Entender as transformações que a universidade contemporânea vem passando nas últimas décadas compõe um programa intelectual de grande envergadura. Estar à frente de uma grande universidade de pesquisa constitui um desafio de outra natureza, mas de igual magnitude. É raro encontrar numa mesma pessoa as competências para alcançar sucesso nessas duas empreitadas. A acuidade intelectual necessária para entender as sutis mudanças por que passa a universidade contemporânea e a energia e competência para conduzir com sucesso uma instituição do porte da Universidade Estadual de Campinas durante alguns de seus momentos mais críticos: o enfrentamento da crise de financiamento vivida pelas universidades paulistas desde 2015 e o estresse trazido pela pandemia. Pois esse é o perfil do físico Marcelo Knobel, professor e ex-reitor da Unicamp.
O livro Reflexões sobre educação superior traz um resumo de suas análises, ao longo de mais de uma década, sobre os grandes desafios que se colocam para a universidade pública no Brasil. Traz também ecos de sua experiência como reitor (2017-2021) dessa que é uma das mais importantes universidades do Brasil. São artigos, manifestos, discursos e análises – cobrindo diferentes aspectos e questões do ensino superior como um todo e das universidades públicas em particular.
A obra aborda diferentes temas, todos caros a quem tem compromisso com a universidade: os dilemas do financiamento público, as transformações que as políticas de ação afirmativa trouxeram, as transformações por que têm passado a pesquisa e a pós-graduação, as vicissitudes da carreira acadêmica etc. Dentre esses, destaco um tema que me parece apontar para um dos desafios centrais para a universidade pública brasileira: o acesso. Em diferentes partes, o livro aborda a discussão – abafada em nossa literatura – acerca dos efeitos regressivos que nosso modelo de seleção de acesso impõe, não apenas às próprias políticas de ação afirmativa, mas ao ensino médio. Em suas palavras, com a onipresença dos exames de acesso, o ensino médio acaba se convertendo num “longo curso preparatório para uma universidade”. Em um país onde as matrículas no ensino superior alcançam bem menos do que 30% dos jovens entre 18 e 22 anos, esse modelo é simplesmente perverso. Nesse sentido, chama a atenção o rico debate sobre a experiência da Unicamp com uma política de diversificação dos caminhos de ingresso. Cito apenas as mais inovadoras: o “vestibular indígena”, as “vagas olímpicas” e a experiência do Programa de Formação Interdisciplinar Superior (ProFIS). Essas experiências mostram que é possível, com alguma ousadia, desmontar o mito da onipresença do vestibular (ou sua encarnação atual, o Enem) como mecanismo de seleção de novos alunos.
Outra discussão relevante para nossa experiência pós-pandemia é a força do conservadorismo no ensino. A mudança tecnológica pode ter substituído o quadro-negro pelo PowerPoint, mas, no fundo, continuamos aferrados ao velho modelo, onde um fala e os demais escutam, com graus variados de atenção. Será que, com o esforço para apagar a memória da pandemia, não estamos, de fato, anulando a curva de aprendizagem que tivemos com modelos diferentes de ensino? Não seria o caso de avaliar e consolidar nossa experiência recente e salvar aquilo que foi positivo? Essas são questões que me vieram à mente ao ler o capítulo dedicado a esse problema.
Enfim, essas são amostras que permitem ao leitor vislumbrar o conteúdo do livro: uma coletânea de artigos que abordam temas centrais para nossa educação superior. Alguns trabalhos foram produzidos no calor da hora, no debate dentro da política universitária, outros com o distanciamento analítico de um artigo acadêmico. Cada um conta com um comentário que explica o seu contexto e atualiza o tema. Em todos eles, transpira a urgência da mudança e a responsabilidade das escolhas que se colocam para os dirigentes das universidades públicas do Brasil. Termino aqui fazendo referência às palavras que encerram a obra: “O mundo se transforma de maneira avassaladora, e as universidades têm que acompanhar essas mudanças ou ficarão obsoletas”. Elas não podem ser uma bolha.
Elizabeth Balbachevsky é professora no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e autora de A profissão acadêmica no Brasil: As múltiplas facetas de nosso sistema de ensino superior (Editora Funadesp, 1999).
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