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As incertezas do novo ensino médio

Reforma busca tornar currículo mais atrativo, mas processo de implementação é marcado por desigualdades

Raquel de Freitas Campos (à esq.) com a instrutora Gabriele Gonçalves Silva na escola do Senai Armando de Arruda Pereira, em São Caetano do Sul: sucesso da formação profissionalizante depende da estrutura

Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP

Com a proposta de tornar a aprendizagem mais estimulante para os jovens e adequada às necessidades do mercado de trabalho, além de reduzir a evasão, um novo formato de ensino médio passou a vigorar para alunos ingressantes, no início deste ano, a partir das diretrizes da Lei n° 13.415, de 2017. Dentre as principais mudanças está o estabelecimento de um modelo de ensino organizado por áreas de conhecimento, e não mais por disciplinas, e a possibilidade de o jovem realizar, ao mesmo tempo, uma formação técnica ou profissionalizante. Estudo desenvolvido desde 2017 pela cientista política Gabriela Lotta, da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (EAESP-FGV), mostra que enquanto alguns estados estão aproveitando a reforma para iniciar mudanças abrangentes, como a expansão de escolas de tempo integral e a renovação de currículos, outros paralisaram processos de renovação em andamento há uma década, para se adaptar à nova legislação.

De acordo com o censo escolar da educação básica do Inep, em 2021 foram registrados 7,8 milhões de matrículas no ensino médio no país, de alunos com 15 a 17 anos, o que representa um aumento de 2,9% em comparação com 2020. Já levantamento de 2021 da ONG Todos pela Educação indica que o percentual de jovens de 15 a 17 anos que abandonaram a escola antes de concluir o ensino médio era de 7,1%, em 2019, passando para 4,4%, no segundo semestre de 2021. O número representa um total de 407 mil jovens nessa faixa etária que desiste de estudar, antes de finalizar a educação básica.

A Lei n° 13.415 determina que, das 3 mil horas da carga horária total do ensino médio, 1,8 mil horas são destinadas a um currículo de formação comum, enquanto para as outras 1,2 mil horas os estudantes podem escolher cursar disciplinas, conforme cinco áreas do conhecimento, ou itinerários formativos: matemáticas e suas tecnologias, linguagens e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional. Alguns estados, como São Paulo, criaram itinerários formativos extras, alinhados com as diretrizes dessas áreas principais. “Por não ter sido plenamente regulamentada pelos estados e por determinar mudanças não consensuais, a reforma gerou contextos de ambiguidades e conflitos”, analisa Lotta, da Eaesp-FGV, que desenvolve pesquisa longitudinal para estudar o processo de implementação da nova lei nos 26 estados e no Distrito Federal.

Marcelo Justo / FolhapressA realidade heterogênea das escolas brasileiras: professor dá aulas em comunidade indígena de São Pedro, no AmazonasMarcelo Justo / Folhapress

Artigo publicado em 2021 traz resultados parciais do trabalho, evidenciando que entre 2017 e 2019, quando a reforma começou a ser adotada, alguns estados já tinham experiências de renovação em andamento. Em outros, elas eram incipientes ou inexistentes. “Em estados com reformas em andamento e alinhadas com as diretrizes da nova lei, os impactos foram positivos e impulsionaram a reformulação dessa etapa do ensino, casos do Ceará e de Pernambuco, assim como entre aqueles sem medidas iniciadas, mas que dispunham de recursos, equipe e capacidade gerencial adequados”, relata Lotta. De acordo com o Inep, em 2021 o Ceará contava com 293 mil matrículas no ensino médio, incluindo escolas públicas e privadas, enquanto em Pernambuco o valor equivalente era de 312 mil. Segundo o IBGE, em 2019, a taxa de frequência escolar da população de 15 a 17 anos no ensino médio no Ceará foi superior a 69%, enquanto em Pernambuco esteve acima de 66%. Outros estados com experiências não alinhadas à nova lei tiveram de paralisar as iniciativas, enquanto aqueles em que há baixa capacidade de recursos e acumulam desigualdades e problemas estruturais, a reforma enfrenta mais dificuldades. “Essa situação tende a aumentar as desigualdades educacionais do país”, avalia. “Um ponto que merece mais atenção dos agentes públicos são as questões gerenciais. Mesmo os estados que avançaram em questões pedagógicas ainda patinam, por exemplo, para organizar a merenda no período integral e o transporte de alunos que farão o itinerário formativo em mais de uma instituição”, detalha. Conforme a regulamentação da lei adotada pelo estado, as escolas que não dispõem de professores e estrutura para oferecer determinados itinerários formativos podem estabelecer parcerias com outras, permitindo que seus alunos frequentem diferentes instituições.

Projeto finalizado em 2021 com apoio da FAPESP investigou a política educacional e a qualidade do ensino na rede estadual paulista, de 1995 até 2018, tendo como um de seus focos o novo ensino médio. Coordenadora do trabalho, a pedagoga Márcia Aparecida Jacomini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), conta que o estudo identificou que, entre 2007 e 2018, o ensino médio da rede estadual paulista registrou uma redução de mais de 176 mil matrículas. De acordo com ela, o período noturno foi o que registrou a maior queda, com uma diminuição de 43,6% nas matrículas. “Dentre outros fatores, a retração nas matrículas pode ser explicada pelo avanço no número de jovens entre 18 e 25 anos que optam por fazer o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos [Encceja]”, comenta. O Encceja é uma prova do governo federal que avalia as competências, habilidades e os saberes de jovens e adultos que não concluíram o ensino fundamental ou o ensino médio na idade adequada. No caso do ensino médio, essa faixa etária vai de 15 a 17 anos.

Davi Ribeiro / FolhapressTurma de alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), em São PauloDavi Ribeiro / Folhapress

Em relação ao novo ensino médio, uma das pesquisadoras do projeto, a socióloga Ana Paula Corti, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFSP), considera que a reforma desregulamentou aspectos da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) como o que estabelece a necessidade do atendimento de públicos específicos, caso dos jovens e adultos. “A única menção feita pela nova lei à EJA é autorizar que essa modalidade seja oferecida 80% de forma virtual, justamente para um segmento da população que envolve pessoas mais velhas e com escassa acessibilidade digital”, observa.

Ao olhar para o ensino médio de uma perspectiva histórica, a professora Dirce Zan, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), conta que a pressão social pela ampliação da escolaridade no Brasil se intensificou na década de 1990, contribuindo para o processo de expansão de matrículas no ensino médio na virada para os anos 2000. Zan é uma das coordenadoras da Pesquisa Estadual sobre o Ensino Médio, que desde 2018 acompanha a implementação da Lei n° 13.415 nas redes estaduais e federal em São Paulo. Um dos movimentos captados pelo estudo envolve as escolas que passaram a funcionar em tempo integral e a progressiva extinção de cursos noturnos. “Temos observado que aqueles que trabalham durante o dia e não podem estudar em período integral não apareceram no retorno presencial, no começo deste ano. Ou seja, estão abandonando o ambiente escolar”, conta Zan. “Para garantir a continuidade dos estudantes na ampliação do horário escolar, é preciso formular políticas de permanência, como bolsas de estudo e outras ações que evitem a necessidade do trabalho precoce”, aconselha.

Mais um ponto complexo diz respeito à escolha dos itinerários formativos. Ao recordar que os estados estão regulamentando a lei de formas distintas, o pesquisador de políticas educacionais Fernando Cássio, da Universidade Federal do ABC (UFABC), explica que, no estado de São Paulo, os alunos do ensino médio fazem 600 horas de itinerários formativos, além das 1,8 mil horas obrigatórias previstas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). “O estado tem um cardápio com 34 opções de itinerários formativos. Mas um terço das 3,2 mil escolas estaduais ofertam apenas duas possibilidades e cerca de 80% atuam com dois a quatro itinerários. Grande parte delas não dispõe de estrutura física, como laboratórios, e docentes com qualificação adequada. Instituições localizadas em regiões vulneráveis, como em áreas indígenas ou no sistema prisional, disponibilizam apenas um itinerário e o estudante não consegue fazer escolhas”, relata Cássio, que estuda os currículos de escolas públicas desde 2015. Em 2020, segundo o Inep, o estado de São Paulo contava com 1,4 milhão de matrículas no ensino médio, incluindo as redes pública e privada.

Zé Carlos Barretta / FolhapressEstudantes em frente à instituição pública paulista com pior desempenho no Exame Nacional do Ensino MédioZé Carlos Barretta / Folhapress

Cássio diz ainda que, em São Paulo, o itinerário que envolve formações técnicas contempla carga horária de 900 horas, o que não dá direito ao diploma de ensino profissionalizante, como ocorre nas Escolas Técnicas Estaduais (Etec) e nos institutos federais. Na perspectiva de Jacomini, da Unifesp, a reforma poderia tomar como modelo os institutos federais e as Etec, que oferecem qualificação técnica integrada ao ensino médio. “Um dos pressupostos da nova lei deveria ser a ampliação dessas redes”, comenta. Na edição de 2021 do Pisa para Escolas, avaliação internacional de estudantes realizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a média das Etec em leitura foi de 520, bastante superior à média nacional de 413, ultrapassando inclusive números médios de países como Estados Unidos, Reino Unido, Japão e Coreia do Sul.

Apesar de reconhecer os desafios da implementação, especialmente em relação às desigualdades do país, Ana Luiza Marino Kuller, coordenadora de educação do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac São Paulo), enxerga a iniciativa com bons olhos. “Organizar a formação por meio de áreas e itinerários formativos, e não por meio de disciplinas, é uma tentativa de evitar que o conhecimento se desconecte da vida do jovem”, defende. O Senac São Paulo iniciou a oferta de ensino médio em 2019, já adequado aos parâmetros da nova legislação. Ao concluir o curso, o jovem também recebe um diploma de ensino técnico, situação distinta de instituições da rede pública que atuam com formação profissional de curta duração, sem direito a uma certificação específica.

Almério Melquíades Araújo, coordenador dos Ensinos Médio e Técnico do Centro Paula Souza, que responde pelas Etec de São Paulo, avalia a questão de forma similar. “Para engajar o aluno, é preciso superar o formato tradicional de disciplinas e aulas expositivas e adotar um processo interativo, baseado em projetos.” O novo formato, porém, exige mais preparo dos docentes, observa. “Não adianta mudar o currículo das escolas e não qualificar os professores. As licenciaturas ainda funcionam no modelo tradicional, orientado por disciplinas”, finaliza. Segundo ele, o Centro Paula Souza periodicamente oferece atividades formativas ao seu corpo docente.

Os casos da França e da Alemanha

Além do Brasil, Portugal, Espanha e França são outros países que têm investido na reformulação do ensino médio, apoiados em diretrizes da OCDE e do Banco Mundial. A socióloga Débora Goulart, da Unifesp, pesquisa com apoio da FAPESP a reforma dos liceus franceses, que correspondem ao ensino médio no Brasil. Na França, há três tipos de liceus: os de formação geral, os tecnológicos e os profissionais. Os liceus de formação geral e os tecnológicos duram três anos e preparam o aluno para ingressar em uma faculdade. Já nos liceus profissionais, há duas formações. Uma de três anos que permite continuar os estudos em nível superior e uma formação curta, de dois anos, que confere uma formação técnica, que não possibilita a entrada em um curso superior. “Esses cursos permitem que o estudante saia direto do liceu para o mercado de trabalho, para atuar como marceneiro ou iluminador”, esclarece. Segundo Goulart, em 2018, a partir da reforma, os alunos dos liceus de formação geral e tecnológica passaram a indicar 10 opções de universidades onde querem estudar e que devem estar atreladas à escolha de disciplinas de aprofundamento feitas no liceu. “Depois da conclusão do liceu, os estudantes preparam um dossiê, que é avaliado durante a seleção de ingresso na universidade”, explica. Goulart também enxerga problemas na oferta dos itinerários, relatando que somente liceus grandes conseguem ofertar múltiplos caminhos, o que tem aumentado a desigualdade escolar.

Na Alemanha, país considerado referência na oferta de ensino técnico e profissionalizante, trabalhadores com formação profissional não acadêmica representam 64,4% do mercado de trabalho. No Brasil, são 8%. Além disso, 18,5% dos profissionais têm nível superior – no Brasil são 9,25%. Marcio Weichert, coordenador do Centro Alemão de Ciência e Inovação de São Paulo, explica que no país europeu as crianças, aos 10 anos, são direcionadas a diferentes escolas, conforme seu desempenho. Aquelas que estudam em instituições menos exigentes são preparadas para fazer educação profissional, enquanto outras com desempenho melhor são treinadas para buscar vagas em universidades. Segundo Weichert, no começo da carreira, pessoas que concluem o ensino técnico costumam receber quase o mesmo salário do que graduados em estágios iniciais da trajetória profissional. “No entanto, quem tem ensino superior apresenta mais possibilidades de ascensão”, compara.

Projetos
Política educacional na rede estadual paulista (1995 a 2018) (nº 18/09983-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Márcia Aparecida Jacomini (Unifesp); Investimento R$88.583,16.
A reforma do Liceu Francês (2017-2021) na perspectiva dos estudantes: flexibilização e empregabilidade (nº21/10659-6); Modalidade Bolsas no Exterior-Pesquisa; Pesquisadora responsável Débora Cristina Goulart (Unifesp); Investimento R$97.881,00.

Artigos científicos
LOTTA, G. S. et al. Efeito de mudança no contexto de implementação de uma política multinível: análise do caso da reforma do Ensino Médio no Brasil. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro 55 (2): p. 395-413, mar-abril, 2021.
GOULART, D. C. et al. O currículo paulista etapa Ensino Médio: educação pública, interesses empresariais e implicações. Pensata. v.10, n. 1. Jul, 2021.
CORTI, A. P. Política e significantes vazios: uma análise da reforma do ensino médio de 2017. Educação em revista. n. 35, 2019.

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