Ali está a fronteira entre os Estados Unidos e o México: uma cerca de placas metálicas verdes com 4 metros de altura e extensa a perder de vista. Duas viaturas de polícia se movem sem parar ao longo desta barreira – imponente, mas insuficiente para manter a separação efetiva entre dois mundos muito diferentes à beira do Pacífico. De um lado, na Califórnia, um dos estados mais ricos dos Estados Unidos, espalha-se a cidade de La Jolla com suas ruas largas e assépticas e um shopping a céu aberto – um outlet – colado a esta barreira. Os compradores entram e saem das amplas lojas de roupas, perfumes e calçados. Andam com suas sacolas sob o sol forte de julho como se não vissem nem a cerca, quanto mais o que se esconde do outro lado: as ruas estreitas e as casas miúdas que cobrem os morros da cidade vizinha de Tijuana, uma das maiores do México. Ali vivem temporariamente – ainda que por muitos anos – os imigrantes expulsos dos Estados Unidos que não têm dinheiro para voltar à terra de origem, além dos que alimentam a esperança de entrar no país mais rico do mundo.
Quem não quiser correr o risco de morrer atravessando esta versão moderada do Muro de Berlim pode ir de um país a outro apresentando seus documentos em algum dos 20 postos de fronteira, distribuídos ao longo dos 3 mil quilômetros de barreiras que cortam áreas urbanas, rios e desertos. O fluxo é intenso. Por ano, 350 milhões de pessoas – 1 milhão de pessoas por dia, em média – atravessam os postos de um lado a outro, com autorização, para trabalhar, deixar os filhos na escola e ir às compras, ao médico ou ao cinema. É uma das fronteiras mais movimentadas do mundo, mesmo sem contar os imigrantes ilegais – aproximadamente 1 milhão por ano -, que tentam passar escondidos em carros ou cavando túneis sob a cerca para desafiar a sorte nos Estados Unidos. Quando conseguem, como os personagens da novela América, exibida no ano passado pela Globo, alguns imigrantes se espalham por regiões mais distantes, outros ficam por ali. Só na Califórnia, um dos estados norte-americanos que fazem fronteira com o México, devem viver 9 milhões de moradores estrangeiros, dos quais 1,5 milhão de modo ilegal.
É por essas mesmas brechas que vírus e bactérias se propagam abertamente na região. A faixa de 100 quilômetros ao norte e ao sul da fronteira exibe muito mais casos novos de doenças infecciosas do que no interior de cada um dos dois países. Timothy Doyle e Ralph Bryan, pesquisadores dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), chegaram a conclusões impressionantes comparando a incidência de 22 doenças infecciosas de notificação obrigatória em três áreas distintas dos Estados Unidos. A primeira é a região mais próxima à fronteira, onde atualmente vivem 9,8 milhões de pessoas; a segunda consiste de uma faixa que atravessa o interior dos Estados Unidos e abriga cerca de 45 milhões de pessoas; a terceira é a mais distante, ocupada por outros 203 milhões. A porção oeste das três faixas inclui as terras que um dia pertenceram ao México – por meio de acordos ou de guerras, os Estados Unidos apossaram-se de 2 milhões de quilômetros quadrados do país vizinho, o equivalente a um quarto do território brasileiro.
Os contrastes de saúde são mais acentuados entre a região mais próxima da fronteira com o México e a mais distante, que reúne principalmente os estados vizinhos a outro país, o Canadá. No território norte-americano mais próximo do México é oito vezes maior a taxa de pessoas com brucelose, doença bacteriana causada por carne ou leite contaminados, e sete vezes maior a de botulismo, outra enfermidade de origem bacteriana, transmitida por meio de alimentos industrializados estragados ou consumidos depois da data de validade. O número de doentes com hanseníase é cinco vezes mais alto, o de sarampo quatro vezes e o de hepatite A 3,8 vezes.
Dessas comparações entre os habitantes de duas regiões fronteiriças dos Estados Unidos emerge a face menos glamourosa do país mais rico do mundo, a pobreza: 5 das 14 regiões administrativas (ou counties, como são chamadas em inglês) mais carentes dos Estados Unidos encontram-se na região fronteiriça do Texas com o México. As diferenças nos índices de doenças persistiram mesmo quando se adotou a etnicidade como critério de análise. As taxas de hepatite A, por exemplo, são duas vezes mais altas entre os moradores de origem latina do que entre os não-latinos. Para esse resultado contribuem não só as condições socioeconômicas diferenciadas, mas também os hábitos culturais: os latinos são muito mais afeitos a beijos e abraços – enfim, à proximidade física – que os norte-americanos típicos.
Os altos índices de doenças infecciosas na fronteira dos Estados Unidos com o México denunciam a falta de profissionais de saúde, de hospitais e de atendimento médico adequado, já que muitas dessas enfermidades poderiam ser evitadas: a ocorrência de doenças que podem ser prevenidas por meio de vacinas, como sarampo, difteria e tétano, é duas vezes mais elevada nas áreas mais próximas do México do que nas mais distantes. Em segundo lugar, o quadro que emerge desse estudo, publicado em setembro de 2000 no Journal of Infectious Diseases e um dos mais abrangentes já feitos, expõe as falhas de saneamento básico. Não há água encanada nem rede de esgotos nos 2.500 assentamentos informais estabelecidos ao longo da fronteira, conhecidos como colônias, que reúnem aproximadamente 500 mil pessoas. A água subterrânea que circula de um país a outro está contaminada com bactérias causadoras de doenças infecciosas.
As duas irmãs
“Embora esteja partida por uma fronteira, esta região é uma só, do ponto de vista biológico, ecológico e geológico”, comenta Exequiel Ezcurra, diretor do Museu de História Natural de San Diego, enquanto aprecia um grupo de crianças desmontando e montando maquetes de dinossauros que viveram por aqui há milhões de anos. Tijuana e San Diego, a metrópole regional da Califórnia à qual La Jolla se fundiu, são hoje cidades-irmãs e formam uma mancha urbana de quase 10 milhões de habitantes. É a maior área metropolitana binacional na América do Norte, marcada por contrastes econômicos: a renda média anual dos moradores de San Diego é de quase US$ 30 mil, cinco vezes maior que a dos vizinhos de Tijuana.
San Diego constitui a região mais próspera ao longo da fronteira. É um centro de indústrias ligadas às telecomunicações, agricultura e biotecnologia, além de pólo turístico, com belas praias, apesar da água quase sempre gelada – e nem sempre limpa – do Pacífico. Principalmente depois das chuvas intensas de final de ano, o rio Tijuana, que banha o norte do México e uma parte da Califórnia, despeja no mar uma carga acima do normal de esgotos residenciais e resíduos industrias, escurecendo as águas que chegam às praias da vizinha californiana.
O planejamento urbano, que poderia deter a poluição, torna-se mais difícil por causa das peculiaridades de Tijuana. De seus quase 4 milhões de habitantes, pelo menos 1 milhão são temporários – porque ainda sonham em cruzar a fronteira, porque não conseguiram ou ainda porque já foram deportados. Quem vive em Tijuana não cria raízes – ou parece não querer criar – porque não se sente ligado à cidade mesmo depois de 20 ou 30 anos. A taxa de desemprego é zero, mas a maioria dos moradores trabalha em montadoras que se beneficiam da mão-de-obra abundante para pagar salários baixos. Apesar das precárias condições de trabalho, os moradores temporários que trabalham nas centenas de montadoras de equipamentos eletrônicos ou médicos instaladas na região do norte do México conhecida como Baixa Califórnia se arriscam a ser dispensados se ousarem se filiar a sindicatos.
Tijuana pode ser angustiante, triste, violenta, mas nunca tediosa. A cidade de poucos prédios e muitas lojas de fachadas coloridas torna-se ainda mais viva com os festivais anuais de música e sushi. É para lá que vão os norte-americanos em busca de bebidas mais baratas, permitidas nos bares mexicanos para quem tem mais de 18 anos; nos Estados Unidos o limite mínimo é 21 anos. A maioria dos bares abre as portas também para menores de idade, ainda que sob o risco de receber pesadas multas. Outra motivação para ir a Tijuana é comprar drogas ou remédios ou mesmo passar por cirurgias que nos Estados Unidos seriam bem mais caras: a remoção de um tumor custaria US$ 7 mil na Califórnia, mas menos de US$ 3 mil em Tijuana. De compra em compra, os visitantes norte-americanos deixam por lá cerca de US$ 800 milhões por ano.
Os homens da fronteira
Como a maioria das cidades de fronteira, Tijuana abriga uma população predominantemente masculina. Os imigrantes chegam sozinhos e se envolvem em sexo de risco com mulheres ou com outros homens. Resultado: as doenças sexualmente transmissíveis, especialmente Aids, espalham-se livremente. De acordo com um estudo coordenado por Kimberly Brouwer, da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), publicado em março deste ano no Journal of Urban Health, um em cada 125 moradores de Tijuana com idade entre 15 e 49 anos é portador do HIV, o vírus causador da Aids. A maioria (70%) são homens que fazem sexo com homens, seguidos pelos usuários de drogas injetáveis.
A médica epidemiologista María Luisa Zúñiga, da UCSD, coordenou uma equipe que entrevistou 354 homens portadores do HIV que admitiam fazer sexo com outros homens. A primeira constatação, que atrapalha as campanhas de prevenção da Aids, é que eles não se consideram homossexuais, mas héteros. “Para eles, homossexualidade é um estilo de vida, com o qual não se identificam”, comentou María Luisa em julho durante uma das conferências do programa de jornalismo científico Jack Ealy, organizado pelo Instituto das Américas em La Jolla. “O comportamento sexual pode ser diferente da identidade sexual”, disse. Essa distinção pode ajudar os médicos a entender e a deter a doença na região fronteiriça. De acordo com esse levantamento, quase metade desses homens vai para San Diego ou para Tijuana uma ou duas vezes por mês, diluindo-se na multidão de aproximadamente 42 mil pessoas que cruzam a fronteira diariamente.
Como os imigrantes são os moradores de Tijuana que apresentam maior risco de contrair o HIV, o governo mexicano iniciou uma campanha de rádio para promover os testes gratuitos de HIV, com o propósito de identificar as pessoas infectadas e iniciar o tratamento o mais cedo possível. A campanha enfatiza La prueba del VIH es para gente que piensa que no la necesita (o teste de HIV é para quem pensa que não precisa). Mas não tem sido fácil avançar. Qualquer um que desconfie que possa ser um portador do vírus sabe que, se o tiver realmente, poderá perder o emprego, os amigos e talvez a própria família. Nas cidades mexicanas próximas aos Estados Unidos há outra razão para adiar o teste: “Quando as pessoas descobrem que têm o vírus, elas podem perder a permissão para cruzar a fronteira”, diz María Luisa, uma das coodenadoras de um projeto que procura ampliar o acesso das pessoas com HIV e Aids aos serviços de saúde em San Diego e em Tijuana. Mesmo nos Estados Unidos, 40% de todos os infectados não sabem que estão com o vírus.
Outro problema é que os moradores temporários de Tijuana, por não terem o hábito de usar preservativo, podem contaminar as esposas com o HIV quando voltam para casa. O vírus se espalha acobertado pelo silêncio e pela negação da possibilidade de ter contraído a doença, normalmente apresentada ou confundida com anemia. A saída mais comum é esconder a doença até o último minuto, quando a contaminação de muitas outras pessoas já pode ter ocorrido.
Pelo ar corre outro perigo: as bactérias causadoras da tuberculose, que se alastra no mundo inteiro na esteira da Aids e da pobreza. É uma doença endêmica em Tijuana por causa do clima muito úmido e dos numerosos e vastos assentamentos, que abrigam os moradores temporários. Além disso, os migrantes têm muitas dificuldades até chegarem a um médico do Seguro Social, a estrutura de atendimento médico oferecida pelo governo mexicano, quando vêm de outro estado sem um documento de identidade oficial. Enquanto os Estados Unidos registram apenas 5 casos de tuberculose para cada 100 mil pessoas, a região da Baixa Califórnia apresenta de 50 a 60 para cada grupo de 100 mil habitantes. É quase o dobro da atual média mexicana, que havia caído na década de 1990 e voltou a crescer nos últimos anos, à medida que se deu menos atenção às campanhas de prevenção e de tratamento.
“A tuberculose não perdoa”, comenta o médico pneumologista Rafael Laniado-Laborín, da Universidade Autônoma da Baixa Califórnia, em Tijuana. Em um estudo publicado em maio deste ano na revista Infection Control and Hospital Epidemiology, Laniado-Laborín e María Noemi Cabrales-Vargas relatam 18 casos de tuberculose entre os médicos e enfermeiros que trabalharam durante cinco anos em um hospital de 140 leitos em Tijuana. O resultado representa uma incidência 11 vezes maior que na população e é preocupante por se tratar de um lugar de intensa circulação de pessoas doentes, mais propensas a contrair outras infecções. Segundo Laniado-Laborín, o hospital adotou algumas medidas administrativas sugeridas, mas depois as deixou de lado. No mesmo hospital surgiram mais 17 novos casos entre os profissionais de saúde de novembro de 2005 a junho de 2006.
Ações conjuntas
Do outro lado da fronteira a tuberculose também preocupa. Um levantamento feito há dois anos com 571 imigrantes e refugiados que haviam se intalado havia pouco tempo em San Diego mostrou que, embora só 7% deles apresentassem a forma ativa da tuberculose, 76% tinham a forma latente e eram potenciais transmissores do bacilo causador da doença. É possível conter essa doença quando as pessoas contaminadas tomam os medicamentos rigorosamente durante seis meses; ocorre que geralmente se interrompe o tratamento tão logo os sintomas desaparecem. É quando surgem as formas mais agressivas da doença, causadas por variedades de bactérias para as quais os medicamentos se tornaram inócuos. Três profissionais de saúde que trabalhavam no hospital de Tijuana, por sinal, estavam infectados com uma variedade de M. tuberculosis multirresistente. A resistência aos dois fármacos mais adotados contra a tuberculose foi detectada em laboratório em 1% das variedades do bacilo que circulam em San Diego e em 17% das variedades isoladas de pacientes da Baixa Califórnia.
Os especialistas em saúde insistem: tanto a tuberculose quanto outras doenças infecciosas só podem ser detidas por meio de ações dos dois países que facilitem o diagnóstico e o tratamento. Mas não basta treinar médicos para atender os mexicanos que vivem na Califórnia ou dar mais atenção aos moradores de Tijuana. É preciso respeitar as realidades locais, alerta Laniado-Laborín. “Não podemos simplesmente aplicar o que vem de outros países”, diz ele, “porque as situações e as culturas são distintas”.
Carlos Fioravanti esteve em La Jolla a convite do Instituto das Américas. Mariana M. Estens é jornalista do diário Frontera, de Tijuana
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