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Humanidades

As experiências interétnicas dos índios do norte da Amazônia

Nove povos indígenas que habitam a região de fronteira do Brasil com a Guiana Francesa e o Suriname e que se encontram em diferentes estágios culturais mantêm relações de convivência, em níveis diferentes, com outros povos e com não-índios, sem perderem as suas características particulares. Esta observação, e o estudo aprofundado das experiências interétnicas desses povos indígenas, pode representar uma preciosa contribuição para a revisão de conceitos acadêmicos antropológicos – que indicam o isolamento como a forma de os índios manterem a própria cultura e sua identidade

O estudo está sendo realizado por pesquisadores do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais da USP-Universidade de São Paulo, no âmbito do projeto temático Sociedades Indígenas e suas Fronteiras na Região Sudeste das Guianas, financiado pela FAPESP e coordenado pela antropóloga e professora Dominique Gallois.

Nesse estudo, estão povos que foram contatados há 300 anos, como os Galibi, os Karipuna e os Palikur, na região do rio Oiapoque, no norte do Estado do Amapá, e índios como os Zo’é, que, até 1987, permaneceram isolados na floresta, entre os rios Erepecuru e Cuminapanema, no norte do Pará.

Os pesquisadores querem colaborar para a renovação dos estudos das teorias de contato que hoje ainda têm como predominantes duas vertentes que se complementam e servem para suprir o senso comum da sociedade e o direcionamento da política indigenista no país. Uma das vertentes prega que o índio deve ficar isolado, sem ter contato com outras culturas, para preservar a sua própria cultura. A outra vertente diz que o intercâmbio com o homem branco leva o índio à total descaracterização e seu conseqüente desaparecimento como povo.

Essa visão era unânime até a década de 70, assinala Dominique Gallois. “Vinte anos depois, é possível verificar que os povos indígenas estão aí, reforçando a sua identidade e especificidades próprias”. E a pesquisadora acrescenta: “No mundo atual, não há mais espaço para populações isoladas. O isolamento é uma idéia romântica, agregada à idéia de primitivismo. Os Zo’é, por exemplo, não ficaram parados desde 1500. Eles têm uma história própria interna e de contatos com outros índios, ao longo desses anos”. A pesquisa, iniciada em 1996 e que vai se estender até o ano 2000, tem um aporte financeiro de R$ 200 mil.

Relações interétnicas
Segundo a professora Dominique Gallois, as relações interétnicas dos povos indígenas da Amazônia são múltiplas e de diferentes níveis de interação e precisam ser comparadas para que se possa ter um quadro antropológico mais real. Além das relações entre grupos indígenas, estão incluídos, aí, o contato e a influência de garimpeiros, madeireiros, fazendeiros, sertanistas,missionários e o próprio trabalho dos postos da Funai. “Sob essa perspectiva, estamos analisando, também, a situação de contato entre grupos, de um mesmo povo, que se separam, muitas vezes, em aldeias, e têm relações diferenciadas em nível local, nacional e internacional com outras etnias”.

Comparações também serão realizadas para analisar um mesmo povo dividido pela fronteira entre o Brasil e o Suriname (antiga Guiana Holandesa). É o caso do povo Tiriyó. “Com eles, estamos analisando o impacto das missões religiosas. No Suriname, os Tiriyó são evangélicos, de formação norte-americana, e no Brasil, são católicos, por influência de uma missão franciscana. Queremos saber quais as diferenças culturais internas desses povos sob esse tipo de contato religioso”, conta Dominique.

A pesquisa quer saber também qual o impacto das diferentes políticas nacionais sobre os índios. Os estudos de campo vão fazer comparações entre o índio que vive sob a tutela e a proteção da União, no Brasil, enquanto, na Guiana, eles são cidadãos plenos, chegando a votar para o Parlamento Europeu.

Em alguns casos, os povos indígenas estão totalmente integrados à sociedade local, com grande importância econômica, política e cultural. No norte do Amapá, os povos indígenas são a população majoritária da região, falando português e o idioma nativo. “O prefeito da cidade de Oiapoque é índio e eles são os principais fornecedores de canoas e farinha da região”, afirma a professora Lux Vidal, coordenadora dos trabalhos no Oiapoque. Em um outro caso, a situação é diferente. Os Waiãpi, que vivem em várias aldeias no Amapá, na fronteira do Brasil e Guiana Francesa, expulsaram todos os invasores de suas terras, inclusive os garimpeiros, e hoje procuram meios alternativos de desenvolvimento para explorar os recursos minerais de suas terras e manter sua autonomia cultural.

Na sua abrangência, os vinte pesquisadores que trabalham neste projeto temático analisam o modo de vida, a língua, as organizações social, política e econômica, além da religião, da cosmologia – que dita a visão de mundo de cada povo – e as expressões artísticas e culturais de cada povo indígena. “Queremos analisar a criatividade e a reação dos índios em se articular com outros povos e mostrar como se desenvolve, na fronteira política, a construção de múltiplas fronteiras – nação, língua, ideologia e cultura”, destaca a antropóloga.

Os trabalhos de campo se realizam em sete bases: no Oiapoque, onde vivem os Galibi, Palikur e Karipuna; no oeste do Amapá, onde estão aldeias Waiãpi; na Guiana Francesa, onde se encontra o mesmo grupo indígena; na fronteira entre a Guiana Francesa e o Suriname, onde vive o povo Wayana; na região de divisa entre Pará e Amazonas, onde vivem os povos Wai-Wai e os Yanomamis; no Parque Indígena do Tumucumaque, no norte do Pará, onde vivem os índios Tiriyó e os Wayana; e em outra área do norte do Pará, onde vivem os Zo’é.

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