Os muriquis, os maiores macacos das Américas, candidatos a mascote das Olimpíadas do Rio, têm um comportamento sexual peculiar. No período de acasalamento, a maioria dos machos copula com todas as fêmeas férteis do bando, exceto as próprias mães. A antropóloga norte-americana Karen Strier identificou esse padrão sexual, incomum entre os primatas, nos anos 1980, quando começou a estudar os muriquis de uma área de mata atlântica em Minas Gerais. E uma pergunta sempre a inquietou: em meio a tanta liberdade sexual, quem seria o pai dos filhotes?
Só agora, três décadas mais tarde, Karen e colaboradores parecem ter encontrado a resposta. Nos bandos de muriquis não há um, mas vários pais – cada filhote, é claro, tem um único pai. Essa informação é importante porque pode orientar a preservação desse macaco brasileiro em risco de extinção.
Apresentado na edição de 22 de novembro na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), esse resultado não é tão óbvio quanto pode parecer. É que em muitas espécies de animais, macacos inclusive, é comum um único macho ser o pai de quase toda a prole.
Foi preciso aguardar o avanço dos testes genéticos, hoje capazes de analisar quantidades ínfimas de DNA extraído de sangue ou fezes, para verificar que os muriquis têm um padrão de paternidade distinto do de outros macacos.
Para executar o estudo, Karen selecionou 22 filhotes nascidos entre 2005 e 2007 e encarregou o biólogo Paulo Bomfim Chaves, doutorando na Universidade de Nova York, de coletar o material genético deles, de suas mães (21 fêmeas) e de seus possíveis pais (24 machos). Em seguida, com a ajuda de pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), eles cruzaram os dados genéticos com as informações de história de vida e hábitos sexuais desses macacos, que vivem na reserva Feliciano Miguel Abdala, no município de Caratinga, na região leste de Minas.
A análise mostrou que 12 dos 24 machos do bando haviam tido pelo menos um filho. O mais bem- -sucedido deles foi pai de apenas quatro filhotes ou 18% dos bebês. De acordo com a antropóloga norte-americana, esse padrão de paternidade é consequência da organização social dos muriquis, conhecidos por sua índole pacífica e por formarem uma sociedade sem disputa aparente de poder.
Em sociedades com hierarquia rígida, como a dos gorilas, o grandalhão do grupo – o macho alfa – costuma se impor pela força e pode ser pai de até 85% dos filhotes. Mesmo entre os bonobos, primos pacíficos dos chimpanzés, o número de filhos que um macho costuma ter é mais alto. O mais prolífico desses macacos, que não têm parceira fixa e copulam mes-mo quando as fêmeas não estão férteis, costuma ser pai de 30% da prole – quase o dobro da taxa dos muriquis.
Há tempos Karen e seus colaboradores até suspeitavam que não houvesse hegemonia da paternidade entre os muriquis. Mas faltavam dados que permitissem afirmar que os filhotes que nasciam sete meses depois do acasalamento – cada fêmea dá à luz apenas um bebê por vez – eram mesmo de pais diferentes. “Os dados genéticos confirmaram o que indicavam as observações comportamentais”, conta a antropóloga, pesquisadora da Universidade de Wisconsin.
Ainda que não se observasse competição explícita entre os muriquis, não era possível descartar a hipótese de que a disputa ocorresse de algum outro modo ou mesmo no nível celular – por exemplo, os espermatozoides de um determinado macho poderiam ser mais rápidos do que o dos outros. Também poderia haver outras formas de interação social que os pesquisadores não conseguiam registrar depois que os macacos se embrenhavam na floresta. O trabalho da PNAS não elimina por completo essas possibilidades, mas as torna muito remotas. Desse estudo, feito em parceria com o primatólogo Sérgio Mendes e a geneticista Valéria Fagundes, ambos da Ufes, e o antropólogo Anthony di Fiore, da Universidade do Texas, saíram ainda duas outras observações que podem auxiliar na preservação dos muriquis.
mapa fonte: pan-muriquis fotos 1 Mauricio Talebi / Unifesp-diadema 2 Carla de B. PossamaiA primeira é que, embora pratiquem o amor livre, os muriquis não copulam com as próprias mães – ao menos, não geram descendentes com elas. É uma constatação importante porque o cruzamento entre indivíduos aparentados diminui a diversidade genética da espécie e a torna mais vulnerável a doenças.
“Quando reanalisamos os dados comportamentais, vimos que esse resultado faz sentido”, conta Karen. Ela havia observado anos antes que em geral são as fêmeas que saem à procura de um novo bando quando atingem a puberdade. Os machos continuam na companhia das mães, no mesmo grupo em que vivem o pai, o avô e os tios paternos. “Não sabemos se as mães não permitem que os filhos tentem copular com elas ou se eles não as consideram atraentes”, conta Karen.
A segunda e mais intrigante constatação é que, embora não haja uma dominância clara de paternidade, certos machos são mais bem-sucedidos do que outros do ponto de vista reprodutivo. Alguns tiveram três ou quatro filhotes e outros, nenhum. Ao se questionarem sobre o motivo dessa diferença, os pesquisadores notaram que os machos pais de mais filhos eram aqueles que, depois de adultos, passavam mais tempo ao lado da mãe quando o bando estava reunido. “A proximidade da mãe parece beneficiar alguns machos, mas ainda não sabemos como nem por quê”, diz Karen.
É uma forma de influência bem distinta da que se vê, por exemplo, entre os bonobos. Esses macacos formam sociedades regidas por fêmeas nas quais as mães escolhem as parceiras dos filhos e os ajudam a enfrentar os outros machos do bando. Se comprovada, a influência materna pode indicar que as fêmeas de muriquis são matriarcas discretas e que os filhos aprendem a lidar com as outras fêmeas observando a mãe. Ou ainda que os filhos mais prolíficos se favoreçam da rede de contatos maternos para conquistar mais fêmeas. “Estamos começando a olhar para as interações entre mães e filhos adultos”, afirma Karen.
Quase tudo o que se sabe sobre o comportamento dos muriquis é conhecimento recente, acumulado nos últimos 30 anos, em boa parte impulsionado pelo trabalho de Karen, que foi parar em Caratinga em 1982 por indicação do orientador de seu doutorado na Universidade Harvard, o primatólogo Irven DeVore. Especialista em babuínos, ele soubera na época que em Caratinga havia sido achado um grupo de macacos que estavam quase extintos. Com o apoio dos primatólogos Célio Vale, então professor da Universidade Federal de Minas Gerais, e de Russell Mittermeier, da Conservation International, Karen iniciou o mais longo estudo de acompanhamento de muriquis.
Desde a primeira vez em que se embrenhou pelos 957 hectares de floresta da fazenda Montes Claros, em Caratinga, Karen vem ajudando a construir a biografia dos muriquis e a reorientar as ações de conservação do primata. “Antes desses estudos, não se conhecia quase nada sobre os muriquis”, diz Mendes.
Depois de implantar o estudo de longo prazo dos muriquis-do-norte (Brachyteles hypoxanthus), de pelagem amarelo-acinzentada e manchas rosadas na face, ela esteve no fim dos anos 1980 no Parque Estadual Carlos Botelho, em São Paulo, uma área contínua de mata atlântica 40 vezes maior que Caratinga. Ali conheceu os muriquis-do-sul (Brachytheles arachnoides), com pelos castanho-amarelados e face completamente negra.
Karen planejou então fazer no parque paulista um estudo semelhante ao que desenvolvia em Minas. O objetivo era comparar o modo de vida dos animais de uma área pequena, como Caratinga, com o dos que habitavam uma área florestal maior e mais bem conservada. “Ela foi visionária ao começar os estudos de acompanhamento de longo prazo dos muriquis”, comenta Mauricio Talebi, bioantropólogo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Diadema.
Talebi trabalhou com Karen no início dos anos 1990 e desde 1993 coordena os estudos em Carlos Botelho, no município de São Miguel Arcanjo, a 180 quilômetros da capital paulista. Ali vem investigando não apenas de que os muriquis se alimentam, mas, principalmente, por que comem o que comem e que estratégia usam para selecionar os alimentos.
Nos 20 anos em que vem seguindo os bichos, Talebi identificou hábitos distintos entre os muriquis mineiros e paulistas que não podem ser explicados apenas por pertencerem a espécies diferentes. Uma das diferenças é que os macacos de Carlos Botelho comem muito mais frutos e flores do que os da reserva de Caratinga, que se alimentam quase exclusivamente de folhas.
Durante seu doutorado na Universidade Cambrigde, na Inglaterra, Talebi concluiu que o fator que mais influencia a dieta dos muriquis é a disponibilidade de alimentos. Em Caratinga, os animais vivem em um fragmento pequeno de mata atlântica, em que as árvores perdem as folhas na estação seca e onde há menos frutos. Carlos Botelho, que integra a maior extensão contínua de mata atlântica do país, fica na serra de Paranapiacaba, onde a umidade é alta o ano todo e as árvores estão sempre verdes.
A dieta também varia de acordo com o gênero, verificou recentemente Talebi, em parceria com Phyllis Lee, da Universidade de Stirling, na Escócia. Mesmo em Carlos Botelho os machos comem mais folhas que as fêmeas, que preferem frutos e flores. Talebi atribui a diferença às necessidades nutricionais. As fêmeas, explica, precisam de muita energia e nutrientes para gerar os filhotes e produzir leite. Das flores, elas extraem fósforo, potássio e magnésio, e dos frutos, altos teores de açúcar. “As folhas têm muita proteína, mas em geral são de difícil digestão”, diz Talebi.
Ele e Rebbeca Coles suspeitam que o ambiente também influencia a forma como os muriquis buscam comida e o tempo que gastam em diferentes atividades. As condições ambientais também podem ter favorecido o surgimento de uma característica genética que Talebi, Peter Lucas e Nathaniel Dominy descobriram ser exclusiva de algumas fêmeas: a capacidade de enxergar cores – os machos e a maioria das fêmeas só veem tons de cinza. “A visão colorida poderia ajudar essas fêmeas a encontrar os alimentos melhores e a se reproduzirem mais”, diz Talebi.
“Esses trabalhos são fundamentais para a conservação dos muriquis”, afirma Leandro Jerusalinsky, chefe do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros. “A simples presença de pesquisadores nas áreas em que os macacos vivem já inibe a degradação das florestas e a caça, hábito cultural comum em muitas regiões brasileiras”, diz.
Apesar da relevância do trabalho iniciado por Karen, ela não foi a primeira a estudar os muriquis. Foi o engenheiro agrônomo capixaba Álvaro Aguirre, especialista em manejo de fauna que trabalhou no Ministério da Agricultura, quem trouxe nos anos 1960 os muriquis de volta para o mapa das 116 espécies de primatas do Brasil. Em suas andanças pelo país, Aguirre encontrou 32 populações, formadas por um total estimado entre 2.100 e 2.200 muriquis e distribuídas por sete estados brasileiros, do norte do Paraná ao sul da Bahia.
Quando os muriquis foram descritos, quase 150 anos antes, naturalistas franceses e alemães os incluíram no gênero Ateles, o mesmo do macaco-aranha. Étienne Geoffroy Saint-Hilaire chamou de Ateles arachnoides os macacos de pelagem clara, face negra e mão em forma de gancho que descreveu em 1806. Catorze anos depois o naturalista alemão Heinrich Kuhl classificou como sendo de outra espécie, Ateles hypoxanthus, os animais que se distinguiam dos anteriores por terem a face e os órgãos genitais pigmentados de rosa, além de um micropolegar, ausente no primeiro. Em 1823 outro alemão, Johann Baptiste von Spix, propôs que pertenciam a um novo gênero, Brachyteles, aceito até hoje.
Fonte Mauricio Talebi / Unifesp e rebbeca colesApesar do conhecimento acumulado desde os anos 1980 sobre o modo de vida dos muriquis, a situação das duas espécies não melhorou muito nos últimos 50 anos. Fabiano Rodrigues de Melo, ecó–logo da Universidade Federal de Goiás, chefia um dos grupos que trabalham no recenseamento dos muriquis em Minas e na Bahia e estima que existam no máximo 2.400 macacos vivendo na natureza. Não é muito mais do que Aguirre havia contabilizado. “O número total de animais permaneceu praticamente constante”, diz Melo. “O preocupante é que o número de populações está diminuindo.”
Nas matas mineiras e baianas, Melo até identificou duas populações que não haviam sido descritas por Aguirre. Mas também não encontrou mais muriquis onde antes se sabia que existiam, como na região de Ilhéus, na Bahia. Hoje se conhecem apenas 12 populações de muriquis-do-norte, que, calcula-se, somam menos de mil indivíduos. Talebi, que faz o levantamento dos muriquis-do-sul, estima haver 15 populações dessa espécie, com 1.500 macacos. Ainda que se suspeite da existência de mais populações, um dos problemas, segundo Melo, é que várias delas são pequenas, formadas por menos de meia dúzia de animais, o que pode tornar inviável que se mantenham por muito tempo sem ações de conservação.
A proteção dos muriquis ganhou em 2010 o respaldo de legislação federal. Uma portaria do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade aprovou o Plano Nacional para a Conservação dos Muriquis (PAN Muriquis). O plano, o primeiro em nível nacional para a proteção de um primata, determina 10 metas para a proteção das duas espécies desses macacos. O objetivo é reduzir até 2020 o risco de extinção do muriqui-do-norte de criticamente em perigo para em perigo, e o do muriqui-do-sul de em perigo para vulnerável. “A preservação dos muriquis deixou de ser apenas sonho de pesquisador e se tornou uma política de estado”, diz Talebi, um dos idealizadores do PAN-Muriquis.
Para que o plano não fique no papel, diz Jerusalinsky, um dos coautores do projeto de conservação e coordenador do PAN Muriquis, será preciso que as ações consigam envolver, além de pesquisadores e ambientalistas, os proprietários de terra e os moradores das regiões onde vivem os muriquis. “Muitas populações dessas espécies estão em unidades de conservação e, em tese, estão mais protegidas”, diz. “Mas várias outras se encontram em propriedades particulares, que podem perder área de vegetação nativa caso algumas das alterações propostas para o código florestal sejam aprovadas.”
Uma estratégia que se mostrou interessante e pode complementar a demarcação de áreas de preservação é a transferência de fêmeas que estão para entrar na idade reprodutiva para outros bandos. Em 2005, a equipe de Sérgio Mendes capturou Renata, fêmea que vivia em um trecho pequeno de floresta em Santa Maria de Jeribá, Espírito Santo, e estava entrando na puberdade, prestes a abandonar seu grupo. Os pesquisadores a levaram para outra mata, onde havia outro bando. Após três anos, Renata teve seu primeiro filhote, a fêmea Rubi, e em 2010 o segundo, Régia. “O nascimento desses filhotes comprova que a estratégia funciona”, diz Mendes. “Se tivéssemos tentado 30 anos atrás provavelmente não teria dado certo, porque a tendência seria de transferir um macho jovem, que, em outros primatas, é o indivíduo que costuma migrar”, conta.
Em Minas Gerais, Fabiano Melo repetiu o teste em 2006 com a fêmea Eduarda, que também já teve dois filhos. No dia 30 de novembro, Melo partiu com uma equipe para o município de Simonésia, próximo à divisa de Minas Gerais com o Rio de Janeiro, onde pretendiam capturar uma fêmea de muriqui que se encontra isolada em uma área de floresta muito pequena. A intenção é levá-la para o zoológico de Belo Horizonte, onde deve fazer companhia a Zidane, um macho que, assim como o famigerado atacante da seleção francesa, deu um baile nos pesquisadores. Se tudo correr bem, essa será a primeira colônia de muriqui-do-norte em cativeiro, essencial para um dia, quem sabe, fornecer novos exemplares para a natureza.
Artigos científicos
STRIER, K. et al. Low paternity skew and the influence of maternal kin in an egalitarian, patrilocal primate. PNAS. v. 108, p. 18. 915-19. 22 nov. 2011.
COLE, R.C. et al. Fission–Fusion Dynamics in Southern Muriquis (Brachyteles arachnoides) in Continuous Brazilian Atlantic Forest. International Journal of Primatology. No prelo.
TALEBI, M.G.; LEE, P.C. Activity Patterns of Southern Muriquis (Brachyteles arachnoides) in the last continuous remnant of Brazilian Atlantic Forest. International Journal of Primatology. v. 31, p. 571-83. 2010.