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Répteis

As patas da serpente

Fóssil encontrado na Argentina fortalece a hipótese sobre a origem terrestre das cobras

JORGE GONZALEZA Najash rionegrina: reacendendo um debate que começou no século 19JORGE GONZALEZ

“Minha intuição diz que a mais antiga é uma espécie terrestre, daquelas que chamamos de fossorial, pois passa a maior parte do tempo escondida debaixo de pedras ou rastejando por túneis.” Foi com essa suspeita que Hussam Zaher, pesquisador do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, encerrou a entrevista concedida a esta revista em julho de 2002. Zaher falava sobre a origem das serpentes. Naquela época, o debate sobre o tema era intenso e acalorado. A disputa, travada por meio de artigos científicos, colocava duas equipes e interpretações em pólos opostos.

O canadense Michael Caldwell e o australiano Michael Lee garantiam: as cobras haviam surgido em ambiente marinho. Zaher torcia o nariz e contestava: mesmo em tempos remotos, eram animais que viviam em terra firme. Nos quatro anos seguintes poucas novidades surgiram e a discussão esfriou, embora os dois lados não arredassem pé de seus argumentos. Agora, em um artigo publicado no mês passado na Nature, Zaher descreve um fóssil encontrado em 2002 na província de Rio Negro, sul da Argentina, que reacende a polêmica e fortalece a suspeita da origem terrestre das cobras. Trata-se de um animal com patas, de 1 metro de comprimento, que viveu há 90 milhões de anos. “É a serpente mais primitiva que conhecemos”, afirma Zaher. “Ela tem características de uma espécie primitiva e fossorial e foi retirada de uma área de sedimentos continentais. São elementos que confirmam a origem terrestre e descartam o ambiente marinho.”

O fóssil, em ótimo estado de conservação e quase completo, foi descoberto pela equipe do paleontólogo argentino Sebastián Apesteguía, do Museu Argentino de Ciências Naturais Bernardino Rivadavia, que imediatamente convidou Zaher a participar da descrição do animal. O trabalho começou na Argentina e terminou no Brasil. Atentos aos mínimos detalhes e analisando cada milímetro de dezenas de minúsculos ossos, os pesquisadores não demoraram a encontrar o segredo guardado pela nova espécie. A serpente apresenta, de forma evidente e definida, duas vértebras sacrais — localizadas na região da pélvis do animal, são as responsáveis pela fixação e sustentação das patas posteriores, que têm cerca de 20 milímetros. “Essa é uma característica inusitada, que não existe em nenhuma outra das espécies atuais nem nas serpentes com patas descritas até então”, diz ele. “Essa é a mais primitiva das serpentes já descobertas.” Há evidências de que a musculatura das patas seria bastante desenvolvida, o que indica que esses órgãos seriam usados de forma intensa e constante, auxiliando, por exemplo, na locomoção.

A análise da região posterior do crânio revela uma mandíbula curta, que limitaria os movimentos e indica a incapacidade de ingerir grandes presas. “Nesse sentido, guarda semelhanças com as Aniloideas e da cobra fóssil Dinilysia, dois grupos que estão próximos da base do ramo evolutivo das serpentes”, compara Zaher. Com escamas amarronzadas e anéis em tom quase negro em uma reconstituição artística, a mãe de todas as serpentes foi chamada de Najash rionegrina. O primeiro nome faz referência ao animal bíblico que teria habitado o Jardim do Éden e seduzido Adão e Eva; o segundo homenageia a região onde o fóssil foi encontrado.

A cobra de Israel
A polêmica sobre a origem das serpentes remonta ao século 19, quando o paleontólogo norte-americano Edward Drinker Cope apresentou, pela primeira vez, a idéia de que esses animais teriam surgido em ambiente marinho e seriam os sucessores dos mosassauros, grandes lagartos já extintos, que também habitavam os mares. Essa tese foi retomada com grande repercussão em 1997, quando Caldwell e Lee publicaram na Nature um artigo onde descreviam a Pachyrhachis problematicus, uma serpente com patas posteriores e cerca de 95 milhões de anos, encontrada no sítio arqueológico de Ein Yabrud, em Israel— área formada por sedimentos marinhos. Os dois pesquisadores garantiam: era o elo perdido entre os mosassauros e as atuais serpentes. Ao ler o artigo, Zaher não se deu por convencido. “Notei uma série de imprecisões”, lembra.

Uma resposta mais consistente só pôde ser apresentada dois anos depois, quando o brasileiro, em parceria com Olivier Rieppel, curador de fósseis do Field Museum de Chicago, Estados Unidos, teve acesso a uma cópia fiel de um outro fóssil de cobra com patas — que mais tarde seria chamada de Haasiophis terrasanctus —, encontrado na mesma região de Israel. A descrição do animal, publicada pela Science em 2000, mostrava, no crânio, dentição especializada no céu da boca e mobilidade da mandíbula. Para Zaher, essas são características de um grupo de cobras atuais, as macrostomatas, que incluem a jibóia (Boa constrictor) e a cascavel (Crotalus durissus). “Mostramos que tanto a Pachyrhachis quanto a Haasiophis não poderiam ser consideradas as cobras mais primitivas conhecidas, na base da árvore evolutiva das serpentes, pois estavam muito mais próximas das macrostomatas, que formam uma linhagem mais moderna de serpentes”, diz. “Nas duas espécies, além de as patas serem acessórias e não funcionais, as vértebras sacrais já estão incorporadas ao tórax, outra evidência de evolução mais recente.”

A descoberta e descrição da Najash representam, ao menos momentaneamente, a solução do embate científico. A mãe das serpentes junta-se a uma série de outros ancestrais anunciados recentemente: no início de abril, Tiktaalik roseae, um peixe com patas descoberto por paleontólogos norte-americanos em uma ilha do Canadá, tornou-se conhecido do grande público. Em 2003, pesquisadores chineses já haviam encontrado fósseis de dinossauros com asas, que podem corresponder aos parentes mais antigos das aves atuais. Segundo Zaher, o esforço dos paleontólogos e o conhecimento mais detalhado de bacias sedimentares argentinas, chinesas e canadenses são alguns dos principais responsáveis por alimentar o debate sobre a origem dos grandes grupos de animais, ajudando a preencher lacunas e a construir de forma mais precisa a história das linhagens no tempo. Zaher sabe que a descrição da serpente mais primitiva conhecida até agora reacende o antigo debate. “Estamos aguardando as reações.”

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