Imprimir PDF Republicar

Epidemiologia

Bolsa Família evitou 8,2 milhões de hospitalizações e 713 mil mortes de 2004 a 2019

Estimativa é baseada em dados de 3.671 municípios brasileiros, nos quais vivem 90% da população

Gestantes que recebem o Bolsa Família se comprometem a fazer o acompanhamento pré-natal

Rodrigo Nunes / ASCOM MS

Na segunda quinzena de julho, os responsáveis por 19,6 milhões de famílias pobres brasileiras puderam ir a uma agência da Caixa Econômica Federal, a uma casa lotérica ou por meio de um aplicativo de celular ter acesso ao benefício do Bolsa Família, um dos maiores programas de transferência condicional de renda do mundo. Cada família, composta em média por 2,5 pessoas, pôde receber o valor médio de R$ 671,52. O montante correspondente a menos de R$ 9 por indivíduo por dia e é ligeiramente superior ao da linha de pobreza das nações mais carentes do globo, estipulada pelo Banco Mundial em US$ 3 diários por pessoa (R$ 7,50, na conversão por paridade por poder de compra). Em países de renda média-alta, como o Brasil, a linha de pobreza fica em US$ 8,30 (R$ 20,92). É, porém, esse dinheiro que auxilia essas famílias, chefiadas quase sempre por mulheres, a custear as despesas com roupa, moradia e alimentação.

Criado em 2003, o Bolsa Família unificou programas sociais anteriores e ajudou a diminuir a proporção de pessoas vivendo em situação de pobreza ou pobreza extrema no país. Seu efeito, no entanto, transborda para outras esferas da vida. Estudos publicados nos últimos anos começaram a medir o impacto do programa em indicadores de saúde e registraram queda importante no nascimento de bebês prematuros, na mortalidade infantil, nas taxas de infecção e até de problemas decorrentes da dependência química.

Em um dos trabalhos mais recentes, publicado em maio na The Lancet Public Health, os pesquisadores analisaram o impacto do Bolsa Família sobre hospitalizações e mortes nos 5.570 municípios brasileiros. Os números impressionam. De 2004 a 2019, o programa teria contribuído diretamente para evitar 8,2 milhões de internações hospitalares e 713 mil mortes em 3.671 desses municípios (sobre os quais havia dados detalhados). O total de hospitalizações poupadas corresponde a pelo menos 70% das que ocorrem anualmente nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS). As vidas salvas entre 2004 e 2019 equivalem a quase metade dos óbitos registrados anualmente no Brasil.

Essa conclusão decorre da análise dos registros de nascimento, de óbito e da causa da morte disponíveis nos cartórios das cidades e nos bancos de dados do SUS entre 2000, antes do Bolsa Família, e 2019. Para calcular o impacto do programa, os pesquisadores levaram em conta a proporção do público-alvo coberta, o valor médio pago por família e a combinação dos dois fatores. Os municípios foram agrupados por faixas de cobertura: baixa (até 29,9% da população-alvo); média (30% a 69,9%); alta (70% a 99,9%); e consolidada, com todas as famílias elegíveis recebendo – hoje, podem se inscrever as com renda individual inferior a R$ 218,00 por mês. Essas informações alimentaram modelos estatísticos que consideraram mudanças demográficas, melhorias na condição socioeconômica e de acesso a saneamento básico e saúde observados no período, além da existência de programas sociais anteriores.

“Analisamos as tendências de mortalidade e de hospitalizações para verificar se as mudanças ocorreram depois da implementação do programa ou já vinham acontecendo. Constatamos que o Bolsa Família foi o fator que mais influenciou a redução nessas taxas no período”, conta a economista Daniella Cavalcanti, primeira autora do artigo e pesquisadora no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC-UFBA).

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

De 2004 a 2019, houve uma redução média de 31% nas hospitalizações e de 25% na mortalidade. No mesmo período, a cobertura do programa cresceu: ele atendia 50,7% das famílias vivendo abaixo da linha de pobreza em 2004 e 99,3% em 2019. Nas cidades com alta cobertura (mais de 70% da população-alvo) e repasses mais elevados, a queda foi de 22,5% nas internações e de 27,7% na taxa de óbitos. Esses efeitos foram mais acentuados nos extremos de idade. A mortalidade caiu um terço entre as crianças menores de 5 anos e as hospitalizações a quase metade acima dos 70 anos nessas localidades.

Os pesquisadores usaram as informações coletadas entre 2000 e 2022 em um modelo matemático para realizar predições do que pode ocorrer até 2030, imaginando três cenários: redução da cobertura, manutenção ou expansão, no qual passariam a ter direito a participar famílias com renda per capita inferior a R$ 754,50 (meio salário mínimo). No último caso, outros 8 milhões de internações e 684 mil mortes seriam evitados.

Os efeitos sobre a saúde, segundo especialistas, não são explicados só pelo acesso à renda. As exigências que o programa impõe a quem se candidata ao auxílio – as condicionalidades – ajudam a aproximar as pessoas tanto do SUS como do sistema educacional. As famílias que recebem o benefício têm de manter os filhos com idade entre 6 e 17 anos frequentando a escola. As crianças menores de 7 anos devem ter a vacinação em dia e fazer o acompanhamento do estado nutricional, que verifica se o peso e a altura estão adequados para a idade. Já as gestantes precisam fazer o acompanhamento pré-natal. Quem descumpre pode deixar de receber temporariamente os pagamentos ou ser retirado do programa. Em julho, 47 mil famílias (0,24% do total) estavam com o benefício suspenso e 1,1 milhão com o pagamento bloqueado (a maior parte para revisão cadastral), segundo nota do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS).

“Neste século, vimos transformações importantes nas condições de saúde da população brasileira, com significativas reduções das taxas de doenças e óbitos e aumento na expectativa de vida. Sem dúvida a existência do SUS teve um papel central nessas transformações, porém os programas sociais, ao reduzirem a pobreza e a pobreza extrema, tiveram um papel relevante”, escreveram o epidemiologista Maurício Lima Barreto e sua equipe em um informe produzido em março pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cidacs-Fiocruz), na Bahia.

De circulação restrita, o documento a que Pesquisa FAPESP teve acesso enumera várias repercussões favoráveis do programa, em especial sobre a saúde da mulher e da criança. São resultados obtidos a partir da análise de informações sobre nascimento, nutrição, enfermidades e óbitos de dezenas de milhões de brasileiros, disponibilizados pelo MDS ao Cidacs e detalhados em 15 artigos científicos publicados nos últimos cinco anos.

Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Os trabalhos indicam, por exemplo, que o Bolsa Família contribuiu para reduzir em até 31% a mortalidade materna e em 17% o risco de morte por câncer de mama, segundo resultados publicados, respectivamente, em 2024 e em 2023 na revista JAMA Network Open. Também se observou uma diminuição de 4% no risco de mortes por problemas cardiovasculares na população masculina e feminina e de 31% na taxa de nascimento de bebês prematuros extremos, que nascem até a 28ª semana de gestação. O programa aparece associado ainda à queda em casos e mortes por doenças infecciosas, como HIV-Aids e tuberculose, e a uma diminuição na internação por problemas ligados ao uso de álcool e outras drogas ou doenças psiquiátricas.

“Os impactos do programa foram além do que prevíamos inicialmente”, conta o médico e epidemiologista Rômulo Paes de Sousa, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos (CEE) da Fiocruz, no Rio de Janeiro. Coautor do artigo na The Lancet Public Health, Sousa foi secretário de Avaliação e Gestão da Informação do MDS de 2004 a 2007 e um dos responsáveis por desenhar e implementar o sistema de monitoramento e avaliação do Bolsa Família. “Mesmo sem um recorte de gênero explícito, o programa produziu um impacto marcante entre as mulheres”, salienta.

Entrevista: Rômulo Paes de Sousa
00:00 / 15:45

Entre as crianças, o programa reduziu o risco de baixa estatura, mas aumentou o de sobrepeso e obesidade. O risco de morte em menores de 5 anos foi ao menos 17% menor entre as crianças de famílias beneficiárias do que entre as que não recebem. A redução chegou a 26% entre os filhos de mulheres pretas, segundo artigo de 2021 na PLOS Medicine.

Apesar dos avanços, há pontos a melhorar. Pesquisadores das universidades Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) avaliaram os indicadores de alimentação complementar – introduzida a partir do 6º mês de vida – de quase 507 mil crianças (44% de famílias beneficiárias). Segundo os resultados, publicados em 2024 no International Journal of Environmental Research and Public Health, a maioria dos indicadores foi pior no primeiro grupo do que segundo. Nas famílias beneficiárias, a frequência de introdução de alimentos entre o 6º e o 8º mês foi menor, assim como o número de refeições. A alimentação era menos variada, com mais consumo de ultraprocessados. “A frequência de refeições e de consumo de alimentos com consistência adequada, diversidade mínima e presença de alimentos ricos em ferro foi ainda mais baixa entre as menores de um ano”, afirma a nutricionista Andreia Andrade-Silva, primeira autora do estudo. “A frequência no consumo de ultraprocessados foi elevada nos dois grupos, mas mais alta entre as de famílias beneficiárias. Isso reflete a vulnerabilidade histórica das famílias mais pobres”, explica a nutricionista e epidemiologista Maria Beatriz de Castro, da UFRJ, coautora do artigo e orientadora de Andrade-Silva no doutorado.

O impacto da transferência de renda sobre a saúde das crianças não é exclusividade nacional. Um experimento conduzido por pesquisadores do Reino Unido e dos Estados Unidos com 10 mil famílias de 653 vilarejos no Quênia mostrou que a distribuição de recursos financeiros, mesmo sem condicionalidades, diminui a mortalidade infantil. A concessão de US$ 1.000,00 em um único momento levou à redução de 48% nos óbitos no primeiro ano de vida e de 45% nos ocorridos até os cinco anos, de acordo com um artigo publicado em agosto na coletânea NBER Working Papers. Segundo os autores, o efeito se dissipou quando a transferência terminou.

Marcelo Camargo / Agência Brasil Famílias beneficiárias do programa têm de manter os filhos com idade entre 6 e 17 anos na escolaMarcelo Camargo / Agência Brasil 

Inspirado em iniciativas de outros países, como o pioneiro Programa de Educación, Salud y Alimentación, do México, o Bolsa Família foi criado pela Medida Provisória nº 132, de outubro de 2003, convertida no ano seguinte na Lei nº 10.836. O primeiro pagamento alcançou 1,15 milhão de famílias. Desde então, o programa passou por um crescimento inicial acelerado, anos de estabilidade e outra etapa de expansão. Seu orçamento subiu de 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2004 para cerca de 1,5% em 2024. Em janeiro de 2023, atingiu o recorde de 21,9 milhões de famílias e iniciou uma fase de lento declínio (ver gráfico). Em julho de 2025, o Nordeste era a região do país com o maior número de contemplados pelo programa, com o Sudeste em segundo lugar (ver mapa).

O programa já foi alvo de críticas por potencialmente estimular as pessoas a se manterem em empregos informais, para não perderem os benefícios. Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), divulgados pelo governo federal, no entanto, os beneficiários e ex-beneficiários ocuparam 76% do 1,69 milhão de vagas com carteira assinada criadas em 2024 no país. Uma regra de proteção, atualizada em julho, garante que as famílias com renda superior a R$ 218,00 por indivíduo, mesmo empregadas, continuem recebendo metade do valor por mais um ano, para auxiliar na transição.

Entrevista: Alessandro Pinzani
00:00 / 17:52

O programa segue acompanhado de desafios. Um é a dificuldade de acesso aos benefícios e aos instrumentos de educação e saúde para cumprir as condicionalidades nas áreas remotas do país. “Infelizmente, as desigualdades regionais no Brasil são enormes e existem os chamados vazios assistenciais, áreas distantes dos serviços de atenção primária à saúde”, explica a epidemiologista Ethel Maciel, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que integrou o Ministério da Saúde até o início de 2025.

“O Bolsa Família garante o básico, mas é uma resposta individual, para cada família. Não mexe nas causas estruturais da pobreza”, lembra o filósofo italiano Alessandro Pinzani, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), coautor do livro Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania (Editora Unesp, 2013). Na sua avaliação, alterar essas causas significa, nas cidades, enfrentar a desigualdade e a baixa remuneração do trabalho manual, e, no campo, promover o acesso à terra. “Essas mudanças”, diz, “são difíceis no curto prazo”.

A reportagem acima foi publicada com o título “Renda e saúde” na edição impressa nº 355 de setembro de 2025.

Artigos científicos
CAVALCANTI, D. M. et al. Health effects of the Brazilian Conditional Cash Transfer programme over 20 years and projections to 2030: A retrospective analysis and modelling study. The Lancet Public Health. jul. 2025.
GUIMARÃES, J. M. N. et al. Income segregation, conditional cash transfers, and breast cancer mortality among women in Brazil. JAMA Network Open. 25 jan. 2024.
ALVES, F. J. O. et al. Association of conditional cash transfers with maternal mortality using the 100 million Brazilian cohort. JAMA Network Open. 23 fev. 2023.
PESCARINI, J. M. et al. Impact of Brazil’s Bolsa Família Programme on cardiovascular and all-cause mortality: A natural experiment study using the 100 million Brazilian cohort. International Journal of Epidemiology. dez. 2022.
SILVA, A. F. et al. Intersectional impact of cash transfers on Aids among 12.3 million Brazilian women. Nature Human Behavior. 11 ago. 2025.
JESUS, G. S. et al. Effects of conditional cash transfers on tuberculosis incidence and mortality according to race, ethnicity and socioeconomic factors in the 100 million Brazilian cohort. Nature Medicine. 3 jan. 2025.
FALCÃO, I. R. et al. Brazil’s Bolsa Família conditional cash transfer and child malnutrition: A Nationwide birth cohort study. The BMJ Global Health. 20 jul. 2025
RAMOS, D. et al. Conditional cash transfer program and child mortality: A cross-sectional analysis nested within the 100 million Brazilian cohort. PLOS Medicine. 28 set. 2021.
ANDRADE-SILVA, A. et al. Trends in complementary feeding indicators in children aged 6-23 months according to participation in a conditional cash transfer program: Data from the Brazilian food and nutrition surveillance system, 2015-2019. International Journal of Environmental Research and Public Health. 15 jul. 2024.
WALKER, M. W., et al. Can cash transfers save lives? Evidence from a large-scale experimente in Kenya. NBER Working Paper Series. ago. 2025.

Republicar