Theo firmo
Nunca gostei de Shakespeare. Aquele clima sempre sombrio em florestas fantásticas, castelos mal-assombrados, bruxas proféticas, tempestades sibilantes, bosques malditos, barões perversos e generais desembainhando espadas, aquilo tudo em português já era um saco, imaginem no original.
A questão era a seguinte: sabia da importância do autor, que suas obras tinham ficado para a posteridade mesmo depois de morto, que desenvolvera temas instigantes para a imaginação de forma brilhante, que botara um molho erudito em histórias populares, mas, convenhamos, para um adolescente que ainda não tinha resolvido seus mais prosaicos problemas de espinhas na cara e que estava dando um duro danado para galgar as altas muralhas da conquista do sexo oposto, essa literatura focada em batalhas ao ar livre e assassinos que despejavam cálices de veneno na orelha do rei da Dinamarca não só era bizarra, como beirava a afronta pessoal.
Não tinha a pretensão de subverter completamente todo o universo pedagógico das escolas que, imaginava, tinham levado anos e anos para chegar a um consenso quanto ao que devia ser ensinado aos alunos, com o objetivo de os cativarem com o maravilhoso mundo da arte, mas, sei lá, deveriam ter levado em consideração que a tecnologia moderna colocara em circulação zilhões de outras maneiras de entretenimento (nem sempre politicamente corretas, concordo) para que o adolescente dispersasse e se enfronhasse em labirintos de fantasia bem diferentes daquelas tramas que rolavam na Escócia, Troia, Alexandria, Verona, Roma ou Bretanha.
Por exemplo: aquele maluco que sentia um ciúme doentio da patroa em Veneza. Era francamente inverossímil. Em vez de andar de gôndola à luz do luar, o cara ficava se remoendo em quartinhos escuros e tristes, destilando litros e litros de bílis. Quem, hoje, daria a menor bola pro amigo que insiste em desmoralizar a coitada da mulher? Numa versão atualizada e remasterizada, já que não confiava na esposa, o maluco poderia monitorá-la por satélite. Poderiam inclusive bolar um game com esse tema.
Vou contar a minha história: sou filho de pais que viveram intensamente a revolução da década de 60 (política e cultural). Tanto minha mãe quanto meu pai se envolveram direta e fisicamente em todas as instâncias de rebeldia que caracterizaram essa época tão promissora da humanidade: fizeram teatro, escreveram livros, participaram de saraus poéticos com fundo de jazz, debates, simpósios e se engajaram em tudo quanto foi tipo de modalidade artística. Mesmo quando o mundo deu a guinada que todos sabem, derrubando todas as utopias, eles mantiveram a ferro & fogo seus ideais e me colocaram numa instituição alternativa, que tinha um interesse fora do comum na difusão da cultura universal. Enquanto meus colegas e amigos que estudavam em outros colégios jogavam basquete no pátio, eu tinha que estudar Shakespeare no original. Mesmo levando em conta as boas intenções de meus pais e as propostas pedagógicas revolucionárias da escola, achava um exagero.
Isso me criou um grande problema: a professora de inglês. Todos têm uma na vida; elas sempre fizeram parte da mitologia adolescente: falam outra língua, pronunciam as palavras como se estivessem numa abadia cheia de ecos e encaram os alunos como se todos fossem portadores de síndrome de Down. Escandem bem as sílabas, falam muito de-va-gar, são solenes, atenciosas, quase maternais, mas, no fundo, sabemos que elas se acham superiores aos selvagens nativos do Terceiro Mundo. Às vezes, parodiando uma música da época, tinha vontade de gritar para ela: Welcome to the jungle, teacher!
Me lembro bem dela: atendia por um nome estranho cheio de consoantes, era casada, tinha cabelos ruivos e vestia-se com recato. Entrava na classe como se estivesse adentrando o recinto do palácio de Buckingham. Ela não andava, flutuava, parecia estar sempre alguns milímetros acima dos pobres mortais. Good morning! Começava assim o nosso suplício. Todas as manhãs de quarta e sexta-feira, ela nos cumprimentava com um sorriso gélido, mas benevolente.
Meus sentimentos em relação à professora de inglês eram dúbios: por um lado, me dava calafrios só de imaginar que ela pudesse declinar meu nome para saber se eu tinha lido o Ato III do Coriolano e, por outro, minha libido subia a alturas insuspeitadas quando seu rosto (loucura minha ou não) detinha-se por fragmentos de segundo nos meus olhos na hora da chamada obrigatória. Pois seu rosto era lindo. Vamos colocar assim: a palavra proporção deve ter sido inventada quando um estudante de arte ou um pintor qualquer descobriram o rosto dela. Era de uma beleza singular, preciosa, uma gema. A distância entre os olhos podia ser medida por um instrumento de precisão. Nenhum fio das sobrancelhas ou do cabelo estava fora do lugar. O tamanho e formato do nariz deixariam Giotto de quatro. Naqueles instantes mágicos em que ela me olhava, o mundo e o tempo paravam.
Como todo adolescente com os hormônios em combustão, imaginava coisas, cenas, sonhava com ela, mas sabia que o interesse de um estudante pela professora era um dos chavões mais surrados da história da humanidade. Por outro lado, o interesse da professora pelo aluno dava (e dá) cadeia. Nem me lembro quantas vezes ela me pediu para ficar depois das aulas para uma conversa séria. E em todas (repito: todas, sem exceção), ela me espinafrou, dizia que eu não tinha o menor interesse por inglês ou por Shakespeare, que eu era relaxado, dispersivo, não prestava atenção nas aulas, vacilava, e que ela podia me deixar de recuperação, caso não mudasse minha atitude. Gaguejando, eu negava tudo, sempre, até o dia que o diabinho verde que habita as profundezas mais recônditas de nosso cérebro resolveu abrir o jogo (sem o meu consentimento, é claro) e disse:
É que eu fico prestando atenção na senhora!
Ela estacou, parou de falar, um tímido sorriso crispou-lhe o lábio superior e, depois de uma eternidade de silêncio, balbuciando como uma criança indefesa, a professora de inglês, perguntou:
Em mim?
É, eu disse, no seu rosto. Fico prestando atenção no seu rosto.
Naquele dia, entendi o significado da expressão “divisor de águas”. Havia um antes e um depois. Havia uma professora de inglês do passado e outra do presente. Ela rejuvenesceu, ficou mais ativa, menos solene, e (o toque de mestre) soltou os cabelos.
Um dia, sabendo da minha dificuldade com as obras do bardo de Stratford-on-Avon, pediu-me para ir a sua casa depois da aula. Argumentou de uma forma que eu, a princípio, não entendi: disse que seria bem mais produtivo aprender Shakespeare na prática. Eu tinha 16, ela 29. Não ouvimos o carro de Otelo chegando.
Furio Lonza é escritor, jornalista e dramaturgo. Publicou os romances Crossroads, Eric com o pé na estrada e As mil taturanas douradas, a novela experimental História impossível e o poema Sturm und Drang.
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