Pesquisadores de Brasília encontraram no sangue matéria-prima para encapsular moléculas com uso potencial contra cânceres, fungos e bactérias em futuras aplicações terapêuticas. Das hemácias, eles obtiveram fosfolipídeos, uma espécie de gordura empregada na fabricação de lipossomos – nanoestrutura semelhante a pequenas cápsulas esféricas, utilizada para transportar fármacos e cosméticos para regiões específicas do corpo. Ainda a partir das hemácias, mais especificamente da proteína hemoglobina encontrada nos glóbulos vermelhos, também conhecidos como eritrócitos, eles extraíram peptídeos (fragmentos de proteína) com atividades farmacológicas. “Proteínas como a hemoglobina possuem inúmeros peptídeos internos à sua estrutura que podem apresentar bioatividade distinta daquela da proteína original”, explica Luciano Paulino da Silva, coordenador do grupo de Nanobiotecnologia da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. “Desde a década de 1980 existem relatos na literatura científica de que fragmentos de proteínas contêm atividades biológicas”, relata. “Mas, pelas pesquisas que fizemos, esses fragmentos ainda não haviam sido aplicados na forma de nanossistemas como constituintes de lipossomos.”
A pesquisa, conduzida em parceria com a Embrapa e a Universidade de Brasília (UnB), resultou em um depósito de patente tanto pela obtenção dos peptídeos como pela estratégia utilizada para a produção de lipossomos. “Extraímos os fosfolipídeos das membranas das hemácias e formulamos os lipossomos a partir do próprio componente da célula”, relata Luciano. “A obtenção de lipossomos de hemácias realmente é uma inovação porque os similares comerciais disponíveis no mercado são preparados a partir de fosfolipídeos sintéticos ou naturais a partir de gemas de ovos e de outras fontes”, diz Eneida de Paula, professora do Departamento de Bioquímica, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Os estudos que resultaram nesse trabalho foram conduzidos pela bióloga Cínthia Caetano Bonatto durante a sua dissertação de mestrado na UnB, orientada por Luciano. O pesquisador lidera um grupo na Embrapa que estuda alternativas para resíduos agropecuários que são, em geral, descartados. No caso, foi utilizado sangue bovino e de camundongo. De um boi de tamanho médio abatido, por exemplo, pode-se obter até 20 litros de sangue. “Os lipossomos que formulamos têm potencial de uso para diversos tipos de fármacos”, diz Cínthia, que continua a se dedicar ao tema no doutorado, em que também utiliza plantas. Algumas de suas possíveis aplicações são em quimioterapias, para reduzir os efeitos adversos do tratamento. Ou ainda como bioativos na indústria química e farmacêutica tanto animal como humana, para possíveis tratamentos de doenças.
Outros compontentes do sangue, como peptídeos, também são estudados pelo pesquisador. “A hemoglobina apresenta similaridade celular entre diferentes organismos, o que abre um leque de possibilidades para uso da tecnologia”, relata Luciano. Como a hemoglobina é uma proteína com quase 600 aminoácidos, para extrair apenas os peptídeos de interesse para a pesquisa – entre 5 e 20 – foi preciso colocá-la em meio aquoso com uma enzima específica para essa finalidade, processo chamado de hidrólise enzimática. Os peptídeos extraídos foram colocados dentro de lipossomos, que tem potencial de levar o fármaco para a célula do organismo que necessita de tratamento. A avaliação dos efeitos antitumorais dos peptídeos foi feita a partir da hemoglobina hidrolisada de camundongo in vitro, em um modelo para estudo de câncer de mama. Os testes foram conduzidos em laboratório pela bióloga Graziella Anselmo Joanitti, professora da UnB, que trabalha com aplicação de nanotecnologia na biomedicina na área de câncer, e por Cínthia, com células isoladas de câncer de mama de camundongos. “Inicialmente, fizemos testes com peptídeos administrados na forma livre e observamos um efeito sutil na redução da viabilidade das células tumorais”, relata Graziella. Em seguida, foram testados componentes peptídicos da hemoglobina na forma nanoestruturada. “Quando encapsulados em lipossomos, o efeito antitumoral in vitro foi bem mais expressivo.”
Câncer e agricultura
Na primeira etapa da pesquisa, o conjunto de todos os peptídeos obtidos passou por testes. Na próxima fase, os pesquisadores farão a identificação das moléculas com papel mais preponderante na redução de células tumorais in vitro e irão investigar os mecanismos de ação envolvidos. Graziella ressalta que os lipossomos constituídos pelos próprios componentes das hemácias, quando utilizados para transporte de bioativos, possivelmente não são reconhecidos como invasores pelo organismo.
A expectativa dos pesquisadores brasilienses é futuramente utilizar essa estratégia para tratamento de câncer em humanos, mas para isso toda uma sequência de testes pré-clínicos e clínicos precisa ser seguida. Por enquanto, eles estão na fase de estabelecimento de colaborações com outros grupos de pesquisa da Embrapa para procurar novos fármacos destinados ao tratamento de doenças causadas por microrganismos como bactérias patogênicas e também por parasitas que provocam grandes prejuízos à agropecuária nacional, como berne – uma larva da mosca Dermatobia hominis –, infestação por carrapato e pela mosca-dos-chifres.
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