Numa curiosa ironia, no ano em que se celebra o feito centenário do brasileiro que primeiro conseguiu, a custo, arrancar um avião do solo, os aeroportos nacionais estão coalhados de aeronaves as mais modernas, que sobem aos céus com grande facilidade, mas estão presas ao chão por problemas econômicos. A questão chegou mesmo a tocar os brios pátrios. O próprio presidente Lula, que se recusa a “colocar dinheiro público lá”, reconheceu que a empresa era “uma paixão nacional”. A menção do jingle natalino “Estrela brasileira no céu azul/ Iluminando de Norte a Sul”, que se encerrava com o famoso “Varig, Varig, Varig” arranca, hoje, lágrimas.
O que teria levado a primeira empresa aérea brasileira, que chegou a figurar entre as 20 maiores companhias do mundo, com 87 aviões, 40 mil funcionários e 44 destinos no exterior ao estado atual de penúria, brigando para manter seus balcões de atendimento nos aeroportos? “Já se cogitou mesmo estatizar a empresa para, depois, privatizá-la. Mas a Varig já vem sendo gerida na prática como uma estatal, de forma pouco transparente: por uma fundação que, na prática, atua como uma autarquia, com um processo lento de decisões, uma estrutura inchada de pessoal e mostrando, há anos, aparente despreocupação com resultados econômicos”, avalia o engenheiro de transportes da Poli-USP Antonio Henriques de Araújo. De 2000 até hoje, a companhia já teve nove presidentes, nenhum com autonomia para tomar decisões efetivas. “A Varig fragmentou as linhas de comando dentro da empresa e para comprar, seja uma caneta, seja uma turbina, era preciso o aval de um sem-número de funcionários”, observa o pesquisador. No final de 2003, segundo Araújo, o número de funcionários por aeronave da companhia era mais do que o dobro da TAM ou da Gol, enquanto a produtividade total dos fatores da Varig era 86% da produtividade da TAM e 95% da VASP. Cada assento em um vôo costumava custar 30% a mais do que na concorrência. Varig, Varig, Varig…
Ainda assim, era vista como a empresa brasileira por excelência, embora tivesse nascido, em 1927, por obra de um imigrante alemão, Otto Meyer, que, em Porto Alegre, ganhou isenção fiscal para tocar o seu negócio aéreo pioneiro. Meyer juntou-se com um consórcio alemão, trouxe o avião Atlântico para o país e reuniu 550 outros filhos de imigrantes para constituir a primeira empresa de aviação comercial brasileira, a Varig. Já em 1931 mostrou sua faceta mais característica: a relação com o poder político. Em crise, recebeu apoio intenso do governo gaúcho, iniciando a afirmação da empresa como “instituição” a ser preservada. Em 1944, com a guerra, o tedesco Meyer cede o posto ao brasileiro Ruben Berta. Então, a Varig dividia o espaço aéreo interno com a Vasp, empresa criada em 1933 por empresários paulistas e estatizada pelo estado de São Paulo, e com a Panair, nome abrasileirado que foi impingido ao ramo nacional da Pan American Airlines.
Simbolo
“Mas a Varig foi hábil no sentido de construir junto à sociedade brasileira uma imagem de empresa ligada aos interesses do país, um símbolo de modernidade, desenvolvimento e integração nacional, das regiões entre si, e do Brasil com o mundo”, observa Cristiano Monteiro, da Universidade Cândido Mendes, autor da tese de doutorado A dinâmica política das reformas para o mercado na aviação comercial brasileira.
O pesquisador revela o trabalho de Berta em manter sempre em funcionamento a relação estreita do poder, pautada pelo clientelismo. “O Berta ajudou muito na campanha e eu gostaria que você olhasse com simpatia as pretensões da Varig, atendendo-a com boa vontade”: foi nesse tom casual que Vargas pressionou seu ministro da Aeronáutica, Nero Moura, a ceder as rotas da América do Sul para a jovem companhia. Todos os presidentes, até FHC no seu segundo mandato, foram transportados pela Varig. Amigo de Goulart e Brizola, Berta não pensou duas vezes em se unir aos militares que tomavam o poder em 1964. Quando Costa e Silva decretou, por razões ainda obscuras, a falência da Panair, a Varig foi “convocada” a assumir as rotas internacionais dela, tornando-se a número um do país. “Para além de questões de eficiência e competitividade, a construção de empresa do país precisava sempre ser renovada simbolicamente”, nota Monteiro. Daí o transporte das seleções de futebol, os favores aos políticos: em 1970 implementou-se uma linha entre Brasília e Porto Alegre, não por acaso com a presença do gaúcho Médici e, durante o governo Collor, a criação de uma ligação entre Maceió, terra do ex-presidente, e o Distrito Federal.
“Esse é o reconhecimento extensivo ao nosso governo que, desde a salvadora Revolução de 1964, achava-se voltado para a inadiável obra de criar, no Brasil, condições para o desenvolvimento econômico acelerado”, rezava o Relatório Anual de 1971 da companhia. Para o “Brasil Grande”, uma “Varig Grande”. “Se durante o período pré-64 vislumbrava-se a possibilidade de equiparar o transporte terrestre ao aéreo em termos de custos e propunha-se a oferecer preços populares, o paradigma da Varig pós-64 é outro”, revela Monteiro. Os vôos feitos para Nova York tinham um Boeing 707 cuja metade de sua cabine era dedicada à primeira classe. O perfil do usuário desejável pela empresa era justamente o empresário rico, capaz de pagar bem por um serviço de luxo. Na relação com o poder, e isso não era privilégio da Varig apenas, incluía uma ligação direta entre as companhias privadas e o Ministério da Aeronáutica, baseada na Doutrina do Poder Aéreo Unificado.
Economicamente, a aviação flutuava baseada em dois pilares concedidos pelo elo com a Aeronáutica: a “realidade tarifária” (ou seja, os passageiros deveriam arcar com os custos do transporte, elitizando o setor) e a “competição controlada”, que evitava a superposição de rotas e horários. Nesse contexto, a Varig saiu-se melhor do que as outras, pois ganhou o monopólio das linhas internacionais, prerrogativa perdida apenas no governo Collor. Com o anteparo militar, nem sequer tinham que se preocupar com as pressões trabalhistas, pois os líderes sindicais eram perseguidos pelo novo regime. Com a chegada da redemocratização, o mundo ideal da aviação comercial brasileira viu-se jogado na realidade. Aos poucos: num primeiro momento, as autoridades aeronáuticas viram-se esvaziadas de poder diante de seus colegas econômicos, para os quais o controle da inflação era uma prioridade e incluía um controle rígido sobre as tarifas aéreas. As turbulências maiores estavam por vir com a chegada ao Estado brasileiro das nuvens neoliberais, que preconizavam o fechamento dos mecanismos de interlocução entre atores estatais e não-estatais, fortalecendo um estilo “tecnocrático” de gestão da economia, como observa Monteiro. O primeiro impacto foi a privatização da Vasp e a entrada em campo de Wagner Canhedo, com um estilo agressivo de concorrência que assustou as concorrentes. Um ano depois, o empresário se veria enredado numa CPI, acusado de participar de um esquema de favorecimento com PC Farias.
Temia-se mesmo que se repetisse, no Brasil, a desregulamentação das companhias aéreas, efetivada nos Estados Unidos durante o governo Reagan. “No governo Collor, havia a retórica pró-mercado, que admitia o aumento da competição, mas, do ponto de vista prático, mantinha posturas conservadoras”, lembra Monteiro. “Mas no primeiro mandato de FHC prevaleceu uma versão ortodoxa do estilo tecnocrático de gestão, não havendo espaço para mecanismos políticos formais de mediação entre agentes econômicos, sindicatos e Estado. Isso, infelizmente, num momento em que as empresas aéreas amadureciam e se esforçaram em criar vínculos fortes com seus trabalhadores, após anos de descaso”, nota o pesquisador. Monteiro lembra que o setor foi objeto de pressão crescente do Executivo para diminuir suas tarifas sob pena de se abrir o mercado doméstico para empresas estrangeiras. Na “guerra de tarifas” houve benefícios: um aumento de 20% no fluxo de passageiros. “Mas eles duraram pouco, pois, a partir de 1999, como fim da paridade entre o real e o dólar, o setor entrou em crise profunda.” Após décadas de relação com o poder, a Varig acreditava nele incondicionalmente.
“A desvalorização da moeda afetou as finanças das empresas brasileiras e as receitas operacionais obtidas no período tiveram como contrapartida um aumento das despesas financeiras, gerando grandes prejuízos, já que recebiam em real, mas tinham dívidas (de leasing, juros de financiamento, pagamento de aviões e peças) em dólar”, explica Araújo. Numa empresa bem administrada isso é um grande problema. O que se pode pensar no caso do “elefante branco” em que se transformara a Fundação Ruben Berta, inchada e ineficiente? “A Varig, nesse período, teve um crescimento de despesas financeiras de 642,2% diante de um aumento da receita operacional de 107,8% e dos custos operacionais de 139,2%.” Ainda assim, a empresa seguiu montada num imaginário de crescimento, no espírito da “Varig grande”. Mesmo sem a “realidade tarifária”, política rompida com o congelamento de preços do Plano Cruzado, a empresa “tem que entrar com seu necessário gigantismo, que lhe exige crescimento constante, marca de líder latino-americana”, como dizia um relatório interno da companhia. Novas aeronaves foram compradas, mesmo quando se tirou da empresa o monopólio das linhas internacionais. “A estrutura da empresa cresceu muito para um aumento de demanda que não se concretizou”, avalia Monteiro.
Smiles
O discurso muda e começam demissões e cortes. “Na busca de uma nova identidade, a Varig ainda preserva o lema da “empresa a serviço do país”, assumindo o lucro dos acionistas como prioridade em relação aos demais compromissos ufanistas com a nação, que ficam em último lugar.” Mas a Nova Varig, integrada à Star Alliance e com um programa inovador de milhagens (o Smiles), embora tente se manter na linha de empresa global ligada ao mercado, não consegue manter os pés no chão e continua a comprar novos aviões. Foram 39 entre 1997 e 1998, um investimento de US$ 2,7 bilhões, pouco antes da desvalorização drástica do real, que trouxe, de quebra, a diminuição da procura por viagens internacionais e a redução dos descontos nos vôos domésticos e redução geral do número de passageiros. “Curiosamente, os produtos voltados ao público de maior poder aquisitivo permaneceram, indo de encontro à lógica que, desde a década de 1970, animara a política de desregulamentação americana, qual seja, a popularização do transporte aéreo”, avalia Monteiro. Nesse ínterim, chegam concorrentes que pensam com realismo, como a TAM, que optou pelas linhas domésticas, e, mais recentemente, a Gol. “Se persistir a situação atual de crise, pode-se prever, no curto prazo, a falência das companhias tradicionais brasileiras e deverão sobreviver apenas as de baixo custo, com o perfil da Gol.”
Para ele, seria melhor empregar os US$ 2,5 bilhões, que muitos exigem que o governo injete na Varig, na recuperação da malha viária e na eliminação dos gargalos portuários. “A solução para a empresa passa por soluções de mercado e por uma reestruturação gerencial e operacional que possibilite a geração de lucros que possam ser reaplicados em programas de aumento de produtividade e eficiência. Uma coisa é certa: quem deve pagar por isso é a empresa e seus acionistas e não, mais uma vez, o contribuinte brasileiro.” Sérgio Lazzarini, coordenador do Centro de Pesquisas em Estratégia do Instituto Brasileiro de Mercados de Capitais (Ibmec), concorda com Araújo. “Não há nada de estratégico no setor aéreo. Se uma rota é lucrativa, não há dúvida de que haverá gente interessada em investir no setor. Grandes empresas estrangeiras têm buscado oportunidades no Brasil, mas existem restrições para estrangeiros explorarem conexões e rotas domésticas.” Heloísa Pires, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lembra que somos um país continental com renda per capita baixa. “Dos 105 vôos do acordo entre Brasil e EUA, eles usam 93% da sua cota e nós, 47%. Não falta passageiro, mas avião. São empregos para outros países em prejuízo dos brasileiros.” Se a praça é do povo, o céu precisa voltar a ser dos aviões.
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