Livro reúne artigos que formaram o pensamento do sociólogo francês
Na formação da primeira geração de sociólogos brasileiros da Universidade de São Paulo, Roger Bastide (1898-1974) foi o mais influente dos professores estrangeiros que a instituíram, onde lecionou de 1938 a 1954. É marcante sua influência na sociologia brasileira até hoje.
A riqueza do pensamento de Bastide está exemplarmente contida neste belo livro de rememoração e homenagem, Impressões do Brasil, organizado e prefaciado por Fraya Frehse e Samuel Titan Jr., que reúne textos a duras penas garimpados em revistas e jornais. É um livro que expressa a densa e madura motivação que trouxe ao nosso país o pesquisador francês. Bastide, como ele mesmo disse, vinha de uma Europa saturada de razão e dela cansada. Interessava-se, por isso, pelo lugar social do que à razão escapava, nas estruturas sociais profundas, nos modos de ser e de pensar do homem comum, mas também na emoção da arte e nas elaborações do espírito. O Brasil era para ele o laboratório da descoberta de um lado da condição humana que a razão escondera e reprimira.
Foi autoridade em sociologia da religião e também na relação entre a sociologia e a psicanálise, tema de um de seus primeiros cursos na USP. Seus estudos sobre o sonho, com dados colhidos em São Paulo, numa pesquisa sobre o negro, levou-o a descobertas fundamentais nesse campo da sociologia, sobre o lado essencial e oculto da negritude. Com ele pode-se dizer que o verdadeiro e raro negro que subsiste entre nós não é o negro de pele, mas o negro que não foi separado de seus ancestrais pelo catolicismo da socialização maniqueísta para o cativeiro, o do abismo entre vivos e mortos. Nos sonhos dos negros por ele estudados a presença dos ancestrais é explicativa. Na mística do negro, não há cisão entre vigília e sonho, mas unidade, a do ser da identidade profunda. O primeiro estudo de Impressões do Brasil é justamente uma análise da relação entre arte e mística, a investigação e explicitação do social nas complexas obras do espírito.
Esse belo elenco de pequenas joias praticamente inaugurais da nossa sociologia é obra densa de um pesquisador erudito, aberto à indagação ampla sobre diferentes aspectos de nossa sociedade. Bastide veio para o Brasil a convite da USP cheio de curiosidade científica, com uma exemplar e incansável disposição para ver, indagar, aprender, decifrar, explicar. Sua cultura lhe permitia ver como cientista até mesmo o que parecia irrelevante traço da realidade social. Seu ensaio sobre “Igrejas barrocas e cavalinhos de pau” é a evidência de uma perspectiva sociológica atenta às conexões da diversidade de expressões do social, à mística da totalidade, à monumentalidade residual do banal, às heranças e permanências que escapam à fugidia concepção da sociedade como supressão da história, como presente atemporal. As significações, na sociologia bastidiana, são as significações da vida como permanente obra de arte.
O provocante ensaio sobre “Estética de São Paulo” é mais do que um convite a pensar a casa e o espaço na perspectiva sociológica. Bastide toma como referência a modernidade da Via Anchieta e destaca as revelações e os desafios interpretativos de uma simples viagem de carro de São Paulo a Santos, para uma digressão sobre o caráter relativo das formas, sobre o poder da persistência das estruturas sociais profundas, familistas, que estende às considerações sobre a verticalização da capital. Destaca aí as tensões da “cidade vertical contra a estrutura horizontal da família”. Nem lhe falta o interesse sociológico pelos significados da porta em nossa cultura, como lugar ritual da passagem, em suas “Variações sobre a porta barroca”.
Bastide ultrapassou a porta da sala de aula para falar ao grande público através dos jornais. Foi no jornal O Estado de S. Paulo que ele publicou, em cinco semanas, distribuído em capítulos, em 1948 e 1949, o revelador “Ensaio sobre uma estética afro-brasileira”, um dos capítulos mais impressionantes deste livro.
José de Souza Martins é professor titular aposentado da Universidade de São Paulo, membro do Conselho Superior da Fapesp e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
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