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Ferramentas científicas

Artigos de dados ampliam olhar dos pesquisadores

Compilações produzidas de forma cooperativa agregam grandes quantidades de informação e permitem fazer análises mais abrangentes

Ilustração de Rodrigo Cunha com imagens extraídas dos artigos científicos consultados para essa reportagem; ALTENBACH, J. S. Locomotor morphology of the vampire bat. Desmodus rotundus, 1979; EISENBERG, J. F. e KLEIMAN, D. G. Advances in the study of mammalian behavior, 1983; HOELTGEBAUM, M. P. et al. Anais da Academia Brasileira de Ciências, 2018 / Ilustração de Leandro Lopes; Museu do Instituto Biológico / Ilustração de Helena Vieira Franco do Amaral

Em 2015, o ecólogo Milton Cezar Ribeiro, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, enganou-se ao achar que seria fácil reunir dados sobre animais da Mata Atlântica para fazer análises abrangentes — por exemplo, sobre os efeitos das mudanças climáticas em espécies do bioma. Com o biólogo Mauro Galetti, também da Unesp de Rio Claro, ele começou então a coordenar a produção de um tipo de trabalho ainda pouco valorizado no país, o chamado artigo de dados ou datapaper, que não testa hipóteses, mas reúne grande quantidade de informações sobre um determinado assunto e pode ser usado para a realização de novas pesquisas.

“Todo o mundo sai ganhando com esse tipo de artigo”, ressalta Ribeiro, que acabou coordenando cerca de 20 trabalhos sobre temas como aves, mamíferos terrestres, morcegos, borboletas e outros grupos de animais da Mata Atlântica. Em sua estimativa, mais de 50 pesquisadores em formação estão fazendo ou já concluíram estudos baseados nos artigos que ele ajudou a produzir e, durante a pandemia, foram uma alternativa para alunos que não podiam fazer coleta. O próprio Ribeiro usou os dados compilados em um estudo sobre desmatamento e biodiversidade de borboletas, publicado na revista Diversity and Distributions em 2019, e outro sobre o aumento do risco de transmissão de hantavírus em ambientes modificados pelo ser humano, divulgado no mesmo ano na Neglected Tropical Diseases.

Os artigos de dados surgiram na década de 1950, nos Estados Unidos — cerca de três séculos depois dos primeiros artigos científicos —, mas se tornaram comuns a partir da década de 2010, quando as revistas especializadas começaram a adotar o formato como parte do movimento em favor da ciência aberta, que visa tornar os resultados das pesquisas acessíveis a todos os segmentos da sociedade. Atualmente a maioria deles contém links para baixar planilhas com dados localizáveis por meio de buscas e informações georreferenciadas, que podem ser transformadas em mapas, além de outros arquivos. Cada dado, como a observação de um animal, fornece uma série de informações associadas – os chamados metadados –, como o tamanho do espécime, quem o coletou e o local e método da captura. A lista de autores costuma ser extensa, refletindo o grande número de colaboradores, como o datapaper Neotropical Carnivores, com cententas de coautores.

“Esse tipo de artigo disponibiliza informações que estariam fragmentadas e esquecidas em coleções, gavetas e discos rígidos difíceis de acessar”, destaca o zoólogo Diego Astúa, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O pesquisador é autor do artigo de dados sobre mamíferos do mundo publicado em maio no Journal of Biogeography. Isso exige que os coordenadores do trabalho entrem em contato com dezenas ou centenas de pessoas, compilando, organizando, verificando e fazendo a curadoria de cada uma das informações. Um dos maiores desafios é padronizar os nomes das espécies, que podem variar conforme a época, o local da coleta ou o autor consultado. Mas o grande número de dados de fácil leitura, em conjunto, pode revelar padrões que não eram visíveis isoladamente.

“Tudo isso não substitui o trabalho de campo, mas pode fornecer aprendizado e insights para o futuro”, esclarece a bióloga Joice Iamara-Nogueira, que ajudou a coordenar um artigo de dados sobre polinizadores da Mata Atlântica publicado em fevereiro na revista Ecology. Iamara-Nogueira, que está usando as informações para um trabalho sobre a coevolução entre beija-flores e plantas, aproveitou o processo de elaboração para fazer contato com colegas da área e aprender sobre como gerir pessoas que pensam de formas diferentes.

“Ao reaproveitar informações obtidas ao longo de décadas de financiamento público e privado, esse tipo de trabalho usa de forma mais eficiente os recursos e dá um retorno para a sociedade”, acrescenta Ribeiro. Segundo o ecólogo, eles podem ser usados por secretarias do Meio Ambiente para diagnóstico de espécies ameaçadas e até apontar suscetibilidade à extinção. “Muitas vezes, os dados dos artigos já são suficientes, não sendo necessárias novas coletas, ou então apontam as regiões com as maiores lacunas de conhecimento.”

Ilustração de Rodrigo Cunha com imagens de Livia Pires do Prado / MPEG (reprodução mapas); KEMPF, WW. Revista de Entomologia,1951; BROWN, W. L. e KEMPF, WW. Psyque, 1969. (ilustrações); César Augusto Favacho (fotos)Mapas de distribuição no estado de São Paulo e formigas Procryptocerus e Acanthognathus desenhados pelo frei Walter Kempf, além de formigas dos gêneros Pheidole e CamponotusIlustração de Rodrigo Cunha com imagens de Livia Pires do Prado / MPEG (reprodução mapas); KEMPF, WW. Revista de Entomologia,1951; BROWN, W. L. e KEMPF, WW. Psyque, 1969. (ilustrações); César Augusto Favacho (fotos)

Mapas reveladores
São Paulo era considerado o estado com o maior número de espécies de formigas do Brasil até que fosse feito um artigo de dados sobre as formigas do Pará, publicado na revista Zootaxa em 2021. “O estado de São Paulo já tinha tradição de pesquisa sobre formigas e os dados estavam consolidados”, conta a zoóloga Lívia Pires do Prado, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), coautora do artigo. Mas era natural que o Pará, com maior área e localizado em uma região com grande diversidade de formigas, revelasse novidades para muitas espécies.

Os mapas produzidos com os dados apresentados no artigo revelaram que boa parte da coleta no estado amazônico acontece perto de estradas e rios, onde o acesso é mais fácil e de custo menor, ou perto de grandes centros de pesquisa, onde os estudantes, muitas vezes com tempo e orçamento escassos, precisam fazer coletas para teses e dissertações. Já as formigas de áreas protegidas que não estavam próximas a um centro de pesquisa eram pouco conhecidas. “Os mapas podem ajudar a direcionar as novas coletas, mostrando onde estão as lacunas de conhecimento”, explica Prado. O artigo também mostrou que há muitos exemplares de formigas que não foram identificadas e podem ser espécies novas — algo que a pesquisadora aborda em sua pesquisa de pós-doutorado.

Os artigos de dados costumam incluir informações de fontes variadas, como registros guardados por museus ou especialistas, levantamentos de espécies feitos por empresas privadas, até informações fornecidas por amadores. “O ideal é publicar tudo o que é possível, pois para algumas análises a quantidade pode ser mais importante que a qualidade”, argumenta Astúa. O usuário pode definir a qualidade dos dados que quer visualizar. Assim, informações muitas vezes esquecidas são aproveitadas nesse tipo de trabalho.

Os artigos sobre formigas se apoiaram nos levantamentos de campo do taxonomista alemão Frei Walter Kempf (1920-1976), que viajou pelo Brasil coletando esses insetos. Já o artigo sobre borboletas da Mata Atlântica, publicado na Ecology em 2018, aproveitou os cadernos de campo do naturalista norte-americano Keith Brown, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Fazendo coletas desde os anos 1970 em diversas localidades da Mata Atlântica, Brown registrou um grande número de borboletas, incluindo espécies que vieram a desaparecer. Outra fonte de informação importante foram as listas produzidas pelo programa Biota-FAPESP, com vários registros novos de borboletas para o estado.

Ilustração de Rodrigo Cunha com imagens extraídas dos artigos científicos consultados para essa reportagem; KEMPF, WW. Studia Entomologica, 1975; BROWN, K. S. Ecologia geográfica e evolução nas florestas neotropicais, 1979

O caminho da informação
Para estimular os pesquisadores a compartilhar dados coletados em campo — que costuma ser a parte mais cara do projeto, além de demandar tempo e trabalho da equipe —, Ribeiro convidou Ronaldo Morato, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Cenap/ICMBio), para dar o exemplo e fazer um dos primeiros artigos de dados sobre os movimentos de onças-pintadas (Panthera onca) registrados com GPS, publicado em 2018 na revista Ecology. Como a onça é predadora de topo e dados de seus deslocamentos são raros, eles apostavam que essa iniciativa tornaria mais fácil negociar com os pesquisadores. “Parece ter dado certo, pois ninguém mais se recusou a compartilhar dados sobre outros animais, como o tamanduá”, exemplifica Ribeiro, que contribuiu com suas próprias observações do felino.

Instruções para obter dados
Artigos de método permitem aperfeiçoar ferramenta de coleta de informação de cérebro de animal em movimento

Um microscópio capaz de fazer imagens de neurônios de ratos em movimento é uma ferramenta útil para neurocientistas. Mas há um problema: o equipamento funciona bem em duas dimensões (para cima e para baixo, para a direita e para a esquerda), mas não em três, que inclui a profundidade.

“Com isso, o microscópio não consegue fazer imagens nítidas do movimento do animal”, relata o físico Bóris Marin, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que desenvolveu um algoritmo para tentar corrigir o problema e publicou em um artigo de método na revista Nature Methods, em junho de 2020. Assim como os artigos de dados, os de métodos também costumam ser abertos e focam apenas um dos aspectos da pesquisa.

“Em geral, a sessão de método dos artigos tradicionais é pouco detalhada e fica difícil para outros grupos testar e aperfeiçoar a técnica desenvolvida”, ressalta Marin. Para construir o algoritmo que pode corrigir o problema do microscópio, o físico baseou-se em artigo de método publicado por uma equipe inglesa da University College London na revista OpticaS Express, em 2010.

Projetos
1.
INCT 2014: Dos Hymenoptera parasitoides (nº 14/50940-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Angélica Maria Penteado Martins Dias (UFSCar); Investimento R$ 3.202.767,22.
2. Neurociência computacional e de sistemas (nº 18/20277-0); Modalidade Auxilio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisador responsável Antonio Carlos Roque da Silva Filho (USP); Investimento R$ 74.245,00.
3. História natural, filogenia e conservação de lepidópteros neotropicais (nº 11/50225-3); Modalidade Auxílio à pesquisa – Regular; Programa Biota; Pesquisador responsável André Victor Lucci Freitas (Unicamp); Investimento R$ 265.559,41.
4. Preenchendo lacunas de conhecimento de espécies de Hymenoptera da região Neotropical (no 22/01974-8); Modalidade Bolsa no Brasil – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Carlos Roberto Ferreira Brandão (USP); Beneficiária Lívia Pires do Prado; Investimento R$ 111.925,44

Artigos científicos
ALBUQUERQUE, E. Z. et al. Ants of the State of Pará, Brazil: A historical and comprehensive dataset of a key biodiversity hotspot in the Amazon Basin. Zootaxa. v. 5001, n. 1, p. 1-83. 16 jul. 2021.
IAMARA-NOGUEIRA, J. et al. ATLANTIC POLLINATION: A data set of flowers and interaction with nectar-feeding vertebrates from the Atlantic Forest. Ecology. v. 103, n. 2, e03595. 22 nov. 2021.
MARSH, C. J. et al. Expert range maps of global mammal distributions harmonised to three taxonomic authorities. Journal of Biogeography. v. 49, n. 5, p. 979-92. mai. 2022.
MORATO, R. G. et al. Jaguar movement database: A GPS-based movement dataset of an apex predator in the Neotropics. Ecology. v. 99, n. 7, p. 1691. 1° jul. 2018.
MUYLAERT, R. L. Hantavirus host assemblages and human disease in the Atlantic Forest. Neglected Tropical Diseases. v. 13, n. 8, e0007655, p. 1-19. 12 ago. 2019.
SANTOS, J. P. et al. Effects of landscape modification on species richness patterns of fruit-feeding butterflies in Brazilian Atlantic Forest. Diversity and Distributions. v. 26, n. 2, p. 196-208. fev. 2020.
SILVA, R. R. et al. Atlantic Ants: A data set of ants in Atlantic Forests of South America. Ecology. v. 103, n. 2, e03580. fev. 2022.

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