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Resenhas

Aulas de jornalismo científico

Médico e repórter: meio século de jornalismo científico Julio Abramczyk Publifolha 288 páginas, R$ 59,00 (preço estimado)

Os 23 artigos e reportagens que traçam a doença e a agonia do presidente eleito Tancredo Neves, da véspera de uma posse nunca efetivada à morte em 21 de abril de 1985, constituiriam sem sombra de dúvida uma espécie de cerne dramático, clímax central da narrativa, se como tal pudéssemos tomar o conjunto dos textos de Julio Abramczyk em Médico e repórter: meio século de jornalismo científico. Na impossibilidade de fazê-lo, dado que seria licença excessiva considerar uma mesma narrativa os 62 fragmentos jornalísticos presentes no livro*, cobrindo variados temas da pesquisa científica em saúde, ainda assim é possível examinar os textos sobre o drama final do presidente como os mais instigantes, didáticos e representativos dos desafios do jornalismo científico de quantos a obra oferece.

Primeiro de tudo, porque há neles lições basilares de como lidar com a escassez de dados para oferecer ao leitor um quadro o mais próximo possível de uma realidade que se escamoteia do olhar público, a despeito do interesse público que ela tem. Ou lições magistrais de como arrancar da opacidade de cifrados e minimalistas boletins médicos um relato que devolva ao leitor algo da dimensão viva da luta que um sujeito – para o qual se voltam todos os olhos da nação – trava contra e com o corpo que derrapa e se esgota. E lições ainda sobre o quanto a medicina, mesmo a mais avançada, é campo incerto de provas largamente baseadas em tentativa e erro.

Jornalista e cardiologista, Abramczyk recorre a todo o arsenal de que pode dispor para, ao longo de 37 dias, sem jamais ferir a sensibilidade do público expectante ou incorrer em desrespeito à pessoa alvo de sua investigação, tentar contar passo a passo ao leitor da Folha de S.Paulo o que realmente está se passando com o homem por cuja recuperação, e consequente posse na Presidência da República, o país inteiro torce. Sempre baseado em sua formação e longa prática médica, ele não hesita em recorrer ao conhecimento que ambas somadas lhe facultam para imaginar cenários prováveis onde a informação escasseia. No derradeiro artigo da série, por exemplo, intitulado “Sedação impediu dor nos últimos dias”, publicado em 18 de maio, portanto quase um mês após a morte do ilustre paciente, Abramczyk explica que “o estado de inconsciência foi obtido com uma associação de drogas dissolvidas em um frasco de soro, gotejando gota a gota na veia. As drogas (possivelmente uma associação de Amplictil, Fenergan e Dolantina), quando suspensas, revertiam o paciente para um nível superficial de consciência, porém não muito bem acordado”. Por trás dessas frases é possível enxergar informação em off e dedução de quem conhece.

Na longa e desafiadora cobertura da agonia de Tancredo, que esgotou jornalistas e redações inteiras em Brasília, São Paulo e Minas Gerais, Julio Abramczyk antecipou corajosamente prognósticos certeiros. “Se a cirurgia foi uma simples intervenção, porém urgente, não haveria maiores razões para o paciente permanecer no centro de recuperação pós-operatória, pelo menos até ontem à noite”, dizia ele em 16 de março, dia seguinte à posse do presidente em exercício José Sarney. “Ou, então, o problema foi distinto daquele divulgado oficialmente, tendo-se verificado ou uma perfuração intestinal que resultou em um grave caso de peritonite, ou foi mais grave ainda, sendo até viável a hipótese de um tumor que poderia eventualmente ter produzido uma oclusão intestinal, cuja solução tem que ser resolvida cirurgicamente e também em situação de emergência.” Na mosca: havia um tumor benigno no começo do torturante caminho final de um paciente idoso, marcado por sete intervenções cirúrgicas em menos de 40 dias.

Como o jornalismo é um caminho coalhado de armadilhas, Abramczyk não só acertou. Também errou ou confundiu anseio com informação. “É claro que o presidente Tancredo Neves irá recuperar-se. Mas o prazo para assumir a presidência da República será dilatado. Agora, no mínimo de três a seis meses”, dizia ele em artigo de 27 de março. Também por vezes permitiu que a terminologia técnica do médico soterrasse a clareza do jornalista. Mínimos pecadilhos de um portentoso jornalista.

Há muito mais temas e questões, da pioneira cirurgia de ponte de safena no Brasil aos problemas de saúde de índios no Xingu, tratados brilhantemente por doutor Julio no belo volume organizado pelo jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva. Nenhum jornalista de ciência ou candidato a sê-lo deveria dispensar essa leitura.

* Retirei da lista três conferências e o discurso proferido pelo autor quando recebeu do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1986, o prêmio José Reis de Divulgação Científica, que constam do último capítulo.

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