A primeira Pesquisa FAPESP de 2009 talvez devesse ter se impregnado do cheiro delicioso dos jasmins. Ou do cheiro delicado e inesquecível dos manacás. Ou seria mais apropriado, quem sabe, trazer às páginas inaugurais do novo ano o cheiro das rosas – daquelas que ainda conservam um perfume sutil, depois de tantas transformações nas remotas e singelas rosas originais, as rosas selvagens, introduzidas no cultivo pelo melhoramento genético e outras técnicas de transgenia, aplicadas há muito tempo para lhes dotar de maior resistência, menos espinhos e beleza esplêndida. É certo que as tecnologias de impressão hoje permitem embeber as páginas de uma revista de qualquer aroma que se deseje. Ou quase. Entretanto, a impressão da revista ficaria muito mais cara e dificilmente haveria um consenso sobre a adequação do cheiro que escolhêssemos ao verdadeiro espírito de Pesquisa FAPESP. Assim, melhor deixar à liberdade e à imaginação de cada leitor a escolha dos cheiros que lhe virão da memória enquanto estiver lendo a reportagem de capa desta edição que trata de um valioso – e inspirador – trabalho de decifração de uma espécie de código dos cheiros, digamos assim.
Em termos bem sintéticos, a pesquisa em questão levou a uma nova compreensão da interação entre as moléculas de odor e os neurônios localizados no nariz, encarregados de mandar informações ao cérebro – o real responsável por sua interpretação e por distinguir, com maior ou menor acuidade, um entre milhares de cheiros que integram o repertório olfativo humano. Há quem diga que podemos reconhecer 10 mil diferentes cheiros e há quem aposte que esse número atinge a altura estratosférica dos 400 mil, ninguém tem um número certo. Mas não importa, a conclusão de fato importante do estudo coordenado pela bioquímica Bettina Malnic, da USP, relatado em reportagem da editora assistente de ciência, Maria Guimarães, a partir da página 16, é que o sistema nervoso reconhece cada molécula de cheiro, não por um receptor, mas pelo conjunto de receptores específicos em que ela se encaixa na superfície dos neurônios do fundo do nariz. É um passo e tanto para decifrar um código instigante.
Aliás, por um acaso instigante, justamente nesta edição que tem por tema de capa uma pesquisa sobre cheiros, Marcel Proust é personagem de uma das reportagens da seção de humanidades, que detalha a participação brasileira em um estudo internacional sobre o processo da escrita do famoso francês no Em busca do tempo perdido. Associação indelével, é hoje impossível ligar cheiros e literatura sem pensar imediatamente em Proust, em No caminho de Swann e nas madeleines, um nome atravessado pelo perfume doce e afetivo que ativa o fluxo intenso da memória do narrador/personagem. É o cheiro que traz um clima particular, um retalho da memória em sua integridade, cada vida em sua dinâmica singular. Curioso é que na reportagem do editor Carlos Haag, a partir da página 98, uma citação do narrador de O caminho de Guermantes remete ao Brasil e, indiretamente, aos cheiros: “Subitamente lembrei-me: aquele mesmo olhar eu já vira nos olhos de um médico brasileiro que pretendeu curar minhas crises de asma com inalações, absurdas, de essência de plantas”. Seria um médico cearense, especialista em botânica médica, que tratou do jovem Proust em Paris, e vale a pena conferir mais detalhes na reportagem em questão.
Mas, voltando à ciência, os neurônios se mostram insistentes e recorrentes nesta edição. E nos domínios do jornalismo e da divulgação científicos é sempre bom lhes conceder espaço quando merecem, dado o fascínio que todas as intrincadas questões propostas pelo funcionamento do cérebro, o humano em particular, despertam – e o fascínio ajuda a construir pontes sólidas para a relação ciência/sociedade. Aqui se trata de um belo achado, relatado a partir da página 40 pelo editor de ciência, Ricardo Zorzetto, sobre a interação de analgésicos e anti-inflamatórios com os neurônios nociceptivos, que inervam praticamente o corpo todo e funcionam como a porta de entrada da dor. Ao constatarem que determinados compostos capazes de combater direta ou indiretamente a dor podem percorrer relativamente grandes distâncias, sem perder a eficácia, no interior desses neurônios – que no corpo humano podem ultrapassar um metro de comprimento –, o conhecido pesquisador Sérgio Henrique Ferreira e a equipe de Berenice Lorenzetti avançaram em ciência básica e ainda começaram a abrir caminho para novas terapias contra a dor.
Lidamos com muitos sentidos humanos nesta edição. E chegamos na audição pela editoria de tecnologia, mais precisamente com a reportagem elaborada pelo jornalista Yuri Vasconcelos (página 80) sobre um projeto liderado pela Embraer para reduzir os ruídos produzidos pelos aviões. Nossos ouvidos, dentro e fora dos voos e, neste caso, especialmente os de quem mora nos arredores dos aeroportos, penhorados irão agradecer a esse esforço. O silêncio às vezes é pura música.
A todos os nossos leitores, desejamos um belo 2009, leve e intensamente criativo.
PS – A partir desta edição, Pesquisa FAPESP passa a adotar o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Republicar