy, no tratamento de pessoas com transtorno de estresse pós-traumático – uma linha de investigação considerada controversa. “A pesquisa atrai pouco interesse da comunidade científica brasileira, que encara com receio o potencial terapêutico dos psicodélicos”, afirma Schenberg. Em 2015, ele lançou uma campanha no Catarse e conseguiu arrecadar R$ 53 mil com mais de 400 doadores. O estudo faz parte de um projeto internacional desenvolvido pela Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies, organização norte-americana que aposta na psicoterapia assistida com uso de MDMA. A etapa brasileira é realizada pela Plantando Consciência, ONG criada por Schenberg em 2009, após concluir o doutorado na USP. “Em breve, iniciaremos testes com pacientes”, informa.
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