A temporada de incêndios florestais na Austrália começou em setembro de 2019, com meses de antecedência, e tem sido uma das mais devastadoras. As porções sul e leste do país, onde ficam as duas maiores cidades do país (Sydney e Melbourne), além da capital Camberra, foram as mais afetadas. Até meados de janeiro, quando dois dias de fortes chuvas levaram algum alívio para setores dos estados de Nova Gales do Sul e de Vitória, os mais atingidos pelas queimadas, cerca de 180 mil quilômetros quadrados (km2) de mata haviam sido consumidos pelas chamas. Mais de 2.600 casas e 6 mil prédios ou instalações foram destruídos e 29 pessoas morreram. Estima-se que 1 bilhão de animais, sem contar os sapos e insetos, tenham sucumbido ao fogo, entre os quais exemplares da singular fauna australiana, como cangurus, coalas e wallabies.
A área incinerada na Austrália em 2019 equivale a mais de 2,5 vezes a extensão das queimadas ocorridas no bioma Amazônia em solo brasileiro no ano passado, quando houve uma escalada dos incêndios e do desmatamento na região Norte. Também é superior à porção do Cerrado, bioma brasileiro mais adaptado ao fogo, que ardeu em chamas no ano passado, da ordem de 148 mil km2, quase 75% maior do que a cifra de 2018. Os estragos podem ser ainda maiores no país da Oceania, a depender das condições meteorológicas vigentes nos meses de janeiro e fevereiro, historicamente vistos ali como o auge da estação das queimadas.
Há mais diferenças do que semelhanças entre o fogo de 2019 nas matas da Austrália e na maior floresta tropical do planeta. Ambos liberaram grandes quantidades de gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO2), devido à combustão de biomassa vegetal (árvores, arbustos e gramíneas), na qual estava armazenada uma quantidade significativa de carbono. Nos dois casos, o cenário global de mudanças climáticas, que têm tornado progressivamente grandes porções da Austrália e da Amazônia mais quentes e secas, parece ter criado um pano de fundo que favoreceu a ocorrência e a disseminação de incêndios nos meses de estiagens mais fortes e prolongadas. Mas as similaridades param por aí.
As condições naturais na Austrália em quase nada lembram as da Amazônia. “As situações são distintas. A Amazônia tem um clima chuvoso que torna os incêndios de origem natural, causados geralmente por raios, uma anormalidade”, pondera o climatologista José Marengo, chefe do setor de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). “Na Austrália, as queimadas fazem parte do ecossistema e são necessárias para sua regeneração, de forma similar ao que ocorre com o Cerrado no Brasil. Mas, obviamente, não nos níveis anormais que ocorreram no ano passado.” Em termos evolutivos, as plantas que se desenvolveram na Amazônia foram as que estavam adaptadas a ambientes muito úmidos. Na Austrália, se deu o contrário, com a dominância de espécies que crescem em ambientes secos, propícios à ocorrência de incêndios naturais.
Por ser muito úmida, a Amazônia não é palco de grandes incêndios naturais. Mesmo que um raio caia em meio à floresta numa época de seca, a disseminação das queimadas sem a intervenção humana é uma ocorrência remota. A pluviosidade média anual na região Norte é superior a 2 mil milímetros (mm) e em algumas regiões chove muito mais do que isso. “Na Amazônia, as queimadas estão geralmente ligadas à expansão da prática agrícola e à ocupação de terras”, diz o meteorologista Luiz Augusto Machado, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), estudioso do processo de formação de chuva na região. “Dificilmente, uma descarga elétrica vai propagar um incêndio na floresta úmida.” Na Austrália, há relatos de que na atual estação de queimadas raios provocados por nuvens do tipo pirocumulus, que se formam sobre superfícies quentes, como zonas de incêndios florestais ou de erupções vulcânicas, estariam contribuindo para espalhar e causar novos focos de fogo em áreas secas adjacentes à dos incêndios originais.
Embora haja notícias de que algumas pessoas foram presas por ter iniciado incêndios criminosos, a temporada estendida de queimadas devastadoras na Austrália é vista como decorrente de extremos do clima ocasionados pelo aquecimento global. “Houve incêndios muito grandes no passado, mas eles não eram seguidos de mais incêndios de grandes proporções em um intervalo de tempo de meros 15 anos. Normalmente, há um intervalo de 50 ou 100 anos [entre os grandes incêndios]”, escreveu David Bowman, diretor do Centro de Fogo da Escola de Ciências Naturais da Universidade da Tasmânia, na Austrália, no início de janeiro no site de divulgação científica The Conversation. Em fevereiro e março de 2009, houve, por exemplo, grandes incêndios florestais no estado de Vitória que causaram a morte de 179 pessoas e a perda de 4 mil construções. “A ecologia está nos dizendo que o intervalo entre os incêndios está encolhendo. É um grande sinal de alerta. O mundo está se tornando mais quente, seco e com atividade de fogo mais frequente, em consonância com as previsões da modelagem climática”, afirmou Bowman.
Fogo no eucalipto
Desde os tempos em que os aborígines dominavam o território australiano, há milhares de anos, o fogo é usado, de forma parcimoniosa, em geral no início da estação seca, para auxiliar na regeneração da vegetação e limpar os terrenos usados para cultivo. Pequenos incêndios controlados, por exemplo, reduzem a concorrência da vegetação estabelecida e criam canteiros de cinzas adequados para a germinação de novas plantas. Cerca de 75% das florestas da Austrália são formadas por eucaliptos, árvore originária do país cuja história evolutiva é marcada pela estreita relação com ambientes propensos a fogo. Os eucaliptos e algumas plantas da família das Proteaceae têm sistemas subterrâneos robustos, extremamente adaptados para rebrotar rapidamente após a queima dos troncos e dos ramos.
“Há um fogo do bem e um fogo do mal”, comenta a engenheira florestal Giselda Durigan, do Laboratório de Ecologia e Hidrologia do Instituto Florestal do Estado de São Paulo, estudiosa de processos ecológicos do Cerrado e da Mata Atlântica. “Às vezes, é preciso queimar em benefício dos sistemas adaptados ao fogo.” Durigan ressalta, no entanto, que as queimadas em curso na Austrália se devem a condições climáticas extremas que ultrapassaram em muito as médias históricas que mantinham os ecossistemas em um certo equilíbrio. “É muito difícil controlar incêndios florestais quando há seca prolongada, temperaturas elevadas e ventos fortes”, diz a pesquisadora, que esteve no ano passado no norte da Austrália, antes de os incêndios terem início.
Com exceção da Antártica, a Austrália é o continente com os menores índices de precipitação do planeta. Segundo o Escritório de Meteorologia da Austrália, o ano de 2019 foi o mais seco e o mais quente na antiga colônia penal britânica desde 1900, quando começaram os registros sistemáticos de dados climáticos. Os especialistas associam esses extremos do clima sem precedentes à atual temporada estendida de incêndios na Austrália. Em 2019, choveu, em média, 277 mm, 40% a menos do que a média do período entre 1961 e 1990. Até então, o título de ano mais seco pertencia a 1902, com 314,5 mm de chuva. Em Nova Gales do Sul, onde fica Sydney, a cidade australiana mais populosa, caíram no ano passado apenas 250 mm de água, recorde histórico de seca do estado.
A temperatura média no país foi 1,52 ºC acima da marca histórica e a média das máximas ultrapassou em 2 ºC a média histórica. “As observações indicam que as condições extremas de clima favoráveis à ocorrência de incêndios florestais devem se tornar mais frequentes no verão e a temporada de queimadas tende a começar mais cedo, principalmente no sul e no leste da Austrália”, afirma a climatologista Lisa Alexander, do Centro de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas da Universidade de Nova Gales do Sul, em Sydney. “Esse agravamento é devido à ação dos seres humanos, mas isso não significa que a variabilidade natural do clima de ano para ano não tenha desempenhado nenhum papel na atual temporada de incêndios.”
Em termos globais, 2019 foi o segundo ano mais quente no planeta, depois de 2016. Ironicamente, em meio a tanta secura e calor, para algumas partes setentrionais do estado de Queensland, no nordeste no país, o ano de 2019 apresentou chuvas recordes ao longo do ano, basicamente em razão de grandes tempestades registradas entre janeiro e fevereiro do ano passado. Mas boa parte de Queensland sofreu com seca, calor e incêndios ao longo do ano.
Com apenas 25 milhões de habitantes, a Austrália é um país-continente, pouco menor do que o Brasil, cercado por dois oceanos, o Índico a oeste e o Pacífico a leste. Devido a essa posição geográfica, a influência da temperatura das águas oceânicas sobre seu regime de chuvas é grande. Dois fenômenos oceanográficos não periódicos influenciam o clima australiano: o El Niño, que é o aquecimento anormal das águas do Pacífico, e o dipolo do Índico, a diferença entre a temperatura das águas da porção oeste (mais perto da África) e da leste (próxima à Austrália) desse oceano. No ano passado, não houve El Niño, anomalia que afeta também o clima na América do Sul, inclusive no Brasil. Mas o dipolo do Índico, fenômeno descoberto somente em 1999, apresentou uma das maiores intensidades de fase positiva registradas.
Quando as águas estão mais quentes do lado ocidental do que do oriental, ocorre a chamada fase positiva do dipolo do Índico. Em termos climáticos, esse tipo de fase resulta em menos chuvas no centro e no sul da Austrália, aumentando o risco de incêndios florestais. No passado, a fase positiva foi identificada em maio e persistiu até meados de novembro. Na segunda semana de outubro, as águas superficiais do Índico adjacentes à Austrália estavam 2,15 ºC mais frias do que as águas próximas da África, um recorde histórico. Até então, a maior diferença (1,48 ºC) havia sido registrada no início de novembro de 2006.
Independentemente das origens dos incêndios australianos, um debate que movimenta o país é o papel do governo federal na prevenção e no combate às queimadas. Cético das mudanças climáticas e de medidas destinadas a tornar a economia mais sustentável, o primeiro-ministro australiano Scott Morrison tem sido alvo de críticas, visto que o país do eucalipto e do canguru é também o maior exportador de carvão do mundo, cuja queima aumenta a emissão de gases do efeito estufa.
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