LUANA GEIGERBartolomeu Lourenço, singular entre os mancebos, foi um milagre entre os homens. Como contam os livros, nasceu em São Vicente, cidade vizinha a Santos, no ano da graça de 1685. Por lá cresceu e, no intercâmbio dos séculos, mudou-se com dois de seus irmãos para a Bahia — terra de absurdos sem precedentes. Cachoeira era uma das maiores cidades do país, e se atualmente parece pequena não é porque encurtou, mas o mundo ao redor que cresceu muito rápido. A vista atual do rio Paraguaçu não é tão diferente da que passou por seus olhos, os de Alexandre e os de Simão.
Filiou-se à Companhia de Jesus, onde conheceu o padre Alexandre de Gusmão, de quem mais tarde adotaria o sobrenome. Com apenas 20 anos, inventou um sistema que bombeava água ladeira acima, livrando o esforço de escravos e animais (estavam livres, logo se deduz. Mas nada disso; apenas gastariam suas energias em atividades outras.) Mente engenhosa, memória fantástica; o que de mais importante lhe aconteceu nesta pequenina cidade, porém, não entrou pros anais da história: um milagre substancial.
Estavam a passear próximos ao rio, os três irmãos, quando avistaram uma frondosa mangueira, recheada de frutos suculentos. As mangas eram novidade no país. Rosadas, macias, lisas, como a divina Vênus. Zombavam deles, com tanta beleza. Simão, em contrapartida, graceja para uma delas, a mais gorda de todas, com os olhos cerrados e a mão esticada.
— Ó, fruto de mel celeste, permiti que Simão, vosso humilde servo, sinta em seus delgados dedos a aurora que haveis de despertar-lhe. — Para sua surpresa, o belo fruto desaba em sua mão. Ele o segura com firmeza, como se o milagre fosse esperado.
— Que coincidência! — exclama Bartolomeu.
— Nada disso. Chama-se fé o que aconteceu — responde Alexandre. Simão concorda, rasgando com os dentes a casca do fruto.
— Certamente, então, os senhores não conhecem os recentes trabalhos do Mr. Isaac Newton — afirma Bartolomeu, com certo pedantismo.
— Aquele alquimista? — graceja Alexandre.
— Um sonhador, talvez. Mas estes trabalhos explicam os movimentos propulsores da natureza, sendo que a gravidade é um deles — explica Bartolomeu.
— A gravidade? — pergunta Alexandre, enquanto Simão, com ferocidade, destrói o fruto olímpico.
— Sim. É a força que rege a queda das mangas e de todas as outras coisas.
— Então duvidas da fé de Simão? — desafia Alexandre.
— A fé move montanhas — completa Simão, terminando de lidar com o fruto.
— Mas certamente não move mangas — responde o inventor, sorrindo.
Alexandre propõe uma comprovação divina e também estica o braço. Menos de um minuto, e também lhe cai uma manga, que ele segura como um gavião agarra sua presa. Bartolomeu se assombra. “Dois eventos repetidos estão além da mera coincidência. Testarei, também, minha fé.” E, à maneira dos irmãos, espera seu fruto nervosamente. “Se o próprio Newton tem suas crenças, por que haveria eu, reles seminarista, de contestar as forças supremas?” Não foi como ele planejou.
Antes que acusem o humor destas celebridades históricas, convoco-lhes, judiciosos leitores, a se lembrarem de que todos os homens eminentes foram, um dia, garotos. Ao ver o irmão em agonia, um dos galhofeiros lhe lambuza a palma com o caroço da manga chupada. Não merece julgamento assim como Bartolomeu não o merece, pela ira visível e estridente que lhe surgiu com a brincadeira. Eram, antes de tudo, fedelhos. Bartolomeu foge pranteando às alturas, menos pela manga que lhe faltava aos dedos, mais pela falta de fé que deixava uma lacuna em seu coração.
• • •
Pensativo, vaga pelos vales que circulam a cidade e encontra uma mangueira selvagem, pagã, aberração da espécie ainda mais frondosa que a primeira. Resolve testar sua fé novamente: reza temendo os céus; reza para que possa estar com seus irmãos, pois eles não tinham culpa de suas moléstias; reza para que lhe caia uma manga, como prova de sua crença e de sua intrínseca força de vontade.
E lá ela estava, lisa, perfumada, porém leve demais, como se estivesse suspensa por algo. Mais uma peça daquela dupla, logo deduz, e abre os olhos. Se num segundo penetrava a copa da mangueira, no outro caía como um fruto maduro, olhando para o chão com absoluto terror. Mas antes que toque a sombra na terra, para sua sorte, consegue refrear-se no ar, paralisado, sem fôlego.
Controlando sua respiração, ele sobe em linha reta, como se estivesse preso a uma roldana. A manga ainda estava na árvore, por isso a leveza. Estava marcada por seus dedos como a ferro quente. Não era obra diabólica, pensa, senão já teria sido fulminado. Havia alguma relação entre o calor e a gravidade. Ele reflete, enquanto a chupa, no ar: “Claro! Há coisas quentes que flutuam, e nada há de mais ardente que as vontades”. Controlando as suas, ele domina a arte de voar, desengonçadamente. Lidava com os ventos como um nadador, enfrentando-os, ou deixando-se levar.
Subia cada vez mais. Viu a mangueira de cima, como um arbusto, e as edificações da cidade, como uma maquete viva, e as pequenas pessoas, iguais a insetos, e as curvas do rio, uma serpente adormecida. “Como as coisas são minúsculas em relação aos poderes do universo.” Percebia os benefícios da nova técnica, que lhe era a ciência em estado puro. As viagens estariam livres dos ladrões e pedregulhos, por terra, e dos piratas e tempestades, por mar. O mundo evoluía. O país ainda haveria de gerar outros pássaros miraculosos. Pergunta-se quanto tempo levaria para alcançar Salvador, a capital da colônia. Tentaria mais tarde, com uma bússola. Mas vem abaixo antes mesmo que a ideia fugisse por completo de sua mente, e desaba como um meteoro.
No outro dia, após as buscas desesperadas dos irmãos de sangue e de culto, é encontrado desacordado, debaixo da mangueira, rodeado por um mar de frutos verdes, rosas, amarelos.
— Esse vai longe — diz Alexandre, ignorando as verdadeiras distâncias.
Bartolomeu, a partir de então, passaria a coletar vontades, na tentativa de realizar voos seguros. Vontades fortes, ardentes, febris, como a que uma vez tivera. Dali iria a Salvador, e depois a Lisboa, onde estavam os homens mais ambiciosos do planeta. Foi a esta sensação de ver o mundo de cima que Bartolomeu dedicou o resto de sua vida. Esta sensação de se estar mais próximo dos céus.
Paulo Raviere Barreto Dourado nasceu em Irecê (BA), em 1986. É mestrando pela UFBA, onde se graduou em língua estrangeira. Publicou em antologias e no blog Confraria de Tolos.
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